O futebol é indescritível. Muitos escritores, autores, poetas e compositores tentaram expressar, em uma infinidade de letras, versos, rimas, canções o que pode representar esse esporte. Contudo, a infinidade de possibilidades e a imprevisibilidade de um esporte, que tem como característica o desafio constante da lógica, não permitem uma definição precisa e rechaçam qualquer poder de síntese.
A paixão, para uns, como os torcedores, prevalece sobre a razão. Para outros, como os jogadores e dirigentes, não seria o ideal que ela prevalecesse, porém a torcida espera muito além de boas prestações esportivas. Um ídolo nada mais é do que o representante do torcedor dentro de campo, uma referência de identificação cada vez mais rara no futebol moderno.
Some-se a isso o fato de o esporte não estar desassociado do mundo. Cada clube, cada torcida, cada cor estampada no uniforme carrega um passado cheio de histórias, contextos políticos, sociais, religiosos, guerras e particularidades. Como resumir uma modalidade e o público que assiste com tantas nuances e variáveis dentro e fora de campo?
A partir dos anos 90, a matriz do futebol e do esporte, de uma maneira geral, começou a mudar. Isso porque, deixou de ser apenas uma modalidade esportiva para entrar no ramo do entretenimento. Diante disso, passou-se a apostar cada vez mais em um produto, com um aumento exponencial dos investimentos em marketing. O clube passou a ser um ativo comercial, veículo de exposição de grandes empresas, espelho da expectativa do próprio torcedor e, automaticamente, plataforma propulsora para o desenvolvimento econômico, esportivo e estrutural dele mesmo.
Com efeito, com mais receitas, evidentemente, cria-se uma musculatura financeira capaz de trazer jogadores renomados que, automaticamente, atraem o público, aumentam o rendimento esportivo da equipe e geram mais receitas aos clubes. A década de 90 teve alguns pontos e personagens marcantes, como, por exemplo, a criação da Premier League (principal liga nacional do mundo), a expansão do número de clubes da maior competição do mundo (Champions League), e o surgimento de atletas excepcionais, que também foram fenômenos do marketing mundial, como Michael Jordan e Ronaldo, que exploraram com muito êxito essa nova era.
A evolução do conceito e do significado do esporte fora das quatro linhas, sem dúvida nenhuma, repercutiu dentro do campo. A imprevisibilidade dos resultados passou a figurar também nas negociações pelos atletas e nas tratativas. Com um mercado mais voltado para o racional e para a geração de receitas, ainda caberia espaço para o romantismo de outrora?
No início dos anos 2000 houve um caso emblemático que nos ajuda compreender a mudança do futebol: o caso Luís Figo. A título de ilustração, esse caso foi tão polêmico e importante para contexto mundial da modalidade aquela época que, atualmente, foi reproduzido com sucesso pela plataforma Netflix e é um dos filmes de maior audiência na última semana.
Em suma, o filme documental conta a história e os bastidores da transferência do futebolista português Luís Figo, até então um dos melhores jogadores do mundo e ídolo do Barcelona para o arquirrival Real Madrid. Essa movimentação deixou o mercado do futebol perplexo, posto que o jogador era muito identificado com o clube catalão, onde havia conseguido vários títulos. Não somente isso, mas as tratativas foram muito conturbadas, que ganharam contornos e reviravoltas dignos de uma novela de horário nobre.
Não obstante o valor da negociação ter sido o maior da história até aquele momento, o caso pode ser lembrado pelo surgimento de um dos dirigentes mais importantes e revolucionários de todos os tempos: Florentino Pérez. O magnata do ramo da construção civil e um dos maiores empresários da Espanha resolveu se candidatar ao posto de presidente do Real Madrid. Para tanto, uma das maiores apostas para ganhar as eleições era trazer o jogador português e, futuramente, outras estrelas do futebol, formando, assim, um time que fosse referência mundial.
Nesse contexto, podemos afirmar que Florentino era um visionário, pois, já naquela época, vislumbrava que os jogadores emblemáticos seriam capazes de aumentar o patamar de uma entidade, internacionalizar a marca, alcançar lugares que jogadores comuns e nem os maiores títulos da galeria lotada do clube poderiam alcançar: o coração dos torcedores, fãs espalhados pelo globo e atração das grandes marcas. O exemplo estava bem diante dos nossos olhos, pois Michael Jordan e o Dream Team americano de 1992, foram os grandes responsáveis pela globalização do basquete e do crescimento da marca da NBA.
Esse conceito é o que o advogado Marcos Motta, um dos maiores nome do Direito Desportivo e do Entretenimento do mundo, costuma dizer: “players are the new players”. No entanto, diga-se de passagem, esse artigo não pretende comparar um jogador ao histórico do clube ou à própria instituição. O escopo principal é exaltar a importância e o protagonismo de um futebolista para o mercado e para geração de receitas, engajamento, publicidade e outros fatores. Um jogador é sim capaz de mudar o clube de patamar financeiro, mas imaginem vários?
