Pesquisar
Close this search box.

Comentários sobre a regulamentação de apostas nos esportes de combate

Desde o fim de 2022, o UFC está envolvido em uma investigação sobre jogos de azar depois que foram feitas alegações de fraude em apostas envolvendo o lutador Darrick Minner e seu treinador, James Krause[1].

Como resultado, a licença de Krause como treinador foi suspensa enquanto o caso estiver em andamento.

Após a suspensão de Krause, o UFC anunciou que qualquer lutador que continuasse a permanecer na equipe e sob a tutela de Krause não poderia competir dentro do octógono até que o caso fosse concluído. Por fim, Krause vendeu sua academia e todas as suas afiliadas.

Pouco tempo depois, o UFC introduziu regras que impediam atletas, treinadores e seus familiares próximos de apostar em eventos da promoção.

As regras que o UFC instituiu para impedir que seus lutadores e as pessoas próximas a eles apostassem nas lutas da promoção foram disponibilizadas por meio de um memorando[2] da empresa para os lutadores e seus gerentes.

A linguagem foi adicionada à política do código de conduta da empresa, embora grande parte das normas dessa política aparentemente não tenha sido aplicada há anos. Eles até mesmo foram além, acrescentando essas novas estipulações em seus contratos de lutadores da seguinte maneira:

“Os atletas estão proibidos de fazer qualquer aposta em si mesmos. Na maioria dos estados com apostas esportivas legalizadas, as apostas feitas por um atleta do UFC, diretamente ou por meio de terceiros, em qualquer luta do UFC são ilegais e podem resultar em sanção criminal. Os atletas também devem estar cientes de que, na maioria dos estados, essas mesmas proibições se aplicam a alguns ou a todos:

  1. parentes que moram na mesma casa que um atleta;
  2. treinadores, gerentes, manipuladores, preparadores esportivos, profissionais e equipes médicas do atleta;
  3. qualquer outra pessoa com acesso a informações não públicas sobre os participantes de qualquer luta do UFC;

Qualquer atleta que tome conhecimento ou tenha conhecimento de qualquer violação de apostas deve notificar imediatamente o UFC sobre qualquer incidente, de acordo com esta política de conduta do atleta do UFC.

Portanto, se o lutador apostar em uma luta do UFC sendo contratado do evento, já há disposição contratual de que ele não deveria fazer isso. O descumprimento dessa cláusula inclui penalidades e até rescisão.

Os americanos se tornaram jogadores prolíficos desde que a Suprema Corte dos EUA, em 2018, derrubou uma lei federal[3] que proibia as apostas esportivas na maioria dos estados[4]. As apostas esportivas legais podem ser realizadas em estabelecimentos presenciais, mas a maioria das apostas esportivas é feita on-line.

No Brasil, a recente Lei 14.790/2023, sancionada nos últimos dias do ano passado, veio para regulamentar as apostas de quota fixa no país, aquelas em que o apostador sabe, antes do resultado, a taxa de retorno, o que envolve eventos esportivos de luta.

A nova lei dispõe expressamente quais seriam os impedidos de apostar, se não, vejamos:

LEI Nº 14.790, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2023

(…)

CAPÍTULO VII

DOS APOSTADORES

Seção I

Dos Impedidos de Apostar

Art. 26. É vedada a participação, direta ou indireta, inclusive por interposta pessoa, na condição de apostador, de:

I – menor de 18 (dezoito) anos de idade;

II – proprietário, administrador, diretor, pessoa com influência significativa, gerente ou funcionário do agente operador;

III – agente público com atribuições diretamente relacionadas à regulação, ao controle e à fiscalização da atividade no âmbito do ente federativo em cujo quadro de pessoal exerça suas competências;

IV – pessoa que tenha ou possa ter acesso aos sistemas informatizados de loteria de apostas de quota fixa;

V – pessoa que tenha ou possa ter qualquer influência no resultado de evento real de temática esportiva objeto de loteria de apostas de quota fixa, incluídos:

a) pessoa que exerça cargo de dirigente desportivo, técnico desportivo, treinador e integrante de comissão técnica;

b) árbitro de modalidade desportiva, assistente de árbitro de modalidade desportiva, ou equivalente, empresário desportivo, agente ou procurador de atletas e de técnicos, técnico ou membro de comissão técnica;

c) membro de órgão de administração ou de fiscalização de entidade de administração de organizadora de competição ou de prova desportiva;

d) atleta participante de competições organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Esporte;

VI – pessoa diagnosticada com ludopatia, por laudo de profissional de saúde mental habilitado; e

VII – outras pessoas previstas na regulamentação do Ministério da Fazenda.

