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Investimento e igualdade

O Lei em Campo noticiou o Projeto de Lei 1.891/22 que pretende impor paridade de investimento dos recursos públicos nas modalidades de prática esportiva feminina e masculina.

A respeito desse assunto, e entre diversas questões que objetivam o desenvolvimento humano e socioeconômico, a Declaração do Milênio das Nações Unidas, assinada no ano de 2000 por Chefes de Estado e de Governo e representantes de mais de centenas de países, incluiu a supressão da desigualdade de gênero. Atribui-se as políticas públicas e legislação o enfrentamento das causas da disparidade de tratamento de gênero em todas as dimensões sociais, sendo uma das barreiras a insuficiência de investimentos ajustados às demandas deficitárias relacionadas ao gênero, que obstaculiza condições equânimes de possibilidades na representação política, cargos de liderança etc.

No tocante à legislação no Brasil, o constituinte estabeleceu tratamento diferenciado a mulher em três situações, sendo essas a licença-maternidade (art. 7º, incisos XVIII e XIX, CF), o incentivo ao trabalho da mulher com normas protetoras (art. 7º, inciso XX, CF), e o prazo inferior para a aposentadoria por tempo de serviço da mulher (art. 40, inciso III, letras a,b,c e d; art. 202, incisos I,II,III e §1º, CF).

Apesar da previsão constitucional da igualdade de direitos, e a despeito da Constituição Federal ser uma “carta de princípios, que objetiva, principalmente, fundar uma ordem jurídica e criar uma ordem política”, na prática, questões furtivas geram um descompasso entre o exercício do direito a igualdade, decorrendo manifestamente a “discriminação indireta” de gênero.

Quanto às políticas públicas, a pesquisa consolidada no Índice de Desigualdade de Gênero, embora não compute especificamente “nível salarial, posições de liderança por mulheres, reapresentação no governo local, uso do tempo e acesso a bens”, busca identificar indicadores de desigualdade de gênero como instrumento para combater políticas discriminatórias e outros fatores, muitas vezes ocultos, que perturbam a igualdade de gênero efetivamente.

Entre os esforços normativos para contribuir com a posição socioeconômica das mulheres, inserindo-as em paridade qualitativa em todos os espaços da sociedade, dentre estes, a representação política e maior inserção qualitativa da mulher no mercado de trabalho, como cargos de liderança, encontra-se nas questões que antecedem o problema em si.

Em atenção a isso, o Decreto nº 62.150 de 1968 promulgou a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o qual versa sobre discriminação em matéria de emprego e profissão. Referido Decreto foi revogado pelo vigente Decreto 10.088/19, que consolida “atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil”.

Como parte do movimento para o confrontar a discriminação em suas diversas formas, a Organização Internacional do Trabalho conceituou e descreveu a prática, como forma de rastrear o problema, definindo que “discriminar no emprego e na ocupação é tratar as pessoas de forma diferente e menos favorável devido a certas características, como sexo, cor da pele, religião, ideias políticas ou origem social, independentemente dos requisitos de trabalho. (OIT, 2003, p.11).

A Convenção nº 111 da OIT sobre Discriminação no Emprego e Profissão, em seu art. 1º, define que “discriminação compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência, com base na raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a oportunidade de tratamento no emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão, conforme pode ser determinado pelo País-membro concernente, após consultar organizações representativas de empregadores e de trabalhadores, se as houver, e outros organismos adequados. 2. Qualquer distinção, exclusão ou preferência, com base em qualificações exigidas para um determinado emprego, não são consideradas como discriminação. 3. Para os fins desta Convenção, as palavras “emprego” e “profissão” compreendem o acesso à formação profissional, acesso a emprego e a profissões, e termos e condições de emprego.”

Em coerência com a ideia de que “medidas especiais adotadas com o objetivo de assegurar a igualdade de tratamento e oportunidades na prática para indivíduos com requisitos específicos ou para grupos desfavorecidos como consequência da discriminação passada ou presente no mercado de trabalho”, categorizando-se essas medidas como “especiais de proteção ou assistência e medidas de ação positiva” (OIT, 2003, p. 14), a OIT passou a diferenciar a discriminação direta da discriminação indireta, da seguinte forma: “A discriminação é direta quando os regulamentos, leis e políticas explicitamente excluem ou prejudicam os trabalhadores com base em características como opinião política, estado civil ou sexo”, sendo que “a discriminação indireta pode ocorrer quando as normas e práticas aparentemente neutras têm efeitos negativos sobre um número desproporcional de membros de um grupo independentemente de cumprir ou não os requisitos do trabalho.

No esporte, a defasagem de determinadas modalidades femininas é nítida. Como já tratado em outra ocasião, o Decreto de 3.199/41, que estabelecia as bases da organização dos esportes no Brasil dispunha, em seu artigo 54, que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.

