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A guerra de normativas e o primeiro contrato de trabalho desportivo

A primeira assinatura de um contrato especial de trabalho desportivo é inesquecível. É a consolidação de um sonho de infância tanto para o jogador, que em sua grande maioria ainda adolescente, bem como para os seus familiares. É uma certeza de que se terá um futuro, pelo menos a curto prazo, mais promissor e estável para o desenvolvimento do atleta dentro e fora dos campos.

Por outro lado, para o clube, é a demonstração de convicção de que o atleta faz parte dos planos esportivos e econômicos para o futuro, assim como é uma garantia de retorno financeiro em caso de venda de direitos econômicos, resguardado através de um instrumento contratual.

Sem embargo, o que parece simples, pelo menos diante de uma análise perfuntória dos fatos, pode adquirir contornos litigiosos para ambas as partes. Isso porque, a normativa estatal nacional e o regulamento privado da FIFA divergem justamente no que diz respeito ao tempo de duração desse primeiro contrato de trabalho.

O Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[1] estabelece, em seu artigo 18, que os jogadores menores de 18 anos não podem assinar um contrato com duração superior a 3 anos, não sendo aceita qualquer cláusula onde se estipule um período maior.

Contudo, a Lei 9.615/98, conhecida como Lei Pelé[2], afirma, em seu artigo 29, que a entidade de prática desportiva formadora poderá firmar o primeiro contrato com o atleta, a partir dos 16 anos de idade, cujo prazo não poderá ser superior a 5 anos.

Por sua vez, o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas da CBF[3], em seu artigo 7º, segue o entendimento da lei nacional, porém ressalva que, em caso de litígio submetido à FIFA, somente serão considerados os três primeiros anos, em conformidade com o artigo 18 do RSTP.

Posto isso, partimos para a exposição de um caso concreto que envolveu justamente esse conflito de normativas. O atleta Lucas Fasson, até então menor de idade, assinou o seu primeiro contrato profissional com o São Paulo, que teria uma duração inicial de 4 anos. Perto de terminar os 3 primeiros anos, o jogador, embasado pelo regulamento da FIFA, notificou o clube sobre o seu desejo de terminar o contrato quando completasse o terceiro ano.

Ato contínuo, ultrapassada a marca dos três primeiros anos, o futebolista firmou um contrato com o clube La Serena, do Chile. Em seguida, a lide se divide em dois caminhos, que acabam se misturando: o administrativo, com a emissão do Certificado de Transferência Internacional (CTI) e o mérito da questão, que envolve o conflito entre normativas e a possibilidade de pagamento de indenização ao clube por parte do jogador pela suposta quebra contratual.

Inicialmente, o primeiro tópico foi analisado pela entidade suíça, provocada para solucionar o litígio. Todavia, antes de adentrar o teor das decisões, com um laudo recém publicado pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS), se faz necessário explicar o conceito do CTI.

Com efeito, para que uma transferência internacional possa ser concretizada e considerada tempestiva, a Federação Nacional do clube de destino do jogador deve requerer o CTI antes do fechamento do mercado.

No entanto, para que ele seja solicitado, o procedimento deve passar por uma primeira etapa, na qual as equipes devem subir na plataforma do Transfer Matching System (TMS) – elaborada pela FIFA para armazenamento de dados das transferências internacionais – as informações e os documentos pertinentes, presente no artigo 4, do anexo 3 do RSTJ, como, por exemplo, a natureza da operação (permanente ou temporária), os nomes dos intermediários dos jogadores/clubes que atuaram nas negociações, os dados bancários, a remuneração do jogador na nova equipe, o mecanismo de solidariedade e a indenização por formação, os dados pessoais do atleta.

Havendo uma congruência de informações e corretude nos documentos, a Federação do país do clube contratante solicita o CTI para a Federação do clube de origem que, não existindo objeções do clube afiliado, expede o CTI, juntamente com o passaporte do jogador e informa se ele possui alguma sanção pendente.

Entretanto, a FIFA adota uma postura mais protetiva em relação aos menores, que detém um procedimento de transferência distinto. A aprovação da operação, que deve estar em conformidade com o artigo 19, passa pelo crivo do antigo Comitê do Status do Jogador, ora parte do Tribunal do Futebol, antes do requerimento do CTI.

Por fim, com a expedição do CTI, o jogador já pode ser inscrito e está apto para atuar. Todavia, em último recurso, uma medida provisória pode ser tomada pela FIFA para que se possa registrar o desportista fora do período estabelecido pela Federação Nacional ou contrariando uma retenção ou mau uso do TMS por uma Federação ou clube. Para tanto, é necessário que o antigo clube tenha adotado um comportamento considerado abusivo, com o condão de ocasionar a ruptura unilateral da relação por justa causa, se recusado a fornecer os documentos ou informações, ou que a Federação do clube de origem tenha se recusado a emitir tal certificado, por exemplo.

Sendo assim, a entidade máxima do futebol prevê a possibilidade dessa medida justamente para proteger os profissionais que ficaram desempregados devido a essa conduta ilegítima do antigo empregador/Federação ou aos que querem se transferir, e que, ao mesmo tempo, se encontrem incapacitados de perceber uma renda por causa das restrições impostas pelos períodos de registro fixados. Preservou-se, portanto, a liberdade de locomoção do desportista em detrimento até de uma possível conduta inadequada do próprio futebolista, que poderá ser questionada em momento posterior.

