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Caso Djokovic e o futuro das competições desportivas

Na última semana, inevitavelmente, o evento mais comentado do esporte foi o veto a participação de Novak Djokovic no Aberto da Austrália[1], um dos quatro torneios mais importantes e que abre a temporada do tênis, devido a recusa em apresentar o passaporte da vacina. Isso porque, não somente pelo significado do ato, como também pela figura do tenista, que, sem dúvidas, está entre os melhores da história do seu desporto.

Além disso, a proibição de estadia no território australiano implicou na perda da possibilidade de ultrapassar Roger Federer e Rafael Nadal na liderança de títulos dos torneios Grand Slam, meta reconhecida publicamente pelo jogador. Contudo, a convicção pelo discurso da não obrigatoriedade da vacinação acabou se sobressaindo.

Com efeito, faz-se necessário traçar uma linha cronológica para explicar, de maneira minuciosa, o que ocorreu com o sérvio e, posteriormente, partir para os desdobramentos dos feitos. Primeiramente, o jogador obteve uma exceção médica, concedida pela Federação Australiana de Tênis, para poder participar do torneio[2].

Ato contínuo, ao passar pelo controle aduaneiro, o tenista não apresentou os documentos necessários para a entrada no país. Foi retido e teve o visto cancelado pelas autoridades locais. Em seguida, o desportista recorreu à Justiça, alegando que o Estado de Melbourne e a Federação Australiana lhe haviam concedido essa isenção, baseada em premissas científicas, que passaram pelo crivo dos especialistas. Ademais, ele afirmou que teria sido detectado com coronavírus no dia 16 de dezembro.

Na primeira batalha, sem analisar o mérito, o juiz de primeira instância ordenou a liberação do sérvio, declarando nulo o cancelamento do visto, uma vez que as autoridades não lhe deram o tempo hábil prometido para a apresentação do documento, o que não estaria de acordo com o procedimento habitual.

Ocorre que, entretanto, a questão estava bem longe de ser dirimida. O ministro de Imigração, em um ato discricionário conferido pelo artigo 133C da Lei de Migração[3], decidiu cancelar o visto de Novak Djokovic. Para tanto, aduziu que era por motivos de saúde e ordem, com base no interesse público, afirmando que a sociedade australiana abdicou de muitos fatores durante a pandemia, fazendo um dos lockdowns mais rígidos do mundo, e, se fosse concedida uma exceção ao tenista, se estaria colocando em risco todo esse sacrifício e a ordem pública.

Irresignado, o sérvio recorreu da decisão diante do Tribunal Federal Australiano, que inadmitiu o recurso, ratificando a decisão de cancelar o visto e determinar a deportação do tenista. A propósito, seguem saindo à tona casos sobre uma possível omissão de informações no formulário de entrada ao solo australiano, bem como o não cumprimento de quarentena, como determina a lei, quando da contaminação de Djokovic em dezembro.[4]

Apesar disso, o presente artigo não discutirá o mérito do passaporte sanitário e da obrigatoriedade ou não da vacina, já tão acalorados nesse momento. O escopo de debate envolve os possíveis desdobramentos do evento para o próprio tenista e elucidar algumas dúvidas: quem tem a competência para determinar a obrigatoriedade do passaporte vacinal? Poderia constar nos regulamentos das principais competições? As relações trabalhistas poderiam ser impactadas com essa exigência?

Para o tenista número um do mundo, as consequências da recusa a tomar vacina podem implicar na impossibilidade de entrada em alguns países ou em recintos desportivos que exijam o passe sanitário, como a França, lugar de outro dos quatro Grand Slam (Roland Garros), em Paris[5]. A Assembleia Nacional[6] aprovou recentemente essa mudança e promete criar outro transtorno ao sérvio.

Paralelamente, com a não participação nos torneios mais relevantes devido a opção pessoal em não se vacinar, o atleta pode ter sua posição no ranking afetada e, por conseguinte, seus contratos de patrocínio, principal fonte de renda junto com as premiações, posto que seus patrocinadores não terão suas marcas expostas. Outrossim, eles podem suscitar que a opinião do tenista, com viés negacionista, poderia atingir os negócios e a imagem da marca, dando azo a uma multa ou até a resolução, dependendo das disposições contratuais.