Florentino Peréz foi eleito e cumpriu com a sua principal promessa, trazendo Luis Figo para a capital. Foi a primeira estrela, foi a pedra fundamental de um projeto que envolveu uma série de contratações marcantes, ficando conhecida como era dos Galácticos, que contou com nomes como Zidane, Ronaldo, Beckham e Cannavaro e se repetiu no final dos anos 2000, com Cristiano Ronaldo, Kaká, Benzema, Bale e Kross.
Do mesmo modo, representou o marco para o futebol moderno em termos de negociação, uma vez que o melhor jogador do mundo de 2001 se transferiu para um rival direto, em um mesmo país, o que provocou a ira, revolta e protestos bem violentos da torcida catalã. Era a compreensão, não tão pacífica, de que o futebol havia realmente se tornado um negócio, uma indústria do entretenimento, onde tudo poderia acontecer quando duas partes estivessem dispostas e pagassem o que fosse necessário.
Nessa esteira, como não poderia deixar de ser, o caso Figo apresentou traços jurídicos bem importante, que não foram explicados pelo filme. É justamente esse o tema do presente artigo. Posto isso, muitas perguntas ainda se perguntam como o Barcelona pôde liberar o jogador, todavia, a existência da cláusula era uma exigência da Legislação Espanhola.
Esse corpo normativo, pouco usual em outros países, através do Real Decreto 1006/1985[1], que regula as relações trabalhistas dos desportistas profissionais, nos seus artigos 13 e 16, estabelece uma hipótese de extinção do contrato de trabalho por vontade exclusiva do atleta. Ou seja, quando o clube não deu causa à rescisão contratual. Frise-se, não há mútuo acordo entre empregador e empregado.
Por conseguinte, institui que deve ser paga uma indenização ao clube, que, na ausência de pacto entre as partes, pode ser fixada pela Jurisdição Laboral. Obviamente, as entidades de prática desportiva fixam o valor da cláusula para não deixar o arbitramento nas mãos do Poder Judiciário. Exatamente esse dispositivo que foi utilizado pelo futebolista português para se transferir ao Real Madrid, antes do término contratual.
Igualmente, o Real Decreto estabelece que se o jogador, no prazo de um ano da data de extinção do contrato, for contratado por uma outra entidade, esta será responsável subsidiária pelo adimplemento dessa obrigação pecuniária. Na prática, as equipes acabam ativando essa cláusula para obter a liberação do jogador, quando não há acordo com o clube empregador.
Contudo, ultimamente, há muitas discussões jurídicas sobre a natureza dessa cláusula, também conhecida, em alguns lugares, como cláusula buy-out. O exercício desse dispositivo, concretizado com o pagamento, seria a expressão de um cumprimento contratual ou uma cláusula por descumprimento contratual?
O aspecto de cumprimento seria exatamente originado quando do exercício do pleno direito do atleta, garantido pelo contrato, bem como pela Legislação local, logo se estaria cumprindo algo que está estabelecido. Por outro lado, o descumprimento seria devido à quebra da expectativa de que aquele contrato seria cumprido até o prazo final, sendo, portanto, uma previsão que determina uma maneira de indenizar e recompensar um clube, que fora obrigado por Lei a colocar tal cláusula, pela quebra contratual.
Decerto, essa cláusula é muito utilizada até os dias de hoje e continuará sendo na Espanha, inclusive com jogadores brasileiros como o Neymar. Quem não se lembra da cena marcante da entrega do cheque de 222 milhões de euros? Ademais, essa cláusula se torna mais interessante na medida que tem sido alvo de ricos debates no Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS), seja relativo à incidência do mecanismo de solidariedade ou da cláusula sell-on, tema abordado em outro artigo nessa mesma seção[2]. Da mesma forma, ela foi alvo de inúmeras discussões acerca da tributação no país ibérico, ocorrido no caso Javi Martínez.
Conforme o exposto, a transação envolvendo Luís Figo foi importantíssima e inovadora em diversos aspectos para a alteração o futebol mundial, como a característica do mercado, os valores, a criação de novos conceitos, gerados através de um exercício de um direito do atleta garantido por uma normativa estatal. Os comentários jurídicos foram feitos, agora, para quem não assistiu, recomendo ver os bastidores das negociações no Netflix. Quem diria que uma transferência poderia render um filme… Esporte é entretenimento e vice-versa.
Crédito imagem: Divulgação/Netflix
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[1] Real Decreto 1006/1985 BOE.es – BOE-A-1985-12313 Real Decreto 1006/1985, de 26 de junio, por el que se regula la relación laboral especial de los deportistas profesionales. – última consulta: 31.08.2022
[2] TMS 10 anos parte 2: O aumento do uso das cláusulas sell-on e a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte – Lei em Campo – última consulta: 31.08.2022