Search
Close this search box.

Liga parte 1: Controle Econômico, a pedra fundamental

Na última semana, a notícia de que um investidor estrangeiro estaria disposto a aportar um capital na Liga de clubes, aqui no Brasil, ganhou muito destaque[1]. Nesse sentido, em troca do investimento inicial, ele receberia uma porcentagem, durante um período de tempo, sobre tudo o que a Liga arrecadasse, seja com patrocinadores, marketing e direitos de transmissão. O acordo seria muito semelhante à polêmica avença entre Laliga e CVC, na Espanha, explicado por este autor em outra oportunidade[2].

Não obstante a possível oferta do fundo de investimento e ao contrário da Liga Espanhola, a criação de uma Liga no Brasil ainda é incipiente, com raras informações divulgadas sobre a sua estrutura e o impacto sobre o sistema brasileiro de competições. Contudo, esse formato promete tirar o país do futebol de um atraso histórico de mais de 20 anos.

Sendo assim, começarei a escrever uma série de artigos, comentando sobre alguns fatores primordiais para o êxito de uma Liga e trazendo a experiência estrangeira nesse modelo de organização. O primeiro episódio será sobre controle econômico, exercido sobre a Liga sobre os seus membros. Quando se fala desse tema, Laliga é uma referência mundial, elogiada por todos.

Com efeito, para uma melhor compreensão desse fenômeno, é necessário discorrer sobre o contexto histórico do país, demonstrando que a normativa pública foi preponderante para assegurar o sucesso. Após uma década de crescente endividamento dos clubes, marcados por gestões amadoras e danosas, bem como fracassadas tentativas do Estado para estancar a sangria, adveio a Lei do Esporte (10/1990)[3].

Nesse dispositivo, na tentativa de impor um modelo de gestão profissional, um maior controle e transparência nas estruturas do futebol, foi implementada uma obrigação para que os clubes que não tivessem apresentado um balanço positivo nos anos anteriores se convertessem em Sociedades Anônimas Desportivas (SAD).

Do contrário, eles não poderiam disputar as competições consideradas profissionais (LaLiga, primeira e segunda divisões, e Liga de Basquete) e perderiam as ajudas financeiras do Plano de Saneamento do Estado, que tinham como objeto a destinação de recursos de loteria esportiva para o pagamento do passivo das entidades.

A título de curiosidade, somente quatro clubes não se transformaram em SAD (Real Madrid, Barcelona, Athletic Club e Osasuna) naquele momento. Recentemente, foi excluída a obrigação de ser Sociedade Anônima para poder participar de competições profissionais[4].

Além disso, essa normativa instituía a competência da Liga para desempenhar, sobre os seus associados, a função de tutela, controle e supervisão. Em seguida, veio o Real Decreto 1835/1991[5], sobre as Federações Desportivas Espanholas, que era parecido, pois impunha o papel da Federação de determinar as regras e critérios para a elaboração de orçamento e supervisionar o seu cumprimento pelos clubes/SAD. A versão original da Lei do Esporte ainda fixava como infração muito grave o descumprimento dos acordos econômicos com a Liga correspondente.

A princípio, se imaginava que com a concepção de um arcabouço jurídico favorável, o ambiente do esporte automaticamente se tornaria mais responsável financeiramente e os clubes encontrariam um caminho rumo ao profissionalismo e para a redução das suas dívidas. No entanto, o cenário foi bem diferente e mudou somente em razão de uma forte influência externa.

Sob este viés, em 2010, foi implementado o conceito e as regras de fair play financeiro da UEFA[6], que tinham como principais objetivos: i) introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes, ii) encorajar os clubes a competir apenas com valores das suas receitas, iii) com as finanças saneadas, possibilitar investimentos no futebol de base e em sua estrutura, garantindo a viabilidade a longo prazo do futebol europeu, e iv) assegurar que as equipes pudessem resolver os seus problemas financeiros, satisfazendo os seus credores.

Em 2016, totalizando 5 anos quando do início da fiscalização, a UEFA estimou que as perdas foram reduzidas em aproximadamente 80 por cento entre as equipes espalhadas por toda o continente. Saíram de 1,7 bilhões de euros para 286 milhões, o que demonstrava, por si só, a eficácia de medida.

Baseado nas mesmas premissas e visando uma competição mais equilibrada, onde nenhum clube devedor insolvente pudesse ter vantagem competitiva por deixar de pagar suas dívidas, ou seja, a adoção do “calote” não poderia gerar nenhum benefício esportivo a ninguém, os membros de Laliga se reuniram e estabeleceram novos parâmetros de controle econômico, em 2013.

Ocorre que, todavia, não satisfeita em seguir as mesmas diretrizes da UEFA, a Liga Espanhola restringiu ainda mais o cerco, criando além do controle a posteriori, realizado pela maioria das Ligas/Federações e pela própria UEFA, o controle econômico a priori[7]. Em outras palavras, antes mesmo da temporada começar, os clubes sabem o quanto poderão gastar em contratações, com comissões a agentes, em renovações e em salários de atletas e funcionários, da base e do profissional, por exemplo.

