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De LeBron James e David Beckham à Copa do Mundo no Qatar: um tributo a Grant Wahl

Há quase 21 anos, em fevereiro de 2002, a prestigiosa revista Sports Illustrated estampou em sua capa uma foto do então estudante de ensino médio LeBron James, personagem de uma matéria intitulada The Chosen One (O Escolhido). O texto, hoje considerado um clássico absoluto do jornalismo esportivo, terminava da seguinte forma:

Por enquanto, LeBron existe em uma estranha dimensão entre estudante do ensino médio e multimilionário, entre criança dependente e homem feito. Ele é ambos, é claro. (…) É uma coisa inebriante, mas de muitas outras maneiras, LeBron continua sendo uma criança. (…) No caminho de volta para Akron no carro de um repórter, LeBron simultaneamente tocou Jay-Z no aparelho de som, tagarelou em seu telefone celular e checou mensagens de amigos (…).

Ele está quase lá, mas ainda não. Apenas mais um ano – sem lesões, sem complicações – e ele conseguirá. E então poderá se preocupar com o próximo passo. Acima da televisão no modesto apartamento dos James em Akron, LeBron mantém uma réplica de uma edição da Sports Illustrated com sua fotografia e a manchete: ELE É O PRÓXIMO MICHAEL JORDAN? É absurdamente cedo para responder, é claro, mas, a julgar pela ascensão sem precedentes do jovem LeBron, é uma pergunta que pelo menos vale a pena ser feita”.

O autor da matéria? Grant Wahl, jornalista norte-americano que, semanas atrás, foi notícia ao ser barrado no estádio Al Rayyan, onde aconteceria a estreia dos Estados Unidos na Copa do Mundo do Qatar, por estar usando uma camisa com um arco-íris.

Wahl voltou às manchetes no último dia 09/12, mas da pior forma possível: aos 48 anos, ele faleceu após passar mal nas tribunas do estádio Lusail durante Holanda x Argentina, jogo que terminou com a classificação dos argentinos, nos pênaltis, para a semifinal da Copa.

Homenageado pela Federação Norte-Americana, pelo próprio LeBron James, pela FIFA e por inúmeros jornalistas de todo o mundo, Grant Wahl era o principal nome da cobertura do soccer nos Estados Unidos.

Eu admirava o trabalho dele, que acompanhava pelo Twitter e por meio de participações em podcasts que tenho o hábito de escutar. Recentemente, depois de começar a ler o excelente The Barcelona Complex: Lionel Messi and the Making–and Unmaking–of the World’s Greatest Soccer Club, cheguei a um episódio do podcast Fútbol with Grant Wahl no qual o jornalista entrevistou Simon Kuper, autor do referido livro.

Nesse exercício de pesquisa, cheguei, também, a uma informação que eu não tinha até então: Grant Wahl publicou uma obra literária sobre a chegada e a passagem de David Beckham pela MLS.

Trata-se de The Beckham Experiment: How the World’s Most Famous Athlete Tried to Conquer America. Acabei comprando o livro, curiosamente, no dia 07/12,

um dia antes da morte de Grant Wahl. Quando acordei no dia 09/12 e me deparei com a notícia do falecimento dele, confesso que fiquei chocado com a coincidência e com as ainda obscuras circunstâncias da fatalidade (depois de divulgar um vídeo emocionado e de publicar mensagem na qual insinuava que o jornalista poderia ter sido assassinado, o irmão dele, Eric, que é homossexual e diz ter sido a razão da camiseta usada por Grant Wahl no Qatar, voltou atrás nas acusações).

Como detalhado em reportagem da Trivela, Grant Wahl era uma das vozes mais combativas nos questionamentos à FIFA, tendo chegado, inclusive, a se lançar como candidato à presidência da entidade em 2011, em oposição a Joseph Blatter.

À época, Wahl publicou um manifesto em que defendia a introdução da tecnologia para verificar lances polêmicos na linha do gol, o fim dos cartões amarelos nas comemorações, o aumento da participação feminina nas estruturas políticas e o aumento da transparência nos negócios feitos pela FIFA.

Porém, para que pudesse ser, de fato e de direito, candidato à presidência da autoridade máxima do futebol, uma federação nacional precisaria indicar o nome de Grant Wahl ao pleito, o que não ocorreu. Assim, o único concorrente de Blatter naquelas eleições foi Mohammed bin Hammam, que presidia a Confederação Asiática e que teve grande influência na controversa escolha do Qatar como sede da Copa do Mundo de 2022.

A propósito do Qatar, aliás, Wahl, em seu penúltimo texto, relatou o descaso das autoridades locais com a morte de um imigrante que trabalhava no hotel em que a seleção da Arábia Saudita estava hospedada.

Como um singelo tributo a Grant Wahl, reproduzo a seguir um trecho do livro The Beckham Experiment que se relaciona com temas que vêm tratados nesta coluna.

No verão de 2005, em uma linda manhã em Marina del Rey, Califórnia, encontrei um velho conhecido no saguão do Ritz-Carlton Hotel. Em quase qualquer outra cidade em qualquer outro país, David Beckham nunca teria ousado desafiar os paparazzi e os fãs que rastreiam cada movimento seu. Mas ali estava ele, com as mãos nos bolsos, confortável, despreocupado, como qualquer outro cara.

