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‘Caso Figo’: O importante papel do direito na transferência do atacante português

Na quinta-feira retrasada, 25 de agosto, estreou no catálogo da Netflix ‘O Caso Figo: A transferência que mudou o futebol’. O documentário, de 105 minutos, aborda uma das negociações mais controversas e paradigmáticas da história do futebol. O português Luís Figo se destacou no Barcelona, mas acabou se tornando persona non grata ao trocar o clube catalão pelo arquirrival Real Madrid. A mudança foi extremamente polêmica e o direito teve um papel fundamental nela.

“A transferência de Luís Figo do Barcelona para o Real Madrid foi, sem dúvida, uma das mais marcantes da história não só pela rivalidade entre os clubes, mas pelos valores astronômicos na época. Não podemos olvidar do surgimento de um dos maiores dirigentes da história do futebol, Florentino Pérez, que cumpriu uma promessa da campanha e, com o jogador português, deu início a era dos galácticos”, afirma João Paulo di Carlo, advogado especializado em direito desportivo. Ele abordou o tema em sua coluna semanal no Lei em Campo.

A partir dos anos 90, a base do futebol e do esporte, de uma maneira geral, começou a mudar. Isso porque, deixou de ser apenas uma modalidade esportiva para entrar no ramo do entretenimento. Diante disso, passou-se a apostar cada vez mais em um produto, com um aumento exponencial dos investimentos em marketing. O clube passou a ser um ativo comercial, veículo de exposição de grandes empresas, espelho da expectativa do próprio torcedor e, automaticamente, plataforma propulsora para o desenvolvimento econômico, esportivo e estrutural dele mesmo.

Com mais dinheiro, evidentemente, cria-se uma musculatura financeira capaz de trazer jogadores renomados que, automaticamente, atraem o público, aumentam o rendimento esportivo da equipe e geram mais receitas aos clubes. A década de 90 teve alguns pontos e personagens marcantes, como, por exemplo, a criação da Premier League (principal liga nacional do mundo), a expansão do número de clubes da maior competição do mundo (Champions League), e o surgimento de atletas excepcionais, que também foram fenômenos do marketing mundial, como Michael Jordan e Ronaldo Fenômeno, que exploraram com muito êxito essa nova era.

No início dos anos 2000 houve um caso emblemático que nos ajuda compreender a mudança do futebol: o caso Luís Figo. A título de ilustração, esse caso foi tão polêmico e importante para contexto mundial da modalidade aquela época que, atualmente, foi reproduzido pela plataforma Netflix e é um dos filmes de maior audiência na última semana.

“O filme é muito bem conduzido. Um relato documental, que une jornalismo e entretenimento. De maneira linear, didática e contagiante, apresenta uma transferência polêmica em que o direito teve papel decisivo. O caso mostra os entrelaçamentos permanentes entre ordem jurídica estatal e privada que fazem parte do esporte em diálogos horizontais e nem sempre tranquilos. “, diz Andrei Kampff, advogado e colunista do Lei em Campo.

O filme documental conta a história e os bastidores da transferência do futebolista português Luís Figo, até então um dos melhores jogadores do mundo e ídolo do Barcelona para o arquirrival Real Madrid. Essa movimentação deixou o mercado do futebol perplexo, uma vez que o jogador era muito identificado com o clube catalão, onde conquistou vários títulos. Não somente isso, mas as tratativas foram muito conturbadas, que ganharam contornos e reviravoltas dignos de uma novela de horário nobre.

Não bastasse o valor da negociação ter sido o maior da história até aquele momento – 60 milhões de euros –, o caso pode ser lembrado pelo surgimento de um dos dirigentes mais importantes e revolucionários de todos os tempos: Florentino Pérez. O magnata engenheiro civil e um dos maiores empresários da Espanha resolveu se candidatar ao posto de presidente do Real Madrid. Para isso, uma das maiores apostas para ganhar as eleições era trazer o jogador português e, futuramente, outras estrelas do futebol, formando, assim, um time que fosse referência mundial.

Nesse contexto, podemos afirmar que Florentino era um visionário, pois, já naquela época, vislumbrava que os jogadores emblemáticos seriam capazes de aumentar o patamar de uma entidade, internacionalizar a marca, alcançar lugares que jogadores comuns e nem os maiores títulos da galeria lotada do clube poderiam alcançar: o coração dos torcedores, fãs espalhados pelo globo e atração das grandes marcas.

