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Caso Sara Bjork Gunnarsdóttir e os direitos das atletas de futebol feminino frente à maternidade

Por Alice Laurindo[i]

Em 2021, a FIFA introduziu, em seu Regulations on the Status and Transfer of Players (“RSTP”) regras específicas acerca dos contratos celebrados com atletas de futebol feminino, sobretudo para resguardar seus direitos em caso de maternidade. Trata-se de importante e festejado[ii] avanço normativo, que, porém, deverá ser concretizado na realidade prática.

Diante disso, convém destacar o caso da jogadora islandesa Sara Björk Gunnarsdottír em face do Olympique Lyonnais, como importante paradigma para a referida concretização. Esta coluna se volta, então, a analisar a decisão que julgou o litígio, abordando os direitos das atletas de futebol feminino frente à maternidade.

Pois bem. A partir da edição 2021 do RSTP, foi incluído o artigo 18quater, com disposições específicas para atletas de futebol feminino. Através de tais normas, constou expressamente a vedação a qualquer previsão de suspensão de eficácia de contratos na modalidade em razão de licença-maternidade ou direitos em geral relacionados à maternidade.

Diante disso, qualquer rescisão em razão de maternidade de jogadora será considerada sem justa causa, sujeitando a agremiação ao pagamento de indenização calculada de forma específica, a partir da remuneração que a atleta deixou de auferir, somada ao equivalente a seis meses de seu salário. Além disso, a agremiação deverá ser penalizada com sanções desportivas, sendo proibida de registrar novas atletas por duas janelas consecutivas.

Não obstante, também foi regulamentado o direito das atletas à licença-maternidade de, ao menos, quatorze semanas, em período por ela selecionado, sendo-lhe garantido o direito de retornar às suas funções após o fim do referido período, mediante autorização médica. Em tais casos, deve-lhe ser proporcionada também a possibilidade de amamentar durante a prestação de seus serviços desportivos.

Com relação especificamente à gravidez, tendo em vista os riscos que pode haver em atuar como atleta profissional em tal estado, o RSTP faculta a jogadora a, durante a tal período, (a) continuar a prestar serviços esportivos (treinos e jogos) mediante autorização médica e de acordo com orientações sanitárias ou (b) prestar serviços alternativos à sua agremiação quando não houver autorização médica ou quando a atleta não se sentir confortável em atuar de forma desportiva.

Em ambos os casos, cabe à agremiação respeitar a decisão tomada pela jogadora, com aval médico, bem como formalizar plano para viabilizar a escolha tomada pela atleta.

Digno de nota que o Art. 18quater está incluído no rol de regras mandatórias do RSTP, que, portanto, devem ser incorporadas, salvo em caso de disposição mais favorável em âmbito local, em nível das associações nacionais.

Nesse sentido, o atual Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (“RNRTAF”) da CBF também prevê a vedação à validade jurídica do contrato de trabalho– seja com atleta ou treinadora – estar sujeito ao fato de a atleta estar grávida, engravidar ou gozar de licença-maternidade ou outros direitos relativos à maternidade. Aponte-se, ainda, que, através do Art. 86, §10º, da Lei Geral do Esporte, essa vedação foi ampliada, abarcando qualquer contrato celebrado com atletas mulheres, ainda que de natureza cível.

Não há, porém, previsão expressa quanto aos demais direitos consagrados no Art. 18quater do RSTP. Em especial, destaca-se que não há, no regulamento emanado pela CBF, a previsão da possibilidade de a atleta optar entre prestar serviços desportivos ou de outra natureza ao longo da gravidez.

Percebe-se, portanto, que o referido direito ainda não se encontra plenamente difundido, causando, ainda, dúvidas práticas.

Em razão é disso, é interessante mencionar o caso da jogadora islandesa Sara Björk Gunnarsdottír em face do Olympique Lyonnais, julgado pelo Dispute Resolution Chamber do Football Tribunal da FIFA (“DRC”) em 19 de maio de 2022, cujo inteiro teor da decisão foi publicado[iii].

Em resumo, a atleta foi contratada pela equipe francesa para atuar por duas temporadas, de 01 de julho de 2020 a 30 de junho de 2022, tendo informado sua gravidez à agremiação em março de 2021. À luz de opinião médica de que a jogadora não poderia continuar atuando como atleta profissional ao longo de tal período, a jogadora foi autorizada a se ausentar das dependências do clube, para permanecer na Islândia – mesmo porque ainda se estava no período de pandemia da Covid-19, que poderia trazer riscos à gestante.

Ocorre que o Olympique Lyonnais optou por reduzir o salário da jogadora, entendendo que essa se encontrava afastada de suas ocupações, solicitando, então, ao ser questionado sobre a redução, o retorno imediato à sede da agremiação. A jogadora questionou a postura do clube formalmente mais de uma vez, colocando-se à disposição para prestar serviços alternativos, mas ressaltando que jamais havia sido formulado plano nesse sentido pela agremiação.

Deflagrou-se litígio, então, acerca da possibilidade de a atleta prestar serviços alternativos ao longo de sua gravidez, debatendo-se se isso se trataria de direito ou obrigação, bem como se a execução de tal planejamento caberia à jogadora ou à agremiação.

Através de sua decisão, o DRC ressaltou que a possibilidade de a atleta prestar serviços alternativos à agremiação enquanto estiver grávida foi introduzida no regulamento como uma possibilidade para resguardar a atleta, sendo responsabilidade da agremiação fornecer os meios para que isso ocorra.

No caso concreto, foi considerado, ainda, que caberia ao Olympique Lyonnais deixar claro à jogadora que eventual retorno à Islândia levaria à sua redução salarial, caso essa fosse a sua intenção, bem como que a agremiação não cumpriu com a sua obrigação de oferecer plano para a prestação de serviços alternativos pela atleta ao longo de sua gravidez.

Tal situação foi agravada pelo fato de que a própria Sara se colocou à disposição para atuar de outra forma, em mais de uma ocasião.

Diante disso, o DRC condenou o Olympique Lyonnais ao pagamento da integralidade da remuneração da jogadora ao longo de sua gravidez.

Percebe-se, assim, que se trata de caso importante para a concretização dos direitos previstos no Art. 18quater, auxiliando na interpretação da possibilidade de a atleta prestar serviços alternativos ao clube ao longo de sua gravidez. Afinal, depreende-se da referida decisão que cabe à agremiação oferecer e viabilizar plano para adoção dessas novas funções.

Cabe a todos que atuam no mercado do futebol acompanhar, então, novas decisões sobre o tema, bem como envidar seus esforços para que os direitos relacionados à maternidade das atletas sejam observados na prática.

Crédito imagem: FIFPro

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[i] Graduada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em que cursa atualmente mestrado na área de processo civil, estudando as intersecções do tema com direito desportivo. Atua em direito desportivo e em direito do entretenimento no escritório Tannuri Ribeiro Advogados. É conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membra da IB|A Académie du Sport e do Laboratório de Pesquisa da Academia Nacional de Direito Desportivo – ANDD LAB.

[ii] Vide, nesse sentido, artigo escrito para o Lei em Campo sobre o assunto, à época da divulgação das alterações normativas, juntamente com Beatriz Chevis, cf. https://leiemcampo.com.br/futebol-feminino-e-maternidade-avancos-e-desafios/.

[iii] Disponível em https://digitalhub.fifa.com/m/7fa81ae621a4ebd0/original/Gunnarsdottir_19052022.pdf.

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