Nesse contexto, a Lacoste, fornecedora de uniforme do sérvio, começa a especular sobre os desdobramentos contratuais. A título de ilustração, o astro da NFL (Liga de Futebol Americano) Aaron Rodgers perdeu seu patrocínio com uma empresa do ramo da saúde, que já durava nove anos, por se recusar a se vacinar.[7]

Por outro lado, uma das dúvidas mais recorrentes é sobre a possibilidade de uma entidade privada, no caso das Federações, por meio dos seus regulamentos de competições, exigir a vacinação obrigatória como condição de elegibilidade dos jogadores. Em outras palavras, se elas podem determinar o passe sanitário como requisito obrigatório para a participação do atleta nos jogos organizados.

Decerto, a questão está longe de estar pacificada. O Estatuto da UEFA, no seu artigo 2º, que estabelece os objetivos da entidade, institui que cabe ao órgão responsável pelo futebol europeu organizar e conduzir as competições respeitando a saúde dos jogadores, o que poderia incluir a exigência da vacinação.

Do mesmo modo, muito embora esteja mais enfocada nas práticas ligadas à combinação de resultados, inclui a previsão de que é função dela prevenir todos os métodos ou práticas que possam comprometer a regularidade de jogos ou competições. Ou seja, a falta de vacinação aumenta a probabilidade de um atleta adquirir sintomas graves oriundos do vírus, prejudicando a participação dos jogadores e o andamento regular do torneio. Portanto, não haveria nenhum óbice em seu regulamento para aplicação dessa exigência.

Concomitantemente, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) já estuda medidas para obrigar a imunização dos jogadores para os campeonatos que organiza em 2022.[8] Os protocolos de saúde, para competições e para treinamentos, emitidos pelas associações, também podem estabelecer um tratamento diferenciado aos futebolistas não vacinados.

Ressalte-se que as Federações/Ligas ainda estão um pouco reticentes quanto à imposição da obrigatoriedade como requisito de elegibilidade, uma vez que a chance de judicialização e, consequentemente, paralização dos campeonatos são enormes, o que prejudicaria a estabilidade das competições.

No entanto, não podemos olvidar que o papel majoritário de combate a pandemia continua sendo do Estado. Não obstante a questão da obrigatoriedade de vacinação, que permanece um tabu para os países – foi implementada inicialmente na Áustria[9] e já é debatida no antro da União Europeia – [10] é valido mencionar que os Estados podem impor a apresentação do passe sanitário para a entrada no país, para acessar os recintos desportivos ou até uma quarentena para não vacinados.

Não é raro ver exemplos pelo mundo de desportistas que foram impedidos de atuar devido a algumas das restrições de entrada já mencionadas acima, como, por exemplo, Szczesny, goleiro polonês da Juventus, na final da Supercopa da Itália[11], o jogador de basquete Kyrie Irving, impossibilitado de atuar nos jogos do Brooklyn quando joga em Nova Iorque,[12] e o lateral da seleção brasileira Alexsandro[13], que não foi convocado por não estar totalmente imunizado.

Por último, deve-se analisar as consequências da recusa a vacinação nas relações laborais. Nesse sentido, ainda não foi concedida nenhuma resolução contratual devido a recusa da vacinação pelos órgãos da FIFA e pelo TAS, o que não deve gerar, por si só, a demissão por justa causa.

Da mesma forma, o tema também é discutido no âmbito nacional, em razão da edição de uma portaria pelo Ministério do Trabalho, que vetou a demissão e a exigência do passaporte sanitário por parte do empregador ao empregado e deve ter sua inconstitucionalidade avaliada pelo Supremo Tribunal Federal.[14]

Convém aclarar que esse mesmo órgão, no seio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6586 e 6587, fixou o entendimento de que o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força.[15]

Todavia, retornando-se a esfera desportiva, se a exigência da imunização completa se tornar um requisito essencial para a participação do atleta nos torneios e esse mesmo desportista, em virtude disso, passe a não atuar a maioria dos jogos, além de representar um risco a si e aos seus companheiros, pode ser considerado um motivo para justa causa. Isso porque, o jogador não poderia cumprir, por escolha própria, o principal objeto do contrato profissional desportivo, que é a atuação em partidas oficiais.

