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Contra trabalho escravo no Catar, um operário enfrentou a FIFA. E venceu

Nesta semana veio a notícia: a Anistia Internacional, uma ONG de defesa dos direitos humanos, apresentou relatório acusando o governo do Catar de promover a exploração de trabalhadores imigrantes na organização do Mundial de Atletismo de Doha, que começou na última sexta. A denúncia diz que o trabalho é similar à escravidão. O governo do Catar respondeu afirmando que vem realizando reformas trabalhistas para resolver todas essas questões.

A questão levantada pela Anistia não é novidade, e já foi inclusive objeto de uma batalha gigante entre um operário e a poderosa FIFA. E foi dessa disputa que as leis trabalhistas começaram a mudar nesse emirado árabe que é uma pequena península que irrompe pelo Golfo Pérsico, mas cujo território é menor do que a maioria dos estados brasileiros.

E o resultado dessa disputa jurídica salvou vidas.

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O Catar

Impressiona. Até para quem olha de longe. E, principalmente, para quem entra nas construções ultramodernas e luxuosas para a Copa do Mundo de 2022. Eu estive lá em 2009 para fazer uma série de reportagens para a Rede Globo sobre o milionário e diferente mercado que se abria para o futebol brasileiro e também aproveitei para acompanhar o início das obras para aquela que promete ser a mais impressionante de todas as Copas.

Durante o trabalho, conversei informalmente com alguns operários, sem autorização oficial, claro (até porque não conseguiria, uma vez que entrevistar operário não era permitido). Mas não conheci Nadim Alam, que trabalhava por lá. Logo ele, que já é hoje um dos maiores heróis do próximo Mundial. Provavelmente, nem ele saiba disso.

O Kafala 

Nadim é um operário bengali que trabalhou nas construções para o evento da FIFA. Inconformado com o tratamento que recebia, que se assemelhava a escravidão, decidiu entrar com uma ação judicial contra a entidade que manda no futebol mundial, com o apoio de vários sindicatos. Ele pedia que a federação agisse contra as frequentes violações de direitos humanos, garantindo liberdades fundamentais aos trabalhadores migrantes, abolindo o sistema Kafala.

Importante destacar aqui que as construções no Catar são levantadas não por cataris (cidadão do país), mas por imigrantes, na sua maioria indianos. Esses trabalhadores, ao chegarem ao país, eram submetidos a um sistema trabalhista histórico por lá chamado Kafala. Nele são estabelecidas relações entre cada trabalhador e seu “patrocinador”, normalmente o empregador.

De acordo com esse sistema, o empregado virava refém do empregador. Ele ficava sujeito à autorização do patrão para realizar diversas atividades, como alugar imóvel, sair do país, trocar de emprego. Além disso, recebia muito menos que um trabalhador local e tinha o passaporte retido por esse “patrocinador”, que se negava a fornecer vistos para saída do país. Se insistisse, o próprio empregador poderia pedir a prisão do empregado.

Simples, escravidão. Com princípios de direitos humanos esquecidos e a própria Constituição local desprezada, já que ela também fala em respeito a direitos humanos.

Nadin x FIFA

Nadim não ficou em silêncio, como outros milhares de amedrontados operários, e comprou briga contra a poderosa FIFA e, indiretamente, contra o país árabe.

Claro que a FIFA sabia das condições de trabalho no Catar. Assim como sabia que a Rússia também violava princípios de direitos humanos e não respeitava direitos básicos de imigrantes que ajudaram a construir os estádios do Mundial de 2018. A revista norueguesa Josimar, inclusive, publicou um artigo intitulado “Os Escravos de São Petersburgo”, sobre o tratamento dado aos operários que ajudaram a construir os estádios do último Mundial de futebol.

Mesmo assim, a entidade, em escolha que depois apresentou sérios indícios de corrupção, escolheu Rússia e Catar como sede dos Mundiais de 2018 e 2022, respectivamente. Direitos humanos, claro, era um “assunto menor” diante do “negócio Copa do Mundo”.

Voltando ao caso. Em decisão de janeiro de 2017, a corte de Zurique entendeu que apenas o Estado soberano do Catar seria capaz de promover mudanças no sistema de trabalho que impedissem violações a princípios de direitos humanos naquele país. Também entendeu que a FIFA não tinha nenhuma relação comercial com Nadim Alam, afastando assim a jurisdição do tribunal para análise da matéria.

Importante destacar aqui que a corte europeia não disse que a FIFA não poderia ser responsabilizada pelos maus-tratos aos operários e violações a direitos humanos, já que ela decidiu com base nos critérios de jurisdição do tribunal, deixando de se manifestar com relação ao mérito.

Como explicou o professor Vinícius Calixto no livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos”, “o caso expõe uma situação em que uma entidade privada com atuação transnacional (FIFA) foi demandada perante o ordenamento jurídico estatal ao qual está vinculado (Suíça), em decorrência de violações ocorridas em outra ordem estatal (Catar). Ademais, nota-se que a ação foi movida por um cidadão bengali, em conjunto com entidades sindicais de Bangladesh e Holanda”.

A vitória de Nadim

A FIFA ganhou no tribunal, mas perdeu esse jogo. Movimentos de direitos humanos, patrocinadores da entidade, sindicatos, estudiosos do esporte, todos se juntaram em um grande movimento condenando o trabalho que levantava estádios para o principal evento da entidade. A irritação sofrida acabou provocando a federação a ter uma postura mais incisiva frente às autoridades cataris para que revogassem o sistema Kafala. E mais, a entidade criou uma comissão para inspecionar as obras para o Mundial.

Diante dessas mudanças, a Anistia Internacional se pronunciou afirmando que “finalmente parece que a FIFA está acordando para o fato de que, a menos que tome medidas concretas, a Copa do Mundo de 2022 no Catar será construída sobre suor, sangue e lágrimas dos imigrantes”.

A união de movimentos e pessoas e a coragem de Nadim mudaram o trabalho no país árabe. O Catar anunciou, no final de 2016, alterações legislativas que substituíram o sistema Kafala, garantindo melhores condições de trabalho aos imigrantes. E as mudanças não pararam por aí.

A entidade-mor do futebol mundial incluiu em seu Estatuto, no art. 3, a previsão de que a “FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos”. E foi além, encomendou ao professor John Ruggie a elaboração de um relatório com recomendações para implementação de uma política de direitos humanos, implementada em 2017.

Desde que o Catar foi escolhido sede do Mundial, um grande número de operários morreu trabalhando para levantar o maior evento esportivo do planeta. Relatório divulgado pela Confederação Internacional Sindical concluiu que mais de 1.200 empregados dessas construções morreram de 2010 a 2014, e que o número poderia chegar a 4.000 até o Mundial em 2022. Com as mudanças, esse número vai cair drasticamente.

O primeiro herói da Copa de 2022

Como se viu, muita coisa foi feita depois que os maus-tratos aos operários no Catar foram levados à Justiça. O operário bengali ajudou a preservar várias vidas que estão construindo mais um evento espetacular. Vale aplaudir e agradecer a Nadim Alam, que já é o primeiro herói da próxima Copa do Mundo, mesmo sem saber.

Mas pelo que se vê no Mundial de Atletismo que começa agora, a batalha ainda não terminou.

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