Rafael Teixeira Ramos e Ana Cristina Mizutori [1]
Na sequência das colunas anteriores (aqui e aqui), aborda-se nesta semana o regime jurídico das sociedades desportivas da Itália, partindo da Lei n° 91 de 23/03/1981, cuja vigência regulamenta as relações entre entidades de prática desportiva e os atletas profissionais, notadamente, para a modalidade de futebol, e o respectivo encadeamento com a federação.
Destaca-se, entre as previsões mais relevantes, a lei conceitua o atleta profissional como trabalhador autônomo, caracterizado pelo desenvolvimento de sua atividade desenvolvida em prol da agremiação desportiva contratante, bem como exige à determinadas entidades de prática desportiva a constituição em sociedade por ações ou sociedade de responsabilidade limitada, como condição para firmar contrato de trabalho com atleta profissional, submetendo-as ao sistema de controle da federação italiana as quais sejam filiadas.
A redação original do art. 10, §2º da Lei nº 91/81 vedava a distribuição de lucros, devendo estes ser integralmente direcionados para a própria entidade de prática desportiva, além de determinar que em caso de liquidação da sociedade, seria devido ao sócio somente a devolução do valor nominal de sua participação, proporcional às suas ações ou quotas, de forma que o valor residual integrante da sociedade direcionava-se ao Comitato Olimpico Nazionale Italiano, por força do art. 13, §2º da referida lei.
Muito embora, em tese, a constituição societária disposta na Lei nº 91/81 utilize o Codice Civile como norte, nota-se, pelas exigências acima descritas que nem todas as determinações legais civilistas eram direcionadas às entidades de prática desportiva. A obrigação de reinvestir o lucro na própria sociedade desportiva, exigindo que a estrutura organizativa se sobreponha aos interesses individuais dos sócios, além da supressão do direito dos sócios à quota de liquidação, exceto pela devolução do montante relativo ao valor nominal correspondente à sua participação social, não se moldam no art. 2.247 do Código Civil italiano.
Neste tocante, vale relembrar que assim como ocorre em outros países, a regulamentação específica imposta na Itália insere as sociedades desportivas em uma natureza jurídica híbrida, uma vez que não se enquadram distintamente nas disposições civilistas, que por alienar os interesses econômicos dos sócios, em vista a preservar o escopo desportivo, gerou um “microssistema de normas” ou um “sistema setorial”.
Depreende-se da legislação italiana de 1981 que a ausência de interesse econômico objetivo e subjetivo, insere as agremiações desportivas como associações atípicas, cuja organização se opera em formato corporativo, embora não vise a produção de lucro.
A ideia inferida com o texto original da lei compreende o exercício comum e coletivo da sociedade, muito além da geração ou divisão de lucros. A lei de 1981 tinha como objetivo a participação em competições desportivas, e de forma adjacente, a produção de lucros, afastando-se da regra geral civilista quando este lucro não poderia ser distribuído aos sócios. A abstração do lucro aos sócios, para muitos doutrinadores, compreendia a atipicidade do modelo estruturado nas sociedades desportivas.
Antes