§ 1º São nulas de pleno direito as apostas realizadas em desacordo com o previsto neste artigo.

§ 2º As vedações previstas nos incisos II, IV e V do caput deste artigo estendem-se aos cônjuges, aos companheiros e aos parentes em linha reta e colateral, até o segundo grau, inclusive, das pessoas impedidas de participar, direta ou indiretamente, na condição de apostador.

§ 3º A hipótese prevista no inciso III do caput deste artigo não exclui a observância pelos agentes públicos dos deveres e das proibições previstos em leis e em regulamentos, conforme o disposto nas Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa), e 12.813, de 16 de maio de 2013.

§ 4º Os impedimentos de que trata o caput deste artigo serão informados pelos agentes operadores de apostas, de forma destacada, nos canais físicos ou on-line de comercialização da loteria de aposta de quota fixa, bem como nas mensagens, nas publicações e nas peças de publicidade e de propaganda utilizadas para divulgação das apostas. (grifo nosso)

Destarte, além dos atletas participantes de competições ligadas ao Sistema Nacional do Esporte[5], estariam impedidos de fazer apostas os dirigentes, técnicos, treinadores, integrantes de comissão técnica (juízes, “sombrinhas” etc.), árbitros, assistente de árbitro de modalidade desportiva ou equivalente, empresário desportivo, agente ou procurador de atletas e de técnicos, técnico ou membro de comissão técnica.

Estão impedidos também os membros de órgãos de administração ou de fiscalização de entidade de administração de organizadora de competição ou de prova desportiva.

A proibição das pessoas citadas no texto legal se estende também aos seus cônjuges, aos seus companheiros e aos parentes em linha reta e colateral, até o segundo grau.

A nova lei também prevê, em seu artigo 41, as penalidades cabíveis para o caso de descumprimento, in verbis:

LEI Nº 14.790, DE 29 DE DEZEMBRO DE 2023

(…)

Seção III

Das Penalidades

Art. 41. São aplicáveis às pessoas físicas e jurídicas que infringirem o disposto nesta Lei as seguintes penalidades, de forma isolada ou cumulativa:

I – advertência;

II – no caso de pessoa jurídica: multa no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) sobre o produto da arrecadação após a dedução das importâncias de que tratam os incisos III, IV e V do caput do art. 30 da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, relativo ao último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo sancionador, observado que a multa nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação, nem superior a R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais) por infração;

III – no caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado e de quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, quando não for possível a utilização do critério do produto da arrecadação: multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais) por infração;

De acordo com o texto legal, há previsão de advertência e multa pecuniária para os infratores. Embora tais previsões possam servir para dissuadir eventuais tentativas de ilícito (como manipulação esportiva por conta de apostas feitas por técnicos, juízes etc.), fato é que a pena parece por demais branda.

No entanto, na nova Lei Geral do Esporte, há previsão bem mais severa para os casos similares ao de Krause no UFC[6], consoante o artigo 200, in verbis:

LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023

(…)

Art. 200. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

De acordo com o artigo, a fraude é punida após realizada, sem a necessidade de que seja estimulada pela promessa ou concessão de uma vantagem, ou executada após a aceitação da promessa ou do recebimento da vantagem.

O bem jurídico penalmente tutelado pelo tipo penal é a integridade e a honestidade das competições esportivas, voltado a preservar a lisura e a autenticidade dos resultados[7].

Nesse tipo, frise-se, sequer é necessária a efetiva realização da fraude, bastando a prática dos comportamentos anteriores a ela e a demonstração da finalidade específica[8].

O crime possui natureza material e será consumado com a efetivação da fraude, ou da contribuição para a fraude, do resultado da competição esportiva ou evento a ela associado. Quanto à tentativa, ela ocorre quando o agente pratica todos os atos voltados a fraudar ou a contribuir para que se fraude o resultado da competição esportiva, mas não consegue consumá-lo por circunstâncias alheias à sua vontade[9].