Apesar do citado Decreto ter sido revogado desde 1979, ainda assim, a atividade esportiva exercida por mulheres não tinha permissão para ocorrer em campos oficiais, nem ser arbitradas por profissionais federados. No Brasil, a modalidade feminina de futebol passou a contar com um pouco mais de respaldo apenas após a exigência da FIFA, em 1983, em regulamentar a modalidade, além de impor, ao menos em tese, a paridade de gênero no referido regulamento da FIFA.

Dentre as medidas para promoção da igualdade no futebol, a entidade máxima de administração desportiva passou a inserir “gênero” na abordagem de seus objetivos: “art. 2 – hacer todo lo posible por garantizar que todos aquellos que quieran practicar este deporte lo hagan en las mejores condiciones, independentemente del género o la edad”; “art.4 – Igualdad de género y lucha contra la discriminación y el racismo”, vedando práticas discriminatórias em todas as suas esferas (étnicas, religiosas, sociais, políticas, relativas a gênero, sexualidade etc).

A FIFA incluiu, ainda, questões de gênero como pauta de debate na Conferência Anual da FIFA (art. 49) como categoria de discussão e análise na Conferência Anual do órgão. A postura da entidade contribuiu para ações positivas para a modalidade, além de fomentar o movimento para fortalecer o futebol feminino ao redor do mundo, cuja jornada e contexto serão abordados de forma mais ampla na próxima semana.

Alinhado a esse ideal, a CONMEBOL impôs, em 2016, a criação ou associação permanente de equipes de futebol feminino em competições oficiais, categoria de base como requisito para obtenção do licenciamento. Desde 2019, as agremiações desportivas que pretendem disputar a Copa Sul-Americana e Libertadores da América devem cumprir a seguinte condição “El solicitante deberá tener un primer equipo femenino o asociarse a un club que posea el mismo. Además, deberá tener por lo menos una categoria juvenil femenina o asociarse a un club que posea la misma. En ambos casos el solicitante deberá proveer de soporte técnico y todo el equipamento e infraestructura (campo de juego para la disputa de partidos y de entrenamiento) necesarias para el desarrollo de ambosequipos en condiciones adecuadas. Finalmente, se exige que ambos equipos participen en competiciones nacionales y/o regionales autorizadas por la respectiva Asociación Miembro”.

Inserindo as especificidades do futebol na questão, muito embora o ordenamento jurídico vigente no Brasil tenha a garantia constitucional de estabilidade provisória no emprego e licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, muitas atletas sequer possuem contrato de trabalho e o registro correspondente. Além disso, o contrato de trabalho de atleta profissional se dá por tempo determinado, sendo comum que não sejam renovados em casos de atleta gestante, além da possível e comum redução da remuneração recebida pela licença do uso de sua imagem.

Quanto a contrato de trabalho por tempo determinado, a Súmula 244 do Tribunal Superior do Trabalho assegura que a empregada gestante tem direito à estabilidade provisória do artigo 10, inciso II, alínea b do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Já no âmbito da lex sportiva, como já citado em diversas oportunidades no Lei em Campo, a FIFA passou a incluir a licença-maternidade obrigatória de 14 semanas, assegurando pelo menos dois terços do salário da atleta, entre outros regulamentos capazes de respaldar o direito às jogadoras, impondo a garantia de um ambiente em que a atleta que engravidar, não sofra qualquer desvantagem com relação à equipe, e que ao retornar da licença-maternidade, as agremiações esportivas devem envidar esforços para reintegrá-las com suporte médico e físico adequado. Inclusive, obrigando a inserção da atleta gestante em função alternativa, quando da impossibilidade de desempenhar a atividade desportiva, além de determinar punição como a supressão de registros de jogadoras por até duas janelas consecutivas aos clubes que rescindissem unilateralmente atletas gestantes, ainda que a razão da rescisão fosse presumida.

A imposição de tais regras pela FIFA estabeleceu um balizador mínimo global, alcançando as atletas do mundo todo, independente da legislação interna e local.

Na próxima semana, este espaço abordará o contexto histórico e o pano de fundo que contribuíram para os mecanismos de redução de discriminação e disparidade de gênero no esporte em outros países.

A busca pela redução e eliminação de todas as formas de desigualdade e discriminação tem sido combatido por legislação, tratados, convenções, políticas institucionais, em nível nacional e internacional. No mundo do esporte, observa-se mudanças gradativas diante das citadas previsões dos regulamentos interna corporis. Impor formas de homogeneizar o repasse de recursos e investimentos as modalidades esportivas femininas compreendem uma excelente tentativa de atacar a possível causa raiz do problema. Prova disso, o bem-apresentado desempenho da Euro Feminina 2022, cuja atuação das atletas elevou a audiência e a qualidade da competição.

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