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A vez dos russos: a insurreição dos clubes contra a prorrogação dos efeitos do anexo 7 do RSTJ

Inevitavelmente, a ocorrência de um conflito armado entre Rússia e Ucrânia traz consequências para a maior parte do mundo. Simultaneamente, em reação ao confronto, os Estados impõem sanções econômicas não somente ao país russo, como também aos grandes empresários e as grandes empresas russas, tentando estrangular financeiramente de modo a evitar o agravamento dos ataques bélicos e, consequentemente, mais perdas de vidas.

Da mesma forma, na parte humanitária, a guerra produz efeitos imediatos e irretratáveis como, por exemplo, a fuga de milhões de refugiados, lares e famílias destroçados. A comunidade internacional, principalmente a europeia, sob a ameaça de um enfrentamento perene no antro do continente, pareceu se unir contra o ataque, incluindo até alguns países que detinham uma posição tradicionalmente neutra, como a Suíça.

Diante disso, o mundo do esporte, liderados pela FIFA e pelo COI, resolveu não fechar mais os olhos para as gravíssimas violações de direitos humanos cometidos e, saindo da histórica neutralidade política, ditou pesadas punições às Federações Russas e seus atletas.

Com efeito, mais detidamente no futebol, a FIFA e a UEFA suspenderam a seleção russa e os clubes russos de todas as competições internacionais, o que foi chancelado pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS) no mês passado, negando o recurso[1] de ambos.

Contudo, ainda era necessária a resolução dos problemas das relações trabalhistas entre os jogadores com os clubes russos e ucranianos. Nessa esteira, ressalte-se que foi criada, ainda que de modo momentâneo, uma enorme insegurança jurídica, posto que os jogadores estavam impedidos de exercer a sua profissão. Some-se a isso, as especulações de mercado àquela época de várias equipes interessadas em contar com as suas prestações.

Concomitantemente, do outro lado da relação, clubes (empregadores) que haviam feito um investimento por eles estavam totalmente desamparados, e, ao mesmo tempo, conforme já mencionado, existiam contratos em vigor de impossível prestação. O resultado isso tudo poderia gerar numerosos litígios.

Sob esse viés, foi feito algo semelhante ao que sucedeu durante a pandemia do COVID-19. A FIFA editou um anexo exclusivamente para tratar sobre esse assunto, que ganhou o nome de disposições transitórias relativas à situação excepcional derivada da Guerra na Ucrânia e o número 7 no Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[2].

Sem embargo, não podemos olvidar que essa parte é aplicável somente se houver o elemento da internacionalidade nos contratos entre jogadores/treinadores com membros filiados à Federação Russa ou Ucraniana, ou seja, se uma das partes for estrangeira. No caso concreto, obviamente, se o jogador ou treinador for considerado estrangeiro. Por sua vez, a normativa emanada do Poder Público é que deve prevalecer no caso entre futebolistas/treinadores e clubes de um mesmo país.

Para explicar com maiores detalhes o que seria feito, a entidade divulgou a circular de nº 1787[3], expondo os principais pontos do anexo 7, que foram debatidos com especialistas na área do desporto e também com todas as partes envolvidas, contando com a representação da FIFPRO, espécie de sindicato internacional dos futebolistas.

Naquela época, ficou estabelecido que os contratos dos profissionais internacionais que atuassem na Ucrânia, salvo se fosse acordado de maneira distinta entre partes, estaria automaticamente suspenso até 30 de junho deste ano. Por outro lado, não há uma suspensão automática para aqueles que atuassem na Rússia, uma vez que seria considerada uma escolha do profissional, que poderia suspender, de maneira unilateral, desde que não tivessem chegado a um mútuo acordo com o clube até o dia 10 de março ou se tivesse sido pactuado algo diferente.

Em outras palavras, a suspensão contratual implica na momentânea interrupção da obrigação da prestação dos serviços desportivos pelos treinadores/jogadores e, por conseguinte, a obrigação de remuneração dos mesmos por parte dos clubes.

Ocorre que, entretanto, por meio da Circular nº 1800, a FIFA resolveu estender os efeitos do anexo 7 por mais um ano, desde que os futebolistas não chegassem a um acordo com o clube antes de 30 de junho deste ano, um dia antes da abertura da janela de transferência[4] na Ucrânia e cerca de 10 dias após a publicação da circular. Isso tudo, provocou a irresignação dos clubes ucranianos e russos.

Em primeiro lugar, discorramos sobre a insatisfação das equipes do país que sofreu os ataques, protagonizado pelo Shaktar, que possuía mais de 10 estrangeiros no seu elenco. A entidade ajuizou uma demanda junto ao CAS[5] requerendo uma compensação de 50 milhões de euros pelos supostos prejuízos causados pela FIFA com a prorrogação dos efeitos do anexo 7 por mais um ano.

Para isso, aduz que não foi consultado sobre essa mudança e que a divulgação da extensão, 9 dias antes do prazo para o mútuo acordo e 10 dias para a abertura da janela, foi fundamental para a mudança de rumo em diversas tratativas em que se negociava a venda de direitos econômicos de jogadores para outros clubes.

