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Imane e Lin e o “exame de Schrödinger” da IBA

Introdução

Duas boxeadoras que foram desqualificadas para competir com mulheres em um evento mundial promovido pela International Boxing Association (IBA) no ano passado foram autorizadas a lutar nos Jogos Olímpicos de Paris este ano.

Na época de suas desqualificações, o presidente da IBA, que era até então a entidade central da modalidade em seu caráter olímpico, alegou que os testes cromossômicos das boxeadoras deram XY (as mulheres normalmente têm dois cromossomos X, enquanto os homens normalmente têm um cromossomo X e um Y).[1]

Ocorre que o COI não reconhece mais a IBA como o órgão dirigente do boxe olímpico e, em vez disso, refere-se à Unidade de Boxe de Paris 2024 – uma unidade ad-hoc desenvolvida pelo COI – para seus padrões de elegibilidade, que autorizou as atletas a participarem dos jogos.

A polêmica teve inicio com Imane Khelif, da Argélia, que nasceu mulher, identifica-se como mulher e compete como mulher. Em seu país natal, é ilegal ser uma pessoa trans ou fazer uma cirurgia trans. Na Argélia, ser uma pessoa LGBTQ pode levar um indivíduo à prisão.

Para fins de esclarecimento, cumpre trazer à baila o recorde oficial de lutas de Imane no BoxRec[2], o site oficial para esses fins. No site[3], Imane conta com mais de 51 lutas de boxe amador feminino, tendo 42 vitórias e 9 derrotas, anotando 6 nocautes (métrica importante, se considerarmos o risco propagado pela mídia relativo à sua participação em lutas contra mulheres).

O mesmo acontece com Lin: com um recorde[4] de 60 lutas amadoras femininas, com 46 vitórias e 14 derrotas (e nenhum nocaute), a atleta competia desde 2013 em torneios promovidos pela IBA, tendo, assim como Imane, disputado as Olímpiadas de Tóquio sem óbice algum.

Importante ressaltar que Imane e Lin não se identificam como “trans”. Ambas sempre foram documentadas como mulheres e, como tal, participaram de competições de boxe durante toda a sua vida.

Considerando ainda que ambas já enfrentaram em torno de 50 mulheres em suas carreiras, é importante questionar: por que nenhuma mulher jamais alegou no passado estar incomodada com o “poder de nocaute[5] de ambas (sendo que Lin nunca nocauteou ninguém em sua carreira)?

Vamos à posição da IBA quanto à questão.

Com um grão de sal: a posição da IBA

Embora tenha alegado que ambas são homens, nenhum documento da IBA esclarece exatamente como essas atletas, que haviam competido sem problemas no passado, foram parar fora dos limites de gênero da organização. As atas da reunião da diretoria após os campeonatos mundiais de 2023[6] citam repetidamente testes não especificados em um laboratório não identificado e que as duas boxeadoras “não cumpriram as regras de elegibilidade”.

A IBA realizou uma coletiva de imprensa controversa há poucos dias para responder para tratar a questão, não fornecendo novamente nenhuma prova sobre esse caso além de referências vagas a reclamações de países adversários.

Durante a coletiva, o presidente da IBA, Umar Kremlev, disse então, por meio de um tradutor, que os testes mostraram níveis elevados de testosterona[7]. Isso parece estar em contradição direta com uma declaração da própria IBA de 31 de julho[8], na qual esta declara que Khelif e Lin “não se submeteram a um exame de testosterona, mas foram submetidos a um teste separado e reconhecido, no qual os detalhes permanecem confidenciais”.

Tanto Khelif quanto Lin acabaram decidindo não recorrer de suas desqualificações dos campeonatos mundiais do ano passado – disputados sob a tutela da IBA – para a Corte de Arbitragem do Esporte, um processo difícil que normalmente custa mais de US$ 40.000. Embora a IBA declare que paga a maior parte dos custos em outros casos em que os boxeadores desejam recorrer de uma decisão, os atletas ainda precisam pagar uma parte não especificada, o que às vezes os leva a desistir por causa do ônus financeiro.

Importante relembrar a questão da IBA e porque esta acabou fora da organização do boxe olímpico em Paris: o COI inicialmente retirou o reconhecimento da IBA – então chamada de AIBA – em junho de 2019 devido a preocupações com julgamentos e arbitragem, estabilidade financeira e governança. Isso ocorreu após uma série de alegações de decisões fraudulentas nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 e de má administração financeira.

