O dia de ontem, dia internacional do orgulho LGBT+, foi de reflexões acerca da homofobia. É muito bom que assim seja; é preciso que a sociedade civil dialogue sobre suas questões. Quanto mais complexas, mais diálogo merecem. É isso que proponho na minha coluna de hoje, mais uma vez: diálogo. Desta vez sobre a atuação da Justiça Desportiva em relação à homofobia.
Para tanto, é necessário que façamos uma breve análise dos dispositivos legais e regulamentares sobre o tema. Começamos, sempre, com a Constituição Federal, que em seu artigo 5º, inciso XLI prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Passamos à Lei Pelé (Lei Geral sobre o Desporto – 9.615/98), que, quando se refere aos princípios fundamentais do desporto, prevê que “o desporto, como direito individual, tem como base os princípios da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade esportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial”.
No mesmo sentido, já nos voltando à internacional privada, o Código Disciplinar da FIFA, em seu artigo 13, prevê que “Qualquer pessoa que ofenda a dignidade ou integridade de um país, uma pessoa ou grupo de pessoas através de desprezo, discriminação ou depreciação palavras ou ações (por qualquer meio) em razão da raça, pele, origem étnica, nacional ou social, sexo, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, riqueza, nascimento ou qualquer outro status ou qualquer outro motivo, será sancionado com uma suspensão de pelo menos dez partidas ou um período específico, ou qualquer outra medida disciplinar apropriada”. Além disso, a circular nº 1682 de 25 de julho de 2019 da FIFA determina a adoção de procedimentos por todas as Federações Membros e respectivos árbitros no combate a ocorrência de comportamentos discriminatórios durante as partidas de futebol.
Finalmente, o foco da coluna: a Justiça Desportiva. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva dispõe sobre o tema no artigo 243-G o qual, pela relevância do tema, convém a transcrição da íntegra do artigo:
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.
§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.
§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.
§ 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170.
Cabe ressaltar que, ainda que o artigo 243-G do CBJD não trate a homofobia de forma específica, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, firmou entendimento quanto a tipificação e culpabilidade de atos considerados discriminatórios em razão da orientação sexual.
Não há lei no Brasil que trata especificamente do crime por homofobia. Houve um projeto de lei, o PLC 122/06, que visava alterar a Lei do Racismo (Lei 7.716/89), criminalizando a discriminação motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gênero da pessoa discriminada. O referido projeto foi arquivado sem decisão de mérito já que tramitou no Congresso Nacional por oito anos sem aprovação.
No ano passado, porém, o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, reconheceu a mora do Congresso Nacional para legislar sobre atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGTB+ e enquadrou a homofobia e a transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo – Lei 7.716/1989.
Pouco tempo depois da decisão do STF, a Procuradoria do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, como parte do trabalho preventivo contra casos de homofobia no futebol brasileiro, emitiu uma recomendação para que clubes e Federações atuem de forma preventiva com campanhas educativas e que os árbitros relatem qualquer tipo de manifestação preconceituosa nas súmulas e documentos oficiais.
Ocorre que, o STF criou um novo tipo penal por analogia. A decisão da Suprema Corte é louvável no mérito, mas peca na forma. Trata-se de clara afronta ao princípio legalidade penal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Quem define tipo penal, portanto, é a lei.
Para que a norma penal seja aplicada, a conduta do sujeito deve incidir exatamente no que está descrito na lei. Como a criminalização da homofobia ocorreu por meio de decisão do judiciário, há definição legal exata do que seria o ato homofóbico punível.
Esta incerteza também é refletida na aplicação do artigo 243-G para punir atos homofóbicos. Na minha coluna do dia 15/06/2020, na qual propus uma reflexão sobre a ofensa à honra na Justiça Desportiva, eu mencionei que o bem jurídico tutelado no Código “não é somente a pessoa a quem a ofensa é dirigida, mas o esporte em si, ou, mais precisamente, à Ética Desportiva, que é o bem jurídico que a própria norma aponta como o indicado.”
Nesse sentido, portanto, qual seria a definição sobre exatamente qual conduta é considerada homofóbica para que seja punível por afronta ao artigo 243-G, à luz da proteção ao bem jurídico esporte (e, claro, em observância aos princípios constitucionais e legais destacados no início da coluna e às regulamentações internacionais)?
A própria CBF já foi punida pela Conmebol por gritos homofóbicos da torcida brasileira no Morumbi no jogo de abertura da Copa América de 2019, por “ferir o regulamento disciplinar da Conmebol”. A conduta costumava a ser ignorada pela entidade, mas depois das orientações da FIFA sobre ações de combate à homofobia, passou a ser punida.
Ainda que não tenhamos a definição estritamente legal sobre a conduta punível à luz da analogia à Lei do Racismo, seria benéfico que os tribunais de justiça desportiva, após reflexão e diálogo com a comunidade desportiva, estabelecessem critérios e condutas definidas para a aplicação do artigo 243-G. A medida traria maior relevância, eficácia e justiça no combate à homofobia.