Dentre eles, podemos citar os jogadores Manor Solomon, que deverá seguir para o Fulham, da Inglaterra, e do brasileiro Tetê, que acabou renovando seu empréstimo com o Lyon, da França, por mais um ano. Esse caso foi analisado minuciosamente em outro artigo, nessa mesma seção.[6]

Posteriormente, irresignados com a perda dos jogadores devido a extensão dos efeitos do anexo 7, os clubes russos recorreram ao TAS não somente para receber uma indenização da FIFA, como também responsabilizar as entidades de destino dos futebolistas, dentre elas, algumas equipes brasileiras. Para tanto, alegam que os jogadores estavam sendo induzidos a ativar a opção prevista pelo regulamento e, portanto, os clubes estariam estimulando uma quebra contratual, vulnerando a sua estabilidade.

Todavia, antes de analisar o caso concreto, é impositivo realizar uma breve explanação sobre o que seria considerado um clube indutor. Como é sabido, o contrato é um acordo de vontades entre duas ou mais partes, onde se estabelece deveres e obrigações, sendo capaz de gerar, modificar ou extinguir direitos. Entretanto, esse instrumento também pode produzir efeitos sobre terceiros, que devem respeitar as obrigações contratuais e atuar em conformidade com o princípio corolário da boa-fé, fundamental em todas as relações jurídicas.

Nesse sentido, mais precisamente nos contratos de trabalho no âmbito do futebol, surge a figura do indutor, que pode ser uma pessoa, física ou jurídica, comumente uma entidade desportiva, alheia ao contrato, que provoca, estimula ou induz a uma das partes ao inadimplemento e/ou a sua terminação precoce. Esse elemento ganha uma atenção especial da FIFA em seu ordenamento e em suas decisões.

Isso porque, um dos princípios norteadores do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores (RSTJ) é o da estabilidade contratual, em que a entidade suíça busca incessantemente que os contratos sejam cumpridos em sua totalidade. Sendo assim, em via de regra, não podem ser terminados antes do prazo, salvo por comum acordo entre as partes ou na existência de justa causa, já explicada aqui em outra oportunidade[7].

É bastante comum escutar de torcedores ou ler em algumas matérias na imprensa esportiva algo sobre um clube, estranho à relação contratual, que é acusado de “aliciar” ou “assediar” jogadores sob contrato com outro clube, geralmente jovens, para que rompam o seu contrato e assinem pela sua equipe.

Nesse contexto, a entidade máxima do futebol é severa e impõe mecanismos para evitar a terminação ou para punir quem termina o contrato, de maneira antecipada e unilateral, sem a existência de justa causa, contidos no artigo 17. Como não poderia deixar de ser, os terceiros indutores também são passíveis de sanções esportivas e de pagar a indenização ao clube que sofreu os danos da terminação precoce sem causa justificada.

Posto isso, devemos destacar que os contratos entre clubes russos e jogadores estrangeiros não estão sendo rescindidos e sim, suspensos, dentro daquilo que foi estabelecido pela normativa, criada por uma situação excepcional. Não há, logo, uma quebra contratual, muito menos um inadimplemento. Os clubes futuros e os atletas/treinadores estão agindo em conformidade com o regulamento. Porém, é fundamental iluminar o aspecto sancionador dessa medida.

Com certeza, diferentemente do exemplo da Ucrânia, os jogadores que atuam na Rússia, muito embora estejam impedidos de jogar as competições internacionais pelos os seus clubes, continuaram exercendo sua profissão nos campeonatos nacionais na temporada passada e nessa também continuarão. Não há cerceamento total do direito do atleta a treinar e muito menos a competir. Evidentemente, existe um contorno pedagógico na medida adotada pela FIFA.

Igualmente, o anexo foi impreciso ao não dispor se esse tempo de suspensão contratual seria adicionado no prazo de término da avença. Afinal, o clube que contratou o jogador, ainda que eximido do pagamento da remuneração, teria despendido uma vultosa quantia de taxa de transferência e, automaticamente, perderia um ano de contrato, sem reposição. Atualmente, salvo em comum acordo, os contratos suspensos não estão sendo prorrogados de maneira imediata. Há um prejuízo para as entidades ucranianas e russas devido a omissão da normativa.

Não obstante a presença de nuances punitivas, o pleito dos clubes russos contra a FIFA é de difícil êxito, posto que a sanção aplicada às equipes e federações russas já nos direciona para a manutenção da extensão dos efeitos do anexo 7 por parte do CAS.

Decerto, todas as mudanças provisórias aplicadas pela FIFA foram para resguardar, acima de tudo, o direito ao atleta ao exercício da profissão juntamente com a proteção dos direitos humanos, em reação ao conflito armado, prevalecendo sobre os direitos dos clubes. No entanto, esperemos os próximos passos desse litígio, que nos reserva uma boa discussão jurídica.

Crédito imagem: getty images

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[1] TAS respalda Fifa e Uefa e clubes russos não disputarão torneios na Europa – 15/07/2022 – UOL Esporte – última consulta: 10.08.2022

[2] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 10.08.2022

[3] Circular nº 1787 da FIFA –  1787_Temporary-rules-addressing-the-exceptional-situation-deriving-from-the-war-in-Ukraine_EN.pdf (fifa.com) – última consulta: 10.08.2022

[4] Calendário com as datas das janelas de transferência –  Portrait Master Template (fifa.com) – – última consulta: 10.08.2022

[5] Shakhtar Donetsk cobra 50 milhões de euros da FIFA no CAS por regra que suspende contratos de jogadores estrangeiros. Tribunal terá difícil missão de encontrar equilíbrio – Lei em Campo – última consulta: 10.08.2022

[6] O caso Shakhtar: insurreição dos clubes às medidas provisórias – Lei em Campo – última consulta: 10.08.2022

[7] A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 10.08.2022

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