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FIA, FIFA e o Direito da União Europeia (parte 2)

Dando sequência ao texto publicado na semana passada, hoje voltamos a examinar a interação entre a Lex Sportiva e o Direito da União Europeia, com ênfase em uma importante característica da estrutura federativa do esporte: o monopólio. Desta vez, jogamos luz sobre o futebol e a recente manifestação da FIFA e das confederações continentais, contrária a uma possível superliga de clubes.

Imaginemos a estrutura do futebol no mundo como uma pirâmide. Em seu topo, figura a FIFA; abaixo, as confederações continentais (por exemplo, a CONMEBOL); num terceiro nível, as federações nacionais (no Brasil, a CBF); na sequência, sucessivamente, as federações estaduais, os clubes e os atletas. Cada uma dessas partes deve seguir as normas emanadas de todas as que estão acima na pirâmide, em função da relação associativa estabelecida entre elas. Assim, por exemplo, um clube brasileiro deve observar as regras da FIFA, da CONMEBOL, da CBF e da federação estadual correspondente.

A FIFA define em seu estatuto o “association football” como o jogo por si controlado e organizado, juntamente com as confederações continentais e/ou as federações nacionais filiadas, e que segue as regras definidas pela International Football Association Board (popularmente referida como International Board). No Regulamento de Status e Transferências de Jogadores (“RSTP”, na sigla em inglês), por sua vez, utiliza-se de outra expressão de significado análogo: “organised football”.

O Artigo 5 (1) do RSTP deixa claro que somente atletas devidamente registrados junto às federações nacionais (e consequentemente à FIFA) podem participar do “futebol organizado”. De outro lado, o estatuto da FIFA determina, em seu Artigo 20 (1), que os clubes se subordinam às federações nacionais; e prevê, no Artigo 8 (3), que todas as pessoas físicas e jurídicas envolvidas com o futebol obrigam-se a seguir os ditames do próprio estatuto e dos regulamentos da FIFA.

Nesse aspecto, chama a atenção o fato de que a entidade, em seu comunicado conjunto com as confederações continentais, usa os princípios do mérito esportivo e do acesso/rebaixamento como fundamentos do seu posicionamento contrário à promoção de uma superliga de clubes. Eles encontram-se insculpidos no Artigo 10 do Regulamento Sobre a Aplicação do Estatuto da FIFA, isto é: mais do que princípios gerais, são normas impositivas aos clubes e jogadores; e a participação em uma liga que não as observe implica descumprimento também do Artigo 8 (3) do estatuto da FIFA, acima referido.

Assim basicamente poderia se estruturar, em termos jurídicos, a ameaça da FIFA e das confederações continentais. Ela se baseia em normas de conteúdo geral que, quando aplicadas em conjunto, apontam possíveis violações de seu estatuto e de seus regulamentos por aqueles que eventualmente participem da suposta superliga.

E vale ressaltar que esse modelo não é exclusividade do futebol; é comum que as federações internacionais dos demais esportes contemplem, em seus estatutos e regulamentos, normas que visam impedir a participação de integrantes de sua pirâmide em eventos externos – muitas vezes, com regras mais diretas e específicas nesse sentido, como era o caso da ISU, que expusemos na semana passada.

Na prática, esses impedimentos previstos na Lex Sportiva costumam assegurar o monopólio das entidades de administração da modalidade que integram a pirâmide correspondente. Afinal, por exemplo, não valeria a pena a um clube europeu se arriscar a ser excluído da UEFA Champions League ou mesmo da liga nacional para participar de torneios alheios ao “futebol organizado”, menos rentáveis e competitivos. Mas e se houvesse um campeonato ainda mais rentável e competitivo?

Pois essa é a ameaça que uma possível superliga de clubes europeus representa especialmente à FIFA e à UEFA: um torneio que contaria com os principais clubes e jogadores do mundo, altamente atrativo tanto comercial quanto esportivamente, mas que estaria fora da estrutura da pirâmide por elas consolidada. Por isso a recente manifestação das entidades traz à tona justamente princípios e normas da Lex Sportiva que poderiam ensejar sanções àqueles que participem de eventos externos ao “futebol organizado”.

Se de fato as ameaças da FIFA fossem efetivadas, haveria efeitos colaterais. Não apenas os clubes estariam sujeitos a exclusões de competições, como os jogadores poderiam ser impedidos de representar suas seleções nacionais. Surgiriam, então, algumas questões de ordem prática.

Os atletas escolheriam atuar por um superclube europeu, participante daquele que seria certamente o principal campeonato de clubes do mundo? Ou optariam por clubes que não participam da superliga, podendo assim jogar pela seleção nacional? Se a escolha de muitos fosse pela segunda hipótese, afinal seria possível existir uma superliga fora da pirâmide sem boa parte dos melhores jogadores? E se a opção fosse pela primeira hipótese, FIFA e UEFA manteriam sua posição e se conformariam com uma Copa do Mundo sem os melhores jogadores, ou com uma UEFA Champions League sem os principais clubes?

São muitas perguntas, e talvez nunca tenhamos as respostas. Antes de tudo, a superliga ainda não é uma realidade. Arranjos políticos e econômicos entre os clubes, a FIFA e a UEFA (sem prejuízo das demais confederações continentais) podem ocorrer de modo que não se dê continuidade ao projeto ora especulado; ou mesmo com uma solução que o acomode na estrutura piramidal atualmente existente. Além disso, urge lembrar o precedente da ISU: as normas da Lex Sportiva que resultem em monopólio podem ser contestadas perante a Comissão Europeia e/ou o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Nesse caso, caberá à FIFA demonstrar que suas regras são adequadas e proporcionais para atingir um objetivo legítimo em prol do esporte. Caso não consiga fazê-lo, essas normas poderão ser afastadas pela Comissão Europeia e/ou pelo TJUE, e seu monopólio restará formalmente abalado – no que seria mais um marco para a interação entre a Lex Sportiva e o Direito da União Europeia. A conferir.

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