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Escalação irregular e justiça

O art. 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê que a escalação de atleta irregular gera a perda do número máximo de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, além de multa.

Para efeitos da infração disciplinar acima, tratando-se de competição promovida pela CBF, considera-se apto a participar da partida o jogador que tenha sido, entre outros requisitos, registrado no Boletim Informativo Desportivo da entidade de administração desportiva.

O clube contratante solicita a inserção da contratação no Sistema de Registro da CBF, onde, após verificar a regularização dos documentos, a contratação do atleta será publicada no Boletim Informativo Diário (BID), como forma de comunicar às demais agremiações a vinculação desportiva do atleta.

Importante esclarecer que a publicação do registro do atleta no BID não gera condição de jogo compulsoriamente, devendo ainda observar as exigências dos Regulamentos Gerais e Específicos das Competições, além do correto cumprimento de sanções proferidas pela Justiça Desportiva ou pela equipe de arbitragem, como a suspensão automática gerada pela aplicação do cartão vermelho, ou a terceira advertência com cartão amarelo.

Recentemente, o Lei em Campo noticiou um caso envolvendo a perda de pontos de um clube carioca por infração ao art. 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, e o caso traz à reminiscência outros imbróglios desportivos parecidos, que tiveram desmembramentos ainda mais intricados por envolverem a atuação da jurisdição estatal.

Para a presente coluna, interessa elastecer o tema, e demonstrar as implicações que ultrapassam a esfera disciplinar desportiva, abrangendo da organização jurisdicional que permeiam as infrações disciplinares esportivas.

A natureza jurídica da Justiça Desportiva é considerada equivocadamente como natureza administrativa, como forma de afastar o caráter jurisdicional (oriundo do Poder Judiciário), uma vez não compõe o rol taxativo – numerus clausus dos órgãos do Poder Judiciário, disposto no art. 92, da Constituição Federal, afastando a Justiça Desportiva como instância jurisdicional. Contudo, não está correto afirmar que trata-se instância administrativa, porque não possui influência do Direito Administrativo.

A existência da Justiça Desportiva se ampara no art. 217, inciso I da Carta Magna, que para parte da doutrina funda o princípio estrutural da competência organizacional dos órgãos desportivos: o princípio da autonomia das entidades de prática e de administração desportivas. Em contraponto, a outra parte da doutrina sustenta que a Justiça Desportiva não estaria inserida no conceito de entidades de prática ou administração desportivas.

Ensina o professor Álvaro Melo Filho que o que caracteriza o Direito Desportivo são os princípios próprios que o alicerçam, o que denomina de autonomia epistemológica, e por autonomia desportiva entende ser a liberdade de administração, a categorização homogênea, sendo essa a evidência de que trata-se de uma disciplina autônoma, que contém subcategorias que formam subsistemas coesos entre si, integrando um sistema.

Em um breve contexto histórico legislativo, a Lei 6.354/76 estabeleceu a Justiça Desportiva para apreciar litígios trabalhistas envolvendo o atleta profissional. Referida previsão foi revogada pelo vigente art. 50 da Lei Pelé.

A tutela do Poder Judiciário em ações relativas à disciplina e competições desportivas sobrevém apenas após esgotarem as instâncias da justiça desportiva, decorrido o prazo prescricional de 60 dias para que a decisão seja proferida, após a instauração do processo.

A previsão constitucional da Justiça Desportiva representa tão somente uma delimitação de sua atuação. Portanto, evidente que não se trata de um critério absoluto de dissociação ao ordenamento jurídico vigente.

Tanto é assim que a Justiça Desportiva, competente para processar e julgar questões relacionadas às infrações disciplinares e competições desportivas, é ordenada em princípios.  Além do CBJD, a Justiça Desportiva conta também com princípios medulares de qualquer órgão julgador, como da ampla defesa e o contraditório, entre outros princípios elencados nos incisos do art. 5º da Constituição Federal.

Vale destacar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tendo em vista que já foram escopo de fundamento de decisões que deixaram de aplicar as sanções cabíveis por escalação irregular de atleta, junto com outro princípio determinante, o da prevalência, continuidade e estabilidade das competições (pro competitione).

O Princípio Pro Competione respalda a proteção do resultado validamente obtido, a fim de preservar o bom andamento das competições. Pode-se afirmar que referido princípio antepõe decisões que possam prejudicar ou interromper as competições, prezando a inalterabilidade dos resultados alcançados na competição, permitindo que somente um relevante e justo motivo, fato ou circunstância poderia desfazê-los.

Além disso, os princípios do “par conditio” e “fair play” impõem que a conduta dos integrantes de entidades de prática e administração desportiva, e as decisões a estes relacionados, coadunem com os princípios de integridade esportiva, equilíbrio competitivo, e rigor quanto às regras para garantir uma competição limpa e justa, ainda que em situações fora de campo.

Para tanto, compete prima facie à Justiça Desportiva dirimir os litígios de natureza disciplinar e competições esportivas, não sendo permitida a interferência da Justiça Estatal.

