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Escravidão? O polêmico contrato do One Championship

Em colunas anteriores, já falamos como são alguns contratos de atletas com determinados eventos[1] e as polêmicas envolvendo certos detalhes de tais contratos[2].

No caso do UFC, tratei, em minha obra, em capitulo específico a respeito da questão[3], quanto à definição jurídica do lutador de MMA nos EUA: contratado independente (autônomo) ou funcionário do evento?

Em relação ao que prevê à legislação brasileira quanto a essa discussão, logo será publicado artigo de minha autoria em um livro muito especial que tratará com bastante cuidado do assunto.

Por ora, falemos dos contratos do evento asiático One Championship, cujas cláusulas foram recentemente trazidas à luz pelo site norte-americano de notícias esportivas Bloody Elbow[4].

A maioria dos contratos de MMA têm vários pontos de controvérsia. O UFC tem certas cláusulas que são pouco vantajosas para os atletas. Em 2008, o lutador do peso meio-médio do UFC, Jon Fitch, se recusou a assinar um acordo de cessão perpétua de seus direitos de imagem ao UFC para uso em um jogo de videogame. Como resultado, a promoção ameaçou cortar os laços com todos os talentos que treinavam na academia de Fitch, a AKA. Isso incluía lutadores como o candidato ao título Josh Koscheck e o futuro campeão Cain Velasquez. Fitch e o resto da AKA acabaram concordando com os termos[5].

No entanto, parece que o ONE Championship supera o UFC nesse quesito, de uma maneira nada positiva.

O contrato relevado na reportagem dá à promoção, no item 2, o direito mundial de fabricar, distribuir ou vender bens e serviços retratados ou decorados com o perfil do atleta, incluindo, sem limitação, folhetos, pôsteres, brinquedos, jogos, videogames de computador, jogos eletrônicos ou outras novidades de software interativo, e assim por diante.

Basicamente, esses são os direitos de merchandising, que foram incorporados aos direitos promocionais, se não, vejamos:

  1. DIREITOS PROMOCIONAIS E OUTROS DIREITOS

(…)

(c) fabricar, distribuir ou vender bens e serviços que representem ou sejam decorados com o Perfil do Atleta, incluindo, sem limitação, folhetos, pôsteres, brinquedos, jogos,

jogos de computador/vídeo/eletrônicos ou outros softwares interativos, souvenirs, novidades, livros, discos, vídeos, tecidos, vestuário, alimentos, bebidas e produtos similares e por meio de prêmios e promoções que contenham ou incorporem ou explorem tal Perfil (“Direitos de Merchandising”). Os Direitos Conexos e os Direitos de Merchandising concedidos em favor da Empresa deverão, para evitar dúvidas, sobreviver à morte do Atleta e deverão ser vinculados ao seu do Atleta e serão vinculantes para seus sucessores, herdeiros e representantes pessoais.

2.2 Os Direitos Promocionais, Direitos Conexos e Direitos de Merchandising (coletivamente denominados neste documento como “Direitos Comerciais”) são concedidos em favor da Empresa em caráter perpétuo (no que diz respeito aos Direitos Conexos e Direitos de Merchandising) e em nível mundial, de forma livre e gratuita. (tradução livre)

O que também é interessante é que esses direitos conexos e direitos comerciais, concedidos em favor da empresa, “deverão, para evitar dúvidas, sobreviver à morte do atleta e devem ser vinculados aos sucessores, herdeiros e representantes pessoais“.

O contrato não inclui nenhuma compensação pelos direitos conexos e de merchandising que são concedidos em favor da empresa perpetuamente.

Isto é diferente do contrato padrão do UFC, onde os lutadores recebem um (pequeno) pagamento de royalties por todas as mercadorias vendidas com a imagem dos lutadores (fora as mercadorias do evento, nas quais eles não recebem nenhum pagamento) e os direitos do UFC sobre sua imagem terminam dois anos após o fim do contrato[6].

Ainda, os contratos do ONE Championship permitem a extensão do acordo pelo tempo em que o lutador estiver lesionado. Se um lutador se recusar a participar de uma luta, o ONE pode prorrogar o contrato conforme o item 3, in verbis:

  1. PARTICIPAÇÃO EM PARTIDAS

(…)

3.2 O Atleta deverá participar do número mínimo de Partidas especificado no item 2 da Cronograma 1, que a Empresa deverá fazer o possível para promover. Para os fins desta Cláusula, a Empresa poderá cumprir sua obrigação de promover uma Partida quando a Empresa tiver feito uma oferta ao Atleta para promover uma Partida e o Atleta tiver recusado ou deixado de não participar da mesma. Se uma Partida for uma partida preliminar ou um undercard de um evento principal ou evento principal ou de destaque e esse evento principal ou de destaque for cancelado, adiado ou suspenso por qualquer motivo qualquer, a falha ou incapacidade de realizar a Partida não será considerada como descumprimento por parte da Empresa e a Empresa não será responsável perante o Atleta pelo Prêmio em dinheiro ou qualquer outra compensação relacionada a isso.