Dois anos depois, o COI não a envolveu na organização dos eventos de boxe nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2020 devido a preocupações contínuas com questões de julgamento e governança.

Após a suspensão da IBA e a subsequente retirada de seu reconhecimento pelo COI, os torneios de boxe de Paris 2024, incluindo o processo de qualificação, foram organizados por unidades de boxe criadas pelo COI. Isso foi feito para proteger o esporte do boxe e os atletas.

Outro fato controverso em relação à IBA é que Kremlev foi reeleito presidente em maio de 2022 por aclamação, dois dias depois que o único outro candidato, o presidente da federação holandesa de boxe, Boris van der Vorst, foi removido por um painel de verificação independente. Van der Vorst, que também foi endossado pela USA Boxing, posteriormente ganhou um recurso contra a decisão, mas a maioria dos membros da IBA votou a favor de Kremlev e para não realizar reeleições. (Van der Vorst se tornou o primeiro presidente da World Boxing, a entidade governamental rival da IBA que espera regulamentar o boxe olímpico).

A questão “XY”

Quanto às questões biológicas de Imane e Lin, não há informações de uma fonte confiável, mas o mais provável é que ambas tenham uma anomalia de desenvolvimento sexual (ADS, erroneamente chamada de “intersexo”) de cariótipo XY.

A regra geral é que as mulheres têm cromossomos XX e os homens têm cromossomos XY, mas há algumas ADS que resultam em pessoas que são fenotipicamente do sexo feminino com cromossomos XY (embora seu sexo cromossômico seja masculino). Essa é uma questão mais complexa, mas nesses casos os efeitos da testosterona não ocorrem e a puberdade masculina não acontece no corpo, portanto não haveria as vantagens associadas a ela.

A Corte de Arbitragem do Esporte supervisionou anteriormente o caso da corredora sul-africana Caster Semenya, que acusou a World Athletics (então chamada de IAAF) de ter “políticas discriminatórias” em relação a atletas com diferenças de desenvolvimento sexual. Embora afirmasse ser uma mulher biológica, descobriu-se que Semenya tinha cromossomos XY. A maioria das mulheres, inclusive as atletas de elite, tem níveis naturais de testosterona de 0,12 a 1,79 nanomoles por litro (nmol/L), mas Semenya tem gônadas masculinas que produzem um nível normal de testosterona para um homem.

Entretanto, pelo que foi relatado pela IBA, o teste de verificação de sexo teria detectado “vantagens competitivas” no caso de Imane e Lin. O COI emitiu uma nota de correção[9] depois que seu presidente Bach declarou que “não era um caso de ADS” para corrigir essa declaração, reconhecendo implicitamente que se trata de um caso de ADS.

Quanto às vantagens mencionadas pela IBA, o argumento seria que as atletas mulheres cisgênero podem correr um risco maior de sofrer danos físicos e lesões se competirem em esportes com atletas transgêneros e intersexuais maiores e mais fortes.[10]

Ocorre que o status ou a identidade de gênero de um indivíduo não cria nenhum perigo ou risco inerente à segurança. Em vez disso, as disparidades de força e/ou físico podem fazê-lo, dependendo do esporte. É provável que uma disparidade de força e/ou físico crie ou exacerbe os riscos à segurança em esportes que envolvam contato físico entre competidores.[11]

Em esportes de combate como o boxe – em que o objetivo é suprimir fisicamente o oponente – os riscos apresentados pelas disparidades de força e/ou físico são indiscutivelmente mais significativos e podem justificar alguma atenuação.

Entretanto, os riscos decorrentes das disparidades de força e físico também existem entre atletas cisgêneros que competem nesses esportes. Os esportes de combate atenuam esses riscos – não excluindo atletas de determinadas forças e físicos – mas por meio da criação de divisões de peso que buscam equiparar os atletas com base no tamanho e na força.

No caso dos esportes olímpicos, as revogadas diretrizes do Comitê Olímpico Internacional (COI) exigiam que todas as atletas mulheres trans declarassem seu gênero e não mudassem essa declaração por pelo menos quatro anos, bem como tivessem um nível de testosterona inferior a 10 nanomols por litro por pelo menos um ano antes da competição e durante todo o período de elegibilidade.