No caso concreto, a Federação Chilena solicitou o CTI à CBF, através do TMS, o que foi recusado pela entidade brasileira, posto que o contrato do jogador com o São Paulo ainda estava em vigor, em consonância com o artigo 8º do anexo 3 do RSTJ, que prevê essa possibilidade. Da mesma forma, esse mesmo dispositivo concede a oportunidade à Federação do clube de destino pleitear, junto à FIFA, a expedição provisória do CTI.

Apesar da argumentação da CBF, o Comitê do Status do Jogador concedeu o CTI solicitado pela Federação Chilena para que o jogador pudesse atuar pelo seu clube filiado, ressalvando que essa decisão não analisaria o mérito da suposta ruptura contratual pelo jogador, que já havia sido submetida à Justiça do Trabalho aqui no Brasil.

Irresignado, o São Paulo interpôs um recurso ante ao CAS[4], alegando, em síntese, que não havia circunstâncias excepcionais para a concessão do CTI de maneira provisória, bem como a decisão apelada havia ignorado o desejo do clube de continuar na relação laboral com o jogador. Por fim, solicitou que o árbitro único reconhecesse a competência exclusiva da jurisdição da Justiça do Trabalho, em São Paulo, para a resolução do conflito ou, alternativamente, que determinasse o imediato retorno do atleta ou reconhecesse a obrigação do jogador em indenizar o clube pela quebra contratual.

A decisão do CAS referendou a decisão da FIFA pela emissão do CTI, uma vez que o São Paulo não possuía legitimidade ativa para apelar, já que não participou do procedimento em primeira instância. Não podemos olvidar que a emissão e solicitação do CTI representam um ato administrativo que envolve duas Federações, conceito pelo que não se enquadra o clube paulista. Por último, ressaltou que o mérito da questão (terminação precoce do contrato de trabalho) não era alvo da demanda e tão somente a expedição do CTI.

Por conseguinte, no momento oportuno, poderia ser submetido tanto à Justiça Brasileira, como também ao Tribunal do Futebol, com a inclusão do clube que teria induzido[5] à quebra no polo passivo, além do jogador. Esse conceito foi explicado aqui em outro artigo, inclusive expondo a possibilidade de sanções esportivas para ambas as partes.

Como podemos observar, os conceitos acabaram se misturando e a discussão do mérito ainda está pendente de uma decisão pela Justiça do Trabalho. Contudo, algumas dúvidas vêm à tona: a jurisdição brasileira aplicaria os regulamentos privados da FIFA e da CBF em detrimento de uma Lei ordinária (Lei Pelé)? A resposta, em um primeiro momento, é negativa.

Do mesmo modo, o jogador teria capacidade financeira para pagar a indenização prevista no contrato em caso de uma condenação? Ajuizando esse pleito ante a FIFA, incluindo o clube chileno na lide, pois, obviamente, ele tem mais poder econômico, seria vantajoso ao São Paulo? Igualmente, ambas as respostas são negativas.

Nesse contexto, a existência de um elemento internacional (clube chileno), atrairia a competência da FIFA, que seria obrigada, evidentemente, a aplicar a sua normativa, o que seria extremamente desfavorável ao time paulista, pois expressamente veda contratos com duração superior a 3 anos.

Essa questão tem sido alvo de debate entre clubes brasileiros, com a liderança do presidente do Fluminense, Mário Bittencourt, que pleiteia um tratamento diferente aos países tradicionalmente exportadores de jogadores, como o Brasil, com o intuito de proteger as equipes formadoras ao longo prazo. Diversas entidades no país já estão passando a assinar o primeiro contrato com duração de três anos.

Sob outro viés, muito embora possa trazer mais estabilidade ao futebolista em início de carreira, um contrato mais longo pode representar uma defasagem salarial diante do rendimento esportivo real do jogador e até uma transferência para clubes estrangeiros, a depender do valor da multa, amarrando o atleta ao clube, sob aquelas circunstancias pactuadas inicialmente. Recorde-se que não há limite de valor da cláusula indenizatória para clubes estrangeiros, em atenção ao disposto pelo artigo 28, § 1º, inciso II, da Lei Pelé.

Conforme o exposto, esse conflito entre as normativas tende a pesar um pouco mais na direção do regulamento da entidade suíça, principalmente nos casos internacionais. Nesse sentido, é fundamental implementar uma equiparação entre a legislação brasileira e o regulamento privado, para evitar litígios dessa natureza. Outrossim, criar mecanismos que possam defender o clube formador, além dos já existentes, conjuntamente com o melhor interesse do atleta e, em certos lugares, de um menor de idade, é primordial para a evolução do esporte.

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[1] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 29.06.2022

[2]Lei Pelé – L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 29.06.2022

[3] RNTAF – 20220103141959_422.pdf (cbf.com.br) – última consulta: 29.06.2022

[4] CAS-2020-A-7468-Sao-Paulo-FC-v-FIFA-Federacion-de-Futbol-de-Chile-CD-la-Serena-Lucas-Fasson-Dos-Santos.pdf – última consulta: 29.06.2022

[5] A figura jurídica do indutor no futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 29.06.2022

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