Desta forma, um juiz de esportes de combate que seja encarregado de julgar uma luta e venha a apostar em um atleta envolvido neste mesmo combate (no intuito de, ao manipular o resultado, tentar garantir o recebimento da aposta), ainda que o resultado não venha a ser o desejado pelo juiz (pois o combate envolve mais juízes, que podem dar um resultado diferente), ele poderá ser enquadrado neste tipo penal.

O mesmo raciocínio serve para os demais membros de comissão técnica envolvidos em uma luta.

Estamos diante de uma mudança de cenário nos esportes de combate no Brasil, podendo a nova legislação trazer a transparência e a integridade necessárias para que a luta venha a ter o respeito que merece.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] COSTA, Elthon José Gusmão da. Apostas, corrupção esportiva e o novo código de conduta dos atletas do UFC. Lei em Campo, 10 nov. 2022. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/apostas-corrupcao-esportiva-e-o-novo-codigo-de-conduta-dos-atletas-do-ufc/. Acesso em: 8 fev. 2024.

[2] SIMON, Zane. Don’t bet on it! – UFC tells fighters ‘no gambling’ in latest change to code of conduct. Bloody Elbow, 17 out. 2022. Disponível em: https://bloodyelbow.com/2022/10/17/ufc-changes-code-of-conduct-bans-gambling-fighters-managers-corners-mma-news/. Acesso em: 8 fev. 2024.

[3] Em maio de 2018, a Suprema Corte decidiu Murphy v. NCAA, derrubando a Lei de Proteção ao Esporte Profissional e Amador (PASPA) que proibia os estados de permitir apostas esportivas. Nos dois anos após a decisão de Murphy, dezoito estados promulgaram apostas esportivas legais, cinco estados mais Washington, D.C. aprovaram legislação que está pendente de lançamento e outros vinte e quatro apresentaram projetos de lei de apostas esportivas. De forma um tanto míope, esses esforços legislativos não abordam as preocupações com a integridade do jogo sinalizadas pelas ligas esportivas e outras entidades que criam as competições nas quais as apostas estão sendo feitas. Pouca atenção é dada ao aumento do risco de manipulação de resultados e de jogos associados à expansão das apostas esportivas. Em particular, a legislação promulgada e proposta prescreve muito pouco em termos de penalidades criminais no caso de manipulação relacionada a apostas nas competições esportivas subjacentes. BALSAM, Jodi S. Criminalizing Match-Fixing as America Legalizes Sports Gambling. Marquette Sports Law Review, n. 31, 27 jan. 2021. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3725737. Acesso em: 8 fev. 2024.

[4] https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-476_dbfi.pdf?mod=article_inline.

[5] Criado pela nova Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), o Sistema Nacional do Esporte (Sinesp) unifica as instituições desportivas por meio de um Plano Nacional do Esporte.

[6] Krause, ex-lutador do UFC e técnico de atletas da promoção, dirige um serviço de apostas, completo com um podcast e uma conta no Discord para membros pagantes. Em relação ao caso Minner x Nuerdanbieke, há uma investigação relativa à uma denúncia de que Krause teria apostado em Minner, seu atleta, para perder ou dito a outros que o fizessem. Nuerdanbieke acabou vencendo depois que Minner aparentemente machucou seu joelho pouco mais de um minuto do início da luta, fato que, por Krause ser técnico do atleta, possivelmente era de seu conhecimento.

[7] PIAKOSKI, Augusto Cesar; NETO, José Laurindo de Souza. DOS CRIMES DA LEI GERAL DO ESPORTE: TÍTULO III – DA INTEGRIDADE ESPORTIVA E DA CULTURA DE PAZ NO ESPORTE CAPÍTULO V – DOS CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE E A PAZ NO ESPORTE SEÇÃO I – DOS CRIMES CONTRA A INCERTEZA DO RESULTADO ESPORTIVO ARTIGOS 198 A 200. In: HAMMERSCHMIDT, Denise (coord.). Crimes da lei geral do esporte: homenagem a Edson Arantes do Nascimento – PELÉ. Curitiba: Juruá, 2023. p. 67-78.

[8] GILABERTE, Bruno; BEM, Leonardo Schmitt de. FRAUDE NO RESULTADO DE COMPETIÇÃO ESPORTIVA OU EVENTO A ELA ASSOCIADO. In: BEM, Leonardo Schmitt de (org.). Crime e esporte: Lei Geral do Esporte, Tipos Penais e Condutas Correlatas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023. cap. 7, p. 147-165.

[9] Piakoski; Neto, op. cit., p. 76.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.