Atualmente, o COI atribui às federações internacionais a responsabilidade de desenvolver suas pesquisas, bem como seus regramentos, em consonância com as peculiaridades de cada modalidade.[12]

Já a política atual da NCAA[13] estipula que a participação de estudantes-atletas transgêneros em cada esporte “deve ser determinada pela política do órgão nacional de governo desse esporte”, em alinhamento com as políticas dos Comitês Olímpico e Paraolímpico dos EUA.

Recentemente a Association of Ringside Physicians (ARP) – entidade norte-americana que reúne médicos, profissionais de saúde afins, estudantes, membros de comissões governamentais, órgãos sancionadores, promotores, treinadores e outros envolvidos no fornecimento de saúde, segurança e bem-estar dos participantes de esportes de combate amadores e profissionais – apresentou estudo sobre competidores transgêneros em esportes de combate em 2023.[14]

A posição da ARP assim se resume:

Diversos estudos comprovaram que as mulheres transgênero podem ter uma vantagem atlética competitiva em relação às mulheres cisgênero. Da mesma forma, os homens transgêneros podem sofrer uma desvantagem competitiva em relação aos homens cisgêneros. Essas diferenças – tanto anatômicas quanto fisiológicas – persistem apesar da normalização dos níveis de hormônios sexuais e criam disparidades nas habilidades competitivas que não são compatíveis com o espírito de competição justa. Mais importante ainda, permitir que atletas transgêneros compitam contra atletas cisgêneros em esportes de combate, que já envolvem um risco significativo de lesões graves, aumenta desnecessariamente o risco de lesões devido a essas diferenças. Portanto, a ARP não apoia a competição de atletas transgêneros contra atletas cisgêneros em esportes de combate. (tradução nossa)

Um dos argumentos contrários seria que, embora a testosterona possa ser usada como métrica para garantir a imparcialidade no momento da luta, muitos argumentariam que, quando um lutador homem transgênero inicia sua carreira profissional, ele já passou pela puberdade feminina, o que lhe confere a musculatura e a estrutura óssea de uma mulher. Esse combatente pode estar em desvantagem contra seu combatente homem cisgênero.

Em contrapartida, os especialistas favoráveis à inclusão dos atletas trans na luta alegam que diferenças genéticas são encontradas em atletas do mesmo sexo muitas vezes. A constituição muscular, a flexibilidade das articulações, a velocidade e a agilidade são características variáveis que dão a um atleta uma vantagem ou desvantagem sobre o adversário. Essas características genéticas inatas, juntamente com o treinamento físico intenso e a resistência física e mental, dão ao atleta uma vantagem sobre o concorrente. Seria isso que distinguiria um campeão de um vice-campeão em esportes de combate[15].

Considerações finais

A recusa da IBA em divulgar os detalhes sobre os testes e seus resultados ou metodologias que levaram às exclusões de de Khelif e Lin de suas competições catalisaram um grande alvoroço mundial em torno das duas boxeadoras, que conquistaram medalhas olímpicas apesar de enfrentarem questionamentos sobre seu gênero.

A falta de transparência em relação aos resultados deveria ter levantado preocupações imediatas, especialmente porque a IBA é a única fonte das alegações contra Khelif e Lin. O COI também tem tido conflitos com a IBA há muito tempo devido a uma série de escândalos de corrupção, acusações de má governança e preocupações com o presidente da organização, Umar Kremlev, e seus vínculos com o Kremlin e o presidente russo Vladimir Putin – conflitos que levaram a IBA a ser destituída de sua autoridade para regulamentar o boxe olímpico.

A questão é simples: a IBA mostra os exames, comprovando que ambas nasceram homens ou que têm níveis muito altos de testosterona, e aí discutiremos o caso de maneira diferente.

Portanto, até abrirmos a caixa para ter certeza, o gato está vivo e morto[16].

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[1] LAVIETES, Matt. Boxers previously barred from women‘s events will fight in Paris Olympics. NBC News, 30 jul. 2024. Disponível em: https://www.nbcnews.com/nbc-out/out-news/boxers-olympics-imane-khelif-lin-yu-ting-gender-eligibility-rcna164257. Acesso em: 1 ago. 2024. Tradução nossa.