Para tanto, se valeu do alicerce jurídico público já mencionado e de alterações em seu Estatuto[8], criando um Regulamento com normas para elaboração de orçamento de clubes e SAD[9]. Sendo assim, a transparência e a colaboração das entidades em fornecer os documentos necessários é fundamental para o correto funcionamento desse mecanismo, sob pena de punição aos clubes que não facilitarem, omitirem ou falsificarem. Além disso, é obrigatório o sigilo para todas as partes envolvidas.

Alguns dos documentos para a elaboração desse orçamento prévio, entre os muitos exigidos, são: estimativa de contas de perdas e ganhos e balanço projetado da temporada anterior, estimativa de investimento e desinvestimento (projeção de quanto se estima despender em aquisição de direitos econômicos de jogadores, em estrutura, por exemplo), essa parte muito interessante, pois obrigava ao clube a não investir menos do que 80% da média das 3 temporadas anteriores, com exceção dos clubes que subissem de divisão. Outrossim, outro documento importante é o orçamento de financiamento, aplicável no caso de obtenção ou devolução de crédito a entidades de crédito ou a pessoas físicas ou jurídicas vinculadas ao clube.

A elaboração desse controle a priori pode mudar ao longo da temporada e o clube pode solicitar a revisão dos valores fixados junto ao Órgão de Validação, responsável por bater o martelo sobre o orçamento prévio. Nesse ano, após o mercado de verão, quem tinha o maior orçamento era o Real Madrid, com cerca de 739 milhões de euros. Bem abaixo, estavam o Sevilla com 200 milhões e o Atlético de Madrid com 171 milhões. Por sua vez, o Valencia era o clube com menor orçamento após a janela, com apenas 30 milhões de euros[10].

É valido mencionar que os clubes não podem exceder o valor 70 por cento das receitas com gastos do futebol. Aplicando a realidade brasileira, somente 4 dos 20 participantes da Série A, de 2020, poderiam participar de Laliga, segundo esse parâmetro, de acordo com o jornalista Rodrigo Capelo[11], uma das principais vozes sobre negócio no esporte.

Por outro lado, o controle a posteriori se encontra no Libro X do Regulamento de LaLiga. O Comitê de Controle Econômico é o responsável por verificar o cumprimento das normas, resolver divergências técnicas sobre o orçamento prévio entre os clubes e o Órgão de Validação, bem como aplicar as sanções, tais como multas e proibição de poder tramitar licenças federativas para a atuação do jogador, de acordo com o artigo 78bis do Estatuto. As resoluções são recorríveis diante do Comitê de Segunda Instância de Licença UEFA da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).

Não podemos olvidar que os clubes também devem apresentar uma série de documentos, no prazo adequado, entre eles: contas anuais auditadas, lista de dívidas sobre venda de direitos econômicos de jogadores, lista de dívidas e créditos com empregados, lista de dívida com a administração pública. Eles são essenciais para obterem a licença para poder disputar o Campeonato Espanhol e as competições europeias, além de servir como verificação do cumprimento das regras de controle econômico a priori.

Não demorou muito para essa normativa privada fosse questionada à luz da lex publica. Nesse contexto, já no ano de 2014, um dos casos mais emblemáticos foi o do futebolista Pedro León[12], que fazia parte do plantel do Getafe, mas que, devido as disposições do controle econômico, foi impedido de obter a licença, pois a inscrição dele implicaria em uma violação ao limite máximo de gastos permitido, contidos no orçamento aprovado pelo Organismo de Validação.

Ato contínuo, o jogador apresentou uma demanda contra Laliga, alegando que a entidade estava utilizando uma posição de domínio no mercado de maneira abusiva e solicitando que ela se abstivesse de praticar as normas de controle, permitindo que os clubes pudessem contratar nas condições que julgassem convenientes, em conformidade com a livre concorrência. Por fim, ainda requereu danos morais.

O pleito do atleta foi negado. A Justiça reconheceu os efeitos restritivos da concorrência, derivados das regras de controle, como a limitação do custo do plantel de atletas que podem ser inscritos, porém afirmou que tudo isso era fundamental e inerente para que se concretizasse a reorganização do futebol profissional.