Tinham se passado dois anos desde nosso último encontro, uma longa e sincera entrevista na cidade de Nova York pouco antes da transferência de Beckham do Manchester United para o Real Madrid – a maior história esportiva do mundo em 2003. Agora o Real estava na cidade para um jogo de pré-temporada contra o Los Angeles Galaxy.

Menos de dois anos depois, em maio de 2007, me vi sentado em frente a Beckham em Madri, apenas nós dois em uma silenciosa sala de maquiagem por uma hora. Em sua única entrevista para um jornalista esportivo dos Estados Unidos antes de chegar ao Galaxy em julho, Beckham explicou o porquê de haver chocado o mundo dos esportes quatro meses antes, ao assinar, aos 31 anos de idade, com um time da Major League Soccer.

Não é sempre que o atleta mais famoso do mundo decide deixar o conforto e a segurança do ambiente em que se tornou um ícone global e embarcar em uma nova e arriscada aventura em um dos poucos países onde não é um nome familiar.

No entanto, era exatamente isso que David Beckham estava fazendo ao deixar a Europa para se juntar ao Galaxy em um contrato de cinco anos. Ele certamente não precisava do dinheiro depois de ganhar cerca de US$ 150 milhões nos cinco anos anteriores à sua mudança para a América. Ele também não precisava da fama (…).

Beckham sabia que estava trazendo consigo uma série de expectativas, muitas das quais ele já estava tentando dissipar. Ele não estava vindo para se tornar um ator de Hollywood, nem naquela época, nem nunca. Ele tampouco vinha para marcar três gols por jogo. E ele não estava vindo simplesmente para ser uma ferramenta de marketing.

No entanto, a tarefa de Beckham – fazer com que o soccer, regularmente, tenha importância nos Estados Unidos – seria enorme. O maior jogador de todos os tempos, Pelé, quando jogou pelo New York Cosmos no final dos anos 1970, não conseguiu transformar o esporte na religião cotidiana que ele é em quase todo o mundo.

Muitos norte-americanos se consideravam fãs ocasionais de soccer – a audiência da televisão norte-americana na final da Copa do Mundo de 2006 (16,9 milhões) superou a audiência média das finais da NBA daquele ano (12,9 milhões) e da World Series (15,8 milhões) -, mas eles acompanhavam apenas os maiores eventos do esporte, e os poucos fanáticos preferiam a Liga dos Campeões da Europa e as ligas da Inglaterra, Espanha e México à MLS.

´Parece haver uma fundação sólida e real agora para o soccer nos Estados Unidos’ disse Fuller [Simon Fuller, empresário de Beckham]. ´David é o mais icônico dos jogadores e conquistou praticamente tudo o que você pode alcançar na Europa, exceto talvez vencer um grande torneio com a Inglaterra. Ele ainda tem trinta e poucos anos, ainda joga muito bem, e você tem que começar a pensar: qual é a próxima aventura? Os Estados Unidos são a última fronteira (…).

A última fronteira. Uma grande visão. Uma aventura. Havia algo essencialmente norte-americano naquilo que esses britânicos buscavam alcançar.

Beckham jurou que estava nessa aventura no novo mundo por muito tempo. Caso contrário, por que ele teria assinado um contrato de cinco anos? ´(…) junto com David, nossa ambição é maior do que isso. Atire nas estrelas e, se não acertar, foi divertido tentar. Se você acertar, então você fez história.’

Tendo coberto o cenário do soccer por dez anos na Sports Illustrated, eu sabia que o Experimento Beckham seria um dos projetos mais audaciosos da história esportiva recente, até porque as chances de fracasso eram muito altas e as personalidades envolvidas eram muito grandes.

Haveria estádios cheios, exageros na mídia e enormes choques de ego que surgem sempre que você mistura dinheiro, esportes e Hollywood. O charme inegável de Beckham conquistaria os norte-americanos?

Se já houve um livro sobre o soccer que exigia ser escrito, era este, em grande parte porque não era apenas sobre o esporte, mas muito mais: a engenharia das celebridades, os poderosos em busca de mais poder, o confronto das culturas e o excepcionalismo norte-americano.

Durante anos, sempre que alguém soube que eu cobria o soccer para uma revista esportiva norte-americana, invariavelmente me perguntavam quando o esporte conquistaria os Estados Unidos. Minha resposta foi sempre a mesma (…).

Não sou um proselitista do soccer e não sei se ele algum dia será um dos três principais esportes para espectadores nos Estados Unidos. Mas eu amo esse jogo e acho fascinante que tantos investidores ricos – bilionários de grande sucesso, na verdade – continuem a investir tantos dólares na proposição de que o soccer pode realmente ser um empreendimento viável aqui.

Em última análise, o objetivo do Experimento Beckham era tentar mudar a posição do soccer na hierarquia dos esportes para os espectadores dos Estados Unidos. Quando terminasse, a aventura americana de Beckham seria considerada como o momento em que o soccer finalmente atingiu um ponto crítico no país – ou como o momento em que o consumidor norte-americano se mostrou imune às maquinações de um especialista em criação de estrelas como Simon Fuller.

David Beckham pode ter estado desesperado para conquistar a América, mas também o soccer em si. Independentemente do sucesso ou insucesso da empreitada, seria uma jornada memorável.

Sim, Grant Wahl. A história de David Beckham nos Estados Unidos foi (e vem sendo), assim como a sua história, uma jornada memorável. Descanse em paz.

Crédito imagem:

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