A esse respeito, ainda, a FIFA, por meio de seu Estatuto, institui o TAS (Tribunal Arbitral do Esporte), sediado na Suíça, como última instância do processo desportivo, competente para processar e julgar questões de jurisdição desconhecida ou de conflito internacional relativos às competições esportivas. Na sequência, o Estatuto da FIFA restringe às entidades filiadas qualquer interferência da justiça comum, pela ausência de especialidade da matéria desportiva na jurisdição estatal, salvo expressamente autorizado em regulamento FIFA, preservando a competência da justiça desportiva para decidir referidas questões.

A interrogação surge quando toda conceituação acima descrita se depara com o direito fundamental disposto no artigo 5º, inciso XXXV da CF, o qual preconiza que o “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, vedando a supressão do direito ao acesso à justiça.

Seria juridicamente válido sustentar que por tratar-se de uma estrutura associativa, os integrantes das entidades de administração e prática desportiva renunciam ao direito de acesso à Justiça?

A autotutela é substituída pela tutela estatal, ou seja, a lide será resolvida pelos órgãos judiciários próprios que substituem a vontade privada.

Sob o contexto jurídico da Justiça Desportiva, em uma visão global do Direito Desportivo, assim como a Constituição Federal vigente, a Carta Europeia do Desporto, deliberada pelo Ministro do desporto em 1992, inseriu o esporte como meio de educação e formação de todos, e impôs ao Estado maneiras de incutir a prática esportiva, reconhecendo a necessidade de se estabelecer mecanismos autônomos para garantir a ordem, através da imposição de regras e efetividade no cumprimento dessas ordens.

Nota-se que os preceitos constitucionais vigentes se alinham com a Carta Europeia do Desporto de 1992 no que diz respeito à autonomia desportiva pautado na primeira geração de direitos fundamentais, sendo esse o fundamento para que o desporto se organize por meios das suas regras próprias, desde que não ofensa previsões contidas no âmbito da lex publica.

O tema é vasto e se desmembra em entendimentos diversos. Verifica-se em casos emblemáticos a limitação da atuação da justiça estatal para desconstituir uma decisão proferida pela Justiça Desportiva, uma vez que esta faz coisa julgada formal.

Em outro cenário, um atleta que ajuíza uma reclamação trabalhista para legitimar a sua contratação com uma agremiação desportiva, ainda que obtenha êxito na demanda, não pode valer-se da jurisdição estatal para alcançar a condição de jogo.

Quanto a citada natureza jurídica da Justiça Desportiva, cabe, por fim, afirmar que é dotada “de índole administrativa stricto sensu”, já que não tem competência para dirimir questões de eleições de dirigentes ou prestação de contas que estão na esfera interna corporis dos entes desportivos dirigentes privados, sendo a Justiça Comum [1] competente para tanto.

A institucionalização na Constituição Federal da Justiça Desportiva se esmera, portanto, no descongestionamento da Justiça Estatal, na celeridade necessária para resolver conflitos desportivos em virtude da dinâmica dos calendários das competições, e do corpo técnico especializado nas peculiaridades da codificação desportiva.

Crédito imagem: Pixabay

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[1] a competência dos Órgãos Judicantes é:

(i) limitada à jurisdição territorial da entidade de administração do desporto da respectiva modalidade,

(ii) com competência para processar e julgar matérias referentes às competições disputadas; e

(iii) às infrações disciplinares cometidas pelas pessoas naturais ou jurídicas mencionadas no artigo 1º, §1º

Tal segregação de competência reflete o desporto como direito individual (artigo 2º, da Lei Geral sobre o Desporto), garantindo às pessoas físicas e jurídicas, ante a iminência da aplicação de sanções, organismos “autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema” (inteligência do artigo 52, da mesma norma citada), para ver as suas questões serem dirimidas.

É de se notar, aliás, que as sanções provenientes da manutenção da Ordem Desportiva que envolvam a suspensão, a desfiliação ou desvinculação das pessoas (naturais ou jurídicas) “somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva”, conforme expressamente prevê o §2º, do artigo 48, da Lei Geral sobre o Desporto, o que significa dizer, garantir ao indivíduo o devido processo legal por um Tribunal isento das questões que envolvam não só as afrontas à Ordem Desportiva, quanto as questões que envolvem a disciplina no desporto.

ainda que sejam questões que podem ser de competência de Comissões de Éticas das Entidades de Administração e de Prática Desportiva, qualquer sanção por elas impostas que resvale na suspensão, desfiliação ou desvinculação de qualquer pessoa, natural ou jurídica que seja jurisdicionado da Justiça Desportiva e que tenha como fundamento a indisciplina, atrai, por expressa disposição legal, a competência da Justiça Desportiva para dirimir o feito.

os dizeres de Álvaro Melo Filho na linha de que “os entes desportivos têm, na sua estrutura associativa ou societária, um poder “social”, de caráter interno e doméstico, que não guarda relação ou vinculação com o desporto federado e com as competições esportivas”. Isso significa dizer, que nem todas as questões de Ordem Desportiva devem ser tratadas pela Justiça Desportiva, já que esta está adstrita, como dito acima, às questões de disciplina. Isso significa dizer, que questões envolvendo eventuais insubordinações entre atletas e treinadores (e vice-versa), devem ser tratadas dentro do Conselho de Ética das agremiações, ao passo que as questões disciplinares devem ser aplicadas “após decisão definitiva da Justiça Desportiva”.

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