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“MP do mandante”: vale a pena ver de novo?

Era junho de 2020 quando foi editada pelo governo federal a Medida Provisória nº 984. Na ocasião, vivíamos a primeira onda da pandemia de Covid-19 e as competições de futebol ainda não haviam sido retomadas – a MP foi publicada no mesmo dia em que Flamengo e Bangu reiniciaram o Campeonato Carioca.

Embora o diploma versasse também sobre outros temas, o centro das atenções (e das discussões) foi a alteração do art. 42 da Lei Pelé. Modificava-se substancialmente a lógica dos direitos de arena, que até então eram compartilhados entre as duas equipes que disputavam uma partida e, a partir da redação conferida pela MP 984, passavam a pertencer exclusivamente ao clube mandante. Em outras palavras, a MP permitia que uma partida de futebol pudesse ser transmitida conforme desejado e negociado exclusivamente pelo mandante, independentemente da vontade do visitante. A necessidade de anuência de ambos restringir-se-ia às hipóteses de “eventos desportivos sem definição do mando de jogo”.

De plano, a reação de muitos foi de surpresa. Provavelmente pelo fato de que, em meio à pandemia e com os campeonatos paralisados, não se esperava que o Governo Federal fosse apresentar alteração legislativa tão importante para o futebol – devemos lembrar que a cessão de direitos de transmissão representa a principal (ou, na pior hipótese, uma das principais) fonte de receita da maioria absoluta dos clubes brasileiros.

Sob o prisma técnico, a surpresa se deu pela via eleita para promover a alteração legislativa. Ao invés de submeter ao Congresso Nacional um projeto de lei, o Poder Executivo federal optou por legislar via medida provisória, um instrumento (a princípio) excepcional e que deve ser utilizado somente em casos de relevância e urgência, conforme preconiza o art. 62 da Constituição Federal. Conforme exposto acima, não se discute a relevância do tema; mas, afinal, qual era a urgência?

Por isso, ainda que o mérito da alteração à Lei Pelé pudesse ser interessante (e diversos clubes das divisões principais do Campeonato Brasileiro depois se manifestaram favoravelmente à mudança), sua forma suscitou críticas. De um lado, porque a MP não foi precedida por qualquer debate sobre o tema; de outro, pela aparente inconstitucionalidade diante da inobservância dos requisitos para edição de uma medida provisória.

Mas o problema não se esgotou aí. Nos termos do §3º do art. 62 da Constituição, a MP 984 precisaria ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado em até 120 dias para ser convertida em lei e, assim, passar a produzir efeitos de forma definitiva. Ocorre que seu teor não foi sequer apreciado nesse período, tendo a MP caducado; assim, passados os 120 dias, voltou a viger a redação anterior (e novamente atual) do art. 42 da Lei Pelé: “Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem”. Consequentemente, restabeleceu-se o cenário em que não basta a autorização do clube mandante para a transmissão de uma partida; é necessária a anuência de ambos os clubes.

Essas idas e vindas acabaram por gerar insegurança jurídica, e culminaram em litígios judiciais. O grande debate girou em torno da execução de contratos firmados sob um regime jurídico e que se estendem por um período em que a lei passa a preconizar uma nova regra. Assim, por exemplo, estiveram em causa tanto os contratos anteriores à MP 984 (com relação aos efeitos produzidos durante a vigência da MP) quanto aqueles firmados durante o período de vigência da medida provisória (no que tange à produção de efeitos após a MP caducar).

Esta não é a primeira vez em que tratamos da MP 984 por aqui. Em outubro de 2020, abordamos precisamente a insegurança jurídica por ela causada, e sob o mesmo prisma trouxemos à baila também o Projeto de Lei nº 4889/2020. A propósito: ainda que esse PL contenha propostas questionáveis à luz da Constituição Federal, fato é que sob o aspecto formal sua propositura afigura-se mais adequada do que uma medida provisória editada ao arrepio dos requisitos de relevância e/ou urgência estabelecidos pelo art. 62 da Constituição.

Hoje voltamos ao tema e rememoramos o histórico acima exposto diante das recentes notícias que indicam a possível edição de nova MP, para mais uma vez alterar o art. 42 da Lei Pelé e atribuir ao mandante os direitos de arena.

É bem verdade que o cenário político atual é distinto, e sugere uma maior probabilidade de que eventual MP seja convertida em lei. Ainda assim, ao nos depararmos com a possibilidade de sua edição, é impossível deixar de lado os capítulos anteriores dessa novela iniciada com a MP 984 e os efeitos negativos por ela causados: insegurança jurídica, questionamentos quanto à sua inconstitucionalidade, litígios… Nada disso ajuda o futebol brasileiro e os clubes.

A incerteza, a instabilidade e os riscos delas decorrentes atrapalham o planejamento e o estabelecimento de relações comerciais de longo prazo. Justamente por isso, ideal seria que uma nova proposta de alteração do art. 42 da Lei Pelé fosse apresentada por meio de projeto de lei, não via medida provisória. Afinal, se uma nova MP trouxer a reboque todos os riscos que a MP 984 revelou (e, ao menos no que tange à sua constitucionalidade, as chances são consideráveis), uma conclusão parece clara: não vale a pena ver de novo.

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