Por conseguinte, com o respaldo do Poder Judiciário, finalmente, o futebol espanhol teve uma mudança radical, que era esperada lá nos anos 90 com o advento das SAD, chegando a números que realmente impressionam. As três primeiras temporadas, excluindo Real Madrid e Barcelona, contaram com a redução da dívida líquida dos clubes no valor de 610 milhões de euros[13] e a dívida com a Agência Estatal de Administração Tributária (AEAT) em 420 milhões de euros.[14]

As denúncias dos jogadores por não pagamento da remuneração despencaram. No ano de 2011, foram 341 denúncias, com 28 clubes envolvidos e a importância de 89,08 milhões de euros trazidas à baila. Em 2016, foram somente 6 denúncias, com 6 clubes envolvidos, no valor de 189 mil.[15]

Consequentemente, criando-se um ambiente sustentável, com as finanças saneadas, atraiu-se mais patrocinadores, investidores nos clubes, aumentou-se o valor dos direitos de transmissão e arrecadação, de uma maneira geral. Contudo, não se pode imputar o êxito de Laliga única e exclusivamente ao controle econômico exercido sobre as entidades.

Podemos destacar a centralização na comercialização e uma distribuição mais equilibrada dos direitos de transmissão, além de um audacioso plano de internacionalização da marca, como os principais pontos para o sucesso da organização, que serão debatidos no momento oportuno.

A constante atualização das normas, que tiveram que se adaptar às mudanças forçadas pela evolução do tempo e também às exigências da pandemia, atendendo às demandas dos membros, é fundamental para que as regras possam ser cumpridas e não apenas fiquem na letra fria do ordenamento e obsoletas. Outrora, o regulamento possuía somente 23 artigos e hoje já cresceu para mais de 110.[16]

Sem dúvidas, uma vez especulado e discutido nos bastidores pela CBF, mas ainda não fixado, o fair play financeiro e a existência de um controle econômico rígido são fundamentais e representam um marco inicial indispensável para o crescimento no esporte no país. A lei das SAF não resolverá todos os problemas sozinha.

Decerto, um Regime Centralizado é um caminho que apresenta uma solução viável para a existência dos clubes, entretanto não podemos olvidar que a responsabilidade nos gastos discricionários, que ainda perfarão 80% para as entidades que adotem esse formato, ainda é concedida livremente aos administradores.

Do mesmo modo, a maioria dos clubes da Série A não adotou esse regime, não é Sociedade Anônima e ainda possui dívidas gigantescas. Contudo, os investimentos em contratações e em salários continuam sobressaindo as receitas e o potencial econômico do clube, configurando-se em um doping financeiro. Nitidamente, o ambiente esportivo no Brasil não é equilibrado e saudável no aspecto das finanças.

Diante de todo o exposto, a experiência espanhola e europeia foram bem sucedidas e devem ser adequadas a realidade brasileira. As mudanças devem ser implantadas, executadas e fiscalizadas por profissionais especializados em Direito, Economia e Gestão. Até o próximo capítulo!

Crédito imagem: Getty Images

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Clubes recebem proposta de novo grupo interessado em operar liga; promessa inclui investimento de R$ 4,2 bilhões | negócios do esporte | ge (globo.com) – – última consulta: 08.02.2022

[2] Acordo Laliga – CVC: solução ou sacrifício? – Lei em Campo – última consulta: 08.02.2022

[3] Lei do Esporte – BOE.es – BOE-A-1990-25037 Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. – última consulta: 08.02.2022

[4] https://iusport.com/art/62336/sobre-la-no-obligatoriedad-de-convertirse-en-sadni-de-aportar-avales – última consulta: 08.02.2022

[5] BOE.es – BOE-A-1991-30862 Real Decreto 1835/1991, de 20 de diciembre, sobre Federaciones deportivas españolas. – última consulta: 08.02.2022

[6] Fair play financeiro | Por dentro da UEFA | UEFA.com – última consulta: 08.02.2022

[7] El Control Económico implantado por LaLiga es referencia en Europa | LaLiga – última consulta: 09.02.2022

[8] Estatuto de LaLiga – b9314591e0726340127ba1420a92713a.pdf (laliga.com) – última consulta: 09.02.2022

[9] Normas para elaboração de orçamento de clubes e SAD Estos es un titular para una portada sencilla (laliga.com) – última consulta: 09.02.2022

[10] Límite de coste de plantilla deportiva | LaLiga – última consulta: 09.02.2022

[11] Se fair play financeiro que tirou Messi do Barcelona fosse aplicado no Brasil, só quatro clubes seriam aprovados na primeira divisão | blog do rodrigo capelo | ge (globo.com) – última consulta: 09.02.2022

[12] A vueltas con el control económico de LaLiga – Senn Ferrero – última consulta: 09.02.2022

[13] El Control Económico implantado por LaLiga es referencia en Europa | LaLiga  – última consulta: 09.02.2022

[14] Los Clubes y SAD de LaLiga reducen su deuda con la AEAT en 420 millones de euros | LaLiga – última consulta: 09.02.2022

[15] El control económico de LaLiga reduce a mínimos históricos la deuda de sus clubes | LaLiga – última consulta: 09.02.2022

[16] “El control económico ha cambiado la historia de LaLiga” – AS.com – última consulta: 09.02.2022

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.