3.3 A Empresa poderá exigir que o Atleta, de tempos em tempos, assine e entre em um contrato ou acordo separado para reger determinadas Partidas ou eventos e, no caso de qualquer conflito ou inconsistência entre as disposições deste Contrato e de outro contrato ou acordo, as disposições desse outro contrato ou acordo prevalecerão.

3.4 A Empresa terá o direito de determinar as datas e os locais de todas as Partidas a seu critério exclusivo e absoluto e absoluto critério. No caso de uma Partida ser adiada por qualquer motivo, a Empresa poderá, a seu critério exclusivo e absoluto, prorrogar o Prazo por um período igual ao número de dias decorridos entre a data original programada para a Partida e a data em que a data em que a Partida de fato ocorrerá.

Não há um “ocaso” como o que vimos no UFC recentemente[7]. Não há uma data final rígida, além da qual o promotor não possa estender o prazo, mesmo que o lutador recuse uma luta. Também não há um número máximo de declinações de uma luta.

Por um breve período, o UFC tinha um máximo de 18 meses para prorrogar seu contrato se o atleta continuasse recusando lutas, mas, aparentemente, eles voltaram a ter o mesmo número até que o período de expiração seja atingido.

Aparentemente, o ONE Championship também pode continuar prorrogando o contrato se o atleta recusar lutas, mas eles não têm prazo de validade em seus contratos.

Como acontece com a maioria das outras promoções de MMA e com os contratos mais antigos do UFC, os lutadores que se aposentam do ONE podem ter seus contratos congelados perpetuamente.

Isso é, mais uma vez, um retrocesso à antiga maneira de fazer negócios do UFC, o que basicamente significa dizer que não há como um lutador ficar de fora do contrato do ONE Championship se não lutar.

O contrato prevê ainda que o acordo será regido pelas leis de Cingapura, sede do One, se não, veja-se:

  1. LEI APLICÁVEL E JURISDIÇÃO

Este Contrato será regido e interpretado de acordo com as leis de Cingapura. Qualquer controvérsia, contratual ou não, decorrente ou relacionada a este Contrato (inclusive qualquer questão relativa à sua existência, validade ou Contrato (inclusive qualquer questão relativa à sua existência, validade ou rescisão) deverá ser encaminhada e finalmente resolvida por arbitragem em Cingapura, de acordo com as Regras de Arbitragem do Regras de Arbitragem do Centro Internacional de Arbitragem de Cingapura (“SIAC”) até o momento em vigor, cujas regras são consideradas incorporadas por referência nesta cláusula. O tribunal de arbitragem será composto por um árbitro a ser nomeado pelo Presidente do SIAC. O idioma O idioma da arbitragem será o inglês e a arbitragem será regida pela Lei de Arbitragem Internacional (Cap. 10). (tradução livre)

Importante ressaltar que, muito embora haja previsão de resolução através de juízo arbitral, há elementos no contrato que apontam para provável relação trabalhista entre atleta e evento.

Em Cingapura, embora o ambiente de trabalho permaneça pouco regulamentado até hoje pelos padrões europeus, nos últimos anos houve um fluxo crescente de leis para tratar de questões específicas relacionadas ao amadurecimento da economia e da força de trabalho no país.

Os funcionários agora têm mais direitos e proteções. Isso pode ser visto nos novos direitos legais de licença, como as leis que regulamentam a licença-paternidade, licença-maternidade, licença-adoção e licença parental compartilhada, e a extensão recentemente anunciada da Lei do Trabalho (EMPLOYMENT ACT) para categorias mais amplas de funcionários.

Porém, em Cingapura a Lei do Trabalho[8] (EMPLOYMENT ACT), não define de forma clara a figura do empregado, portanto, muitas vezes deve ser feita referência à jurisprudência para determinar quem é empregado.

A este respeito, é provável que nenhum fator isolado seja conclusivo para determinar quem é um funcionário e todas as circunstâncias relevantes devem ser levadas em consideração.

Em linhas gerais, a lei abrange todos os funcionários (independentemente da nacionalidade) que estejam sob um contrato de serviço com um empregador, exceto: qualquer pessoa empregada em um cargo gerencial ou executivo que ganhe mais de S$ 4.500 como salário mensal básico; qualquer marinheiro; qualquer trabalhador doméstico; qualquer pessoa empregada por um Conselho Estatutário ou pelo Governo.