[2] Quando a Associação de Comissões de Boxe (ABC) dos EUA votou para tornar o BoxRec o detentor oficial de registros do esporte nos Estados Unidos, este se tornou o padrão do setor. Para as pessoas do ramo do boxe – promotores, comissões atléticas e órgãos sancionadores em todo o mundo – o BoxRec é a ferramenta essencial que eles usam para encontrar oponentes, acompanhar suspensões médicas e finalizar os resultados do card de lutas. Hoje, além do boxe, o BoxRec também registra outras modalidades de luta, como o MMA e o kickboxing.

[3] https://boxrec.com/en/box-am/899786.

[4] https://boxrec.com/en/box-am/889134.

[5] Entendo que se trata de boxe amador, onde o que conta é o volume, mas a “grita” dos críticos gira mais em torno do suposto “poder destrutivo” das atletas, que se destacaria, se de fato existisse, mesmo com uma regra que não privilegia a intensidade do golpe.

[6] CAMPBELL, Morgan. Olympic women‘s boxing eligibility controversy is a reminder of the harm in trusting bad faith actors. CBC, Canada, 8 ago. 2024. Disponível em: https://www.cbc.ca/sports/olympics/summer/boxing/olympics-imane-khelif-angela-carini-boxing-controversy-1.7282002. Acesso em: 11 ago. 2024.

[7] https://www.youtube.com/watch?v=crKgzcIVf1k&t=7s.

[8] https://www.iba.sport/news/statement-made-by-the-international-boxing-association-regarding-athletes-disqualifications-in-world-boxing-championships-2023/.

[9] https://x.com/iocmedia/status/1819667573698445793.

[10] WINDHOLZ, Eric. Transgender and Intersex Athletes, Professional Sport and the Duty to Ensure Worker Health and Safety: Challenges and Opportunities. Adelaide Law Review, Monash University Faculty of Law Legal Studies, v. 41, n. 2, p. 597-623, 2020. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3794912. Acesso em: 12 ago. 2024.

[11] Ibid. p. 617.

[12] Mais em: POTERIKO, Igor Gabriel Krüger. A nova diretriz do COI para inclusão e elegibilidade de atletas transgêneros. Nada diferente do previsto, mas quais as suas problemáticas? Lei em Campo, Brasil, 8 dez. 2021. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-nova-diretriz-do-coi-para-inclusao-e-elegibilidade-de-atletas-transgeneros-nada-diferente-do-previsto-mas-quais-as-suas-problematicas/. Acesso em: 1 ago. 2024.

[13] Board of Governors updates transgender participation policy. NCAA, EUA, 19 jan. 2022. Disponível em: https://ncaaorg.sidearmsports.com/news/2022/1/19/media-center-board-of-governors-updates-transgender-participation-policy.aspx. Acesso em: 1 ago. 2024.

[14] BASCHARON, Randa et al. Transgender competition in combat sports: Position statement of the Association of ringside physicians. The Physician and Sportsmedicine, EUA, ano 2024, v. 52, ed. 4, p. 317-324, 19 jan. 2022. DOI https://doi.org/10.1080/00913847.2023.2286943. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/epdf/10.1080/00913847.2023.2286943?needAccess=true. Acesso em: 1 ago. 2024.

[15] SETHI, NK; KHABIE, V. T. Transgender athletes in combat sports: to fight or not to fight? ARP Journal of Combat Sports Medicine, ano 2021, v. 3, n. 2, p. 18, jul. 2021. Disponível em: https://ringsidearp.org/wp-content/uploads/2021/06/ARP-Vol3-Iss2.pdf. Acesso em: 30 jul. 2023.

[16] O Gato de Schrödinger é um experimento mental criado pelo físico austríaco Erwin Schrödinger para ilustrar um paradoxo da superposição quântica em que um gato hipotético pode ser considerado vivo e morto ao mesmo tempo porque seu destino está ligado a um evento aleatório que pode (ou não) ocorrer.  Se você selar um gato em uma caixa com algo que pode eventualmente matá-lo, não saberá se o gato está vivo ou morto até que abra a caixa. Portanto, até que você abra a caixa e observe o gato, ele está simultaneamente vivo e morto.

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