Sob este viés, o impacto da não vacinação do atleta pode abarcar também o aspecto financeiro, com imposição de multas ou redução proporcional do salário, como ocorreu no caso dos jogadores do Bayern de Munique[16] e de Kyrie Irving[17]. Diante disso, alguns clubes já estão mudando a sua política de contratações, fechando as portas para os futebolistas não vacinados[18], como, por exemplo, alguns clubes da Premier League, dentre eles o Liverpool, tendo em vista os constantes desfalques e adiamentos de partidas nesse início de ano.

Conforme o exposto, a recusa a vacinação tem diversas nuances, capazes de afetar todos os membros do esporte. O ordenamento público e privado, fundamentais para a correta apreciação da lex sportiva, continuam em constante evolução, atendendo as demandas da sociedade e reagindo as situações inerentes à pandemia. O esporte deve cumprir sua função social e estar sempre em consonância ao combate ao vírus.

……….

[1] Djokovic perde na Justiça, é deportado e está fora do Aberto da Austrália – Esportes – Estadão (estadao.com.br) – – última consulta: 18.01.2022

[2] Djokovic obtém ‘exceção médica’ para disputar Aberto da Austrália – 04/01/2022 – UOL Esporte – última consulta: 18.01.2022

[3] Djokovic tem visto cancelado novamente e pode não disputar Australian Open – SBT – última consulta: 18.01.2022

[4] Djokovic admite erro em formulário de entrada na Austrália e se diz arrependido de não cumprir isolamento após testar positivo para Covid-19 – Lei em Campo – última consulta: 18.01.2022

[5] Após França passar a exigir vacinação obrigatória, Djokovic pode perder Roland Garros – Lei em Campo – última consulta: 18.01.2022

[6] França aprova passaporte vacinal e Djokovic poderá ser barrado em Roland Garros – Época Negócios | Mundo (globo.com) – última consulta: 19.01.2022

[7] Lacoste, patrocinadora de Djokovic, diz que irá conversar com o tenista após polêmica na Austrália – Esportes – Estadão (estadao.com.br) – última consulta: 19.01.2022

[8] Comissão médica da CBF quer exigir vacina a jogadores em 2022 (uol.com.br) – última consulta: 19.01.2022

[9] Áustria se tornará primeiro país da Europa a ter vacinação obrigatória contra a Covid-19 | Mundo | G1 (globo.com) – – última consulta: 19.01.2022

[10] União Europeia cogita tornar a vacinação obrigatória – Época Negócios | Mundo (globo.com) – – última consulta: 19.01.2022

[11] Goleiro desfalca Juventus por não ter certificado de vacina (uol.com.br) – – última consulta: 19.01.2022

[12] Brooklyn Nets afasta Kyrie Irving por recusa à vacina contra Covid-19 (yahoo.com) – – última consulta: 19.01.2022

[13] Tite diz que Renan Lodi não foi convocado por não ter imunização completa e afirma: ‘Vacina é responsabilidade social’ (yahoo.com) – – última consulta: 19.01.2022

[14] Portaria que proíbe demissão de não vacinados é inconstitucional, dizem advogados – 02/11/2021 – UOL Economia – – última consulta: 19.01.2022

[15] Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br) – – última consulta: 19.01.2022

[16] Bayern de Munique reduz salário de não vacinados contra a covid-19 (uol.com.br) – – última consulta: 19.01.2022

[17] Astro do Brooklyn Nets, Kyrie Irving recusa vacina e pode ficar fora da equipe | Mais Esportes | iG – – última consulta: 19.01.2022

[18] Liverpool: Klopp diz que não contrata jogadores que não se vacinaram (uol.com.br) – – última consulta: 19.01.2022

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