Florentino Peréz foi eleito e cumpriu com a sua principal promessa, trazendo Luís Figo para o Real Madrid. Foi a primeira estrela, a pedra fundamental de um projeto que envolveu uma série de contratações marcantes, ficando conhecida como ‘Era dos Galácticos’, que contou com nomes como Zidane, Ronaldo, Beckham e Cannavaro e se repetiu no final dos anos 2000, com Cristiano Ronaldo, Kaká, Benzema, Bale e Kross.

Do mesmo modo, representou o marco para o futebol moderno em termos de negociação, uma vez que o melhor jogador do mundo de 2001 se transferiu para um rival direto, em um mesmo país, o que despertou a ira, revolta e protestos bem violentos da torcida catalã. Era a compreensão, não tão pacífica, de que o futebol havia realmente se tornado um negócio, uma indústria do entretenimento, onde tudo poderia acontecer quando duas partes estivessem dispostas e pagassem o que fosse necessário.

Nessa esteira, o caso Figo apresentou traços jurídicos bem importante, que não foram explicados pelo filme. Muitas perguntas ainda se perguntam como o Barcelona pôde liberar o jogador, todavia, a existência da cláusula era uma exigência da Legislação Espanhola.

Esse instrumento jurídico, que é pouco usual em outros países, através do Real Decreto 1006/1985 – que regula as relações trabalhistas dos desportistas profissionais – nos seus artigos 13 e 16, estabelece uma hipótese de extinção do contrato de trabalho por vontade exclusiva do jogador. Ou seja, quando o clube não deu causa à rescisão contratual. Importante explicar que não há mútuo acordo entre empregador e empregado.

Por conseguinte, institui que deve ser paga uma indenização ao clube, que, na ausência de pacto entre as partes, pode ser fixada pela Jurisdição Laboral. Obviamente, as entidades de prática desportiva fixam o valor da cláusula para não deixar o arbitramento nas mãos do Poder Judiciário. Exatamente esse dispositivo que foi utilizado por Figo para se transferir ao Real Madrid, antes do término contratual.

Igualmente, o Real Decreto estabelece que se o jogador, no prazo de um ano da data de extinção do contrato, for contratado por uma outra entidade, esta será responsável subsidiária pelo adimplemento dessa obrigação pecuniária. Na prática, as equipes acabam ativando essa cláusula para obter a liberação do jogador, quando não há acordo com o clube empregador.

Contudo, ultimamente, há muitas discussões jurídicas sobre a natureza dessa cláusula, também conhecida, em alguns lugares, como ‘cláusula buy-out’. O exercício desse dispositivo, concretizado com o pagamento, gera um questionamento: seria a expressão de um cumprimento contratual ou uma cláusula por descumprimento contratual?

O aspecto de cumprimento seria exatamente originado quando do exercício do pleno direito do atleta, garantido pelo contrato, bem como pela Legislação local, logo se estaria cumprindo algo que está estabelecido. Por outro lado, o descumprimento seria devido à quebra da expectativa de que aquele contrato seria cumprido até o prazo final, sendo, portanto, uma previsão que determina uma maneira de indenizar e recompensar um clube, que fora obrigado por Lei a colocar tal cláusula, pela quebra contratual.

Certo é que essa cláusula é muito utilizada até os dias atuais e continuará sendo na Espanha, inclusive com jogadores brasileiros como o atacante Neymar, do PSG. Quem não se lembra da cena marcante da entrega do cheque de 222 milhões de euros? Ademais, essa cláusula se torna mais interessante na medida que tem sido alvo de ricos debates na Corte Arbitral do Esporte (CAS), seja relativo à incidência do mecanismo de solidariedade ou da cláusula sell-on. Da mesma forma, ela foi alvo de inúmeras discussões acerca da tributação no país ibérico, ocorrido no caso Javi Martínez.

“A transação envolvendo Luís Figo foi importantíssima e inovadora em diversos aspectos para a alteração o futebol mundial, como a característica do mercado, os valores, a criação de novos conceitos, gerados através de um exercício de um direito do atleta garantido por uma normativa estatal. Quem diria que uma transferência poderia render um filme… Esporte é entretenimento e vice-versa”, finaliza João Paulo di Carlo.

Crédito imagem: getty images

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