Fatores que podem ser relevantes para definir quem é empregado ou não incluem questões como o grau de controle exercido pela pessoa que solicita o serviço, a forma de pagamento envolvida, a quantidade de restrições impostas à pessoa que presta o serviço e até que ponto a pessoa que presta o serviço assume qualquer risco de perda ou compartilha qualquer chance de obter lucro. Assim, por exemplo, trabalhadores temporários, independentes ou voluntários podem ou não ser empregados, dependendo de tais fatores. (CHANDRAN, 2021, p. 16-17[9]).

O contrato também inclui uma cláusula que prevê que o lutador deve obter aprovação da promoção antes de mudar de nome (!).

O ONE também teria o direito de criar e operar sites usando o referido nome, além de também poder demitir um lutador se ele tiver dívidas que possam fazer com que sua bolsa de luta seja penhorada.

Ademais, a menos que obtenha consentimento prévio por escrito do ONE, o lutador não pode se referir a si mesmo como atual ou ex-campeão do evento, sendo que o cinturão de campeão permanecerá como propriedade da promoção, portanto não poderá ser usado ​​ou exibido em público sem autorização, devendo ser devolvido mediante solicitação.

Como vimos, fica claro que as restrições impostas pelo contrato ao atleta poderiam enquadrá-lo como empregado do evento, conforme a doutrina trabalhista sugere em relação ao foro do contrato, Cingapura.

 O MMA se anuncia como um mundo de “autônomos”, lutadores que essencialmente operam seus próprios negócios e fazem parcerias com promotores para acordos de curto prazo, levando seus talentos aos fãs ávidos por esportes de combate. A realidade, entretanto, parece muito diferente.

Crédito imagem: One Championship/Divulgação

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[1] DA COSTA, Elthon José Gusmão. A exclusividade nos contratos de lutadores profissionais de MMA: há prestação de trabalho intermitente?. Lei em Campo, Site, 10 abr. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-exclusividade-nos-contratos-de-lutadores-profissionais-de-mma-ha-prestacao-de-trabalho-intermitente. Acesso em: 6 out. 2023.

[2] DA COSTA, Elthon José Gusmão. A cláusula arbitral nos atuais contratos do UFC. Lei em Campo, Site, 11 set. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-clausula-arbitral-nos-atuais-contratos-do-ufc/. Acesso em: 6 out. 2023.

[3] COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023.

[4] HEYNES, Stephie. Bloody Elbow exclusive: Leaked ONE Championship contract raises concerns. Bloody Elbow, Site, 5 out. 2023. Disponível em: https://bloodyelbow.com/2023/10/05/one-championship-one-sided-contracts. Acesso em: 6 out. 2023.

[5] BONSIGNORE, Joseph. Jon Fitch Gone from UFC, Dana White Declares War – The Full Story (UPDATED). Bleacher Report, Site, 20 nov. 2008. Disponível em: https://bleacherreport.com/articles/83776-jon-fitch-gone-from-ufc-dana-white-declares-war-the-full-story-updated. Acesso em: 6 out. 2023.

[6] EPSTEIN, Lawrence. Article II: Grant of Ancillary Rights. In: SNOWDEN, Jonathan. The Business of Fighting: A Look Inside the UFC‘s Top-Secret Fighter Contract. Bloody Elbow, 14 maio 2013. Temos um segundo contrato, chamado de contrato de direitos de mercadoria, com todos os nossos atletas. E esse acordo foi concebido para compensar nossos atletas por qualquer produto em que usemos seu nome e imagem – um cartão de troca, um brinquedo. Para todos os produtos que criamos com o logotipo do UFC, a marca do UFC e o nome e a imagem do lutador, dividimos a receita com os atletas com base nesse acordo… (ele) estabelece especificamente a porcentagem da receita que o atleta receberá por qualquer produto de marca que inclua seu nome e imagem. (tradução livre) Disponível em: https://bleacherreport.com/articles/1516575-the-business-of-fighting-a-look-inside-the-ufcs-top-secret-fighter-contract. Acesso em: 6 out. 2023.

[7] DA COSTA, Elthon José Gusmão. O destino de Ngannou: o UFC e a liberdade de atuação do atleta de MMA. Lei em Campo, Site, 17 jan. 2023. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-destino-de-ngannou-o-ufc-e-a-liberdade-de-atuacao-do-atleta-de-mma. Acesso em: 6 out. 2023.

[8] https://sso.agc.gov.sg/act/ema1968

[9] CHANDRAN, Ravi. Labour Law in Singapore. 1ª. ed. Holanda: Kluwer Law International B.V., 2021. p. 16-17

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