O art. 2º, XI, da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé), a antiga lei geral do esporte, prevê como um dos princípios basilares do desporto nacional a segurança dos atletas. A exigência de contratação de seguro de vida e de acidentes pessoais para os atletas também consta dos art. 29, § 6º, III, e do art. 45 da mesma lei.
No entanto, a antiga lei geral, hoje ainda vigente, não considera como profissional o atleta de esportes de combate, pois, em seu artigo 28-A[1], faz menção à figura do autônomo regido por contrato de natureza civil, o que é o caso dos atletas da luta[2].
Isso ocorre porque o art. 28 da Lei Pelé define que a atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo firmado com entidade de prática desportiva, o que não ocorre (ou não é a regra) nos esportes de combate.
Não obstante, a nova Lei Geral do Esporte traz diferente previsão em relação à figura do atleta profissional, se não, vejamos:
LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023
(…)
Subseção II
Dos Atletas
Art. 72. A profissão de atleta é reconhecida e regulada por esta Lei, sem prejuízo das disposições não colidentes contidas na legislação vigente, no respectivo contrato de trabalho ou em acordos ou convenções coletivas.
Parágrafo único. Considera-se atleta profissional o praticante de esporte de alto nível que se dedica à atividade esportiva de forma remunerada e permanente e que tem nessa atividade sua principal fonte de renda por meio do trabalho, independentemente da forma como recebe sua remuneração. (grifo nosso)
Pois bem, se o lutador compete em alto nível, de forma remunerada (seja por bolsa ou prêmio da competição etc.) e de maneira permanente, auferindo dessa atividade sua principal fonte de renda, estar-se-ia diante da figura do atleta profissional.
Desta forma, o atleta teria direito à garantia de sua integridade física e à contratação de seguros e exames pela organização do evento, que passa a ser profissional quando têm atletas profissionais em seus quadros, conforme previsão do mesmo texto legal, em seu art. 83 e 84, in verbis:
Art. 83. Considera-se direcionada à prática esportiva profissional a organização esportiva, independentemente de sua natureza jurídica, que mantenha atletas profissionais em seus quadros.
Art. 84. São deveres da organização esportiva direcionada à prática esportiva profissional, em especial:
(…)
III – submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática esportiva;
V – promover obrigatoriamente exames periódicos para avaliar a saúde dos atletas, nos termos da regulamentação;
VI – contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, com o objetivo de cobrir os riscos aos quais os atletas e os treinadores estão sujeitos, inclusive a organização esportiva que o convoque para seleção;
Digna de nota é a questão da discussão acerca da “dedicação à atividade esportiva de forma remunerada e permanente” e da atividade de luta como “principal fonte de renda”. A lei não é clara em relação às definições desses requisitos.
A realidade da luta no Brasil é bastante complexa. Os atletas não têm eventos à disposição para lutar o tempo todo. Muitos dependem de outros trabalhos para se manterem e custearem suas despesas enquanto aguardam por lutas.
Ainda que tenhamos lutadores trabalhando como personal trainers ou instrutores de academia, muitos o fazem por falta de opção. Desejariam serem lutadores full time, mas os valores ganhos a título de premiação ou mesmo as bolsas de luta não são suficientes às vezes nem para pagar os curativos das batalhas[3].
Mesmo que desempenhem funções diferentes em determinados momentos, os lutadores costumar assim denominar-se em redes sociais. A luta está vinculada às suas atividades do dia-a-dia. Há mesmo aqueles que trabalham em academias em troca da possibilidade de poder lá treinar para lutar em eventos.
Isso faria com que eles cumprissem os requisitos da “dedicação à atividade esportiva de forma remunerada e permanente”, pois estão, por intermédio do seu trabalho, se preparando para lutar, fazendo da luta sua principal fonte de renda.
Porém, a ausência de esclarecimento em relação a esse ponto pode servir de pretexto para entidades desportivas evitarem a obrigação de contratar o seguro e fazer exames nos atletas.
Como decorrência lógica, até para cobrir os danos decorrentes da responsabilidade objetiva, tais entidades já deveriam mesmo antes da vigência da nova lei contratar seguros de acidentes e de vida para os atletas de esportes de combate.
Cumpre esclarecer que, mesmo que o atleta celebre contrato com cláusula que preveja a desoneração da organização esportiva profissional sobre despesas com lesões[4], pode-se alegar que o caráter de adesão, de hipossuficiência, de dependência econômica ou de acesso ao labor não o permite negociar, afigurando-se um vício de consentimento que comprime a autonomia, a livre manifestação de vontade[5].
Ainda que algumas entidades venham a alegar que os esportes de combate não têm estrutura para comportar tais obrigações, a legislação não os isenta de cumprir com as novas questões de segurança.
A lei aí está para ser cumprida e preservar a integridade dos atletas.
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[1] LEI Nº 9.615, DE 24 DE MARÇO DE 1998. Art. 28-A. Caracteriza-se como autônomo o atleta maior de 16 (dezesseis) anos que não mantém relação empregatícia com entidade de prática desportiva, auferindo rendimentos por conta e por meio de contrato de natureza civil.
[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. A exclusividade nos contratos de lutadores profissionais de MMA: há prestação de trabalho intermitente?. Lei em Campo, Site, 10 abr. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-exclusividade-nos-contratos-de-lutadores-profissionais-de-mma-ha-prestacao-de-trabalho-intermitente. Acesso em: 22 jan. 2024.
[3] AG FIGHT. UFC: Alex ‘Poatan‘ rebate provocação e acusa Wallid Ismail de ‘brincar com sonhos‘ no Jungle Fight. ESPN BR, 1 jun. 2022. Disponível em: https://www.espn.com.br/mma/artigo/_/id/10459591/ufc-alex-poatan-rebate-provocacao-e-acusa-wallid-ismail-de-brincar-com-sonhos-no-jungle-fight. Acesso em: 22 jan. 2024.
[4] COSTA, Elthon José Gusmão da. A assunção do risco e os contratos no UFC. Lei em Campo, 30 out. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-assuncao-do-risco-e-os-contratos-no-ufc/. Acesso em: 22 jan. 2024.
[5] RAMOS, Rafael Teixeira. Despesas por lesão (acidente de trabalho) do atleta e treinador profissional: aplicação da Lei Pelé ou Lei Geral do Esporte?. Lei em Campo, 28 ago. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/despesas-por-lesao-acidente-de-trabalho-do-atleta-e-treinador-profissional-aplicacao-da-lei-pele-ou-lei-geral-do-esporte/. Acesso em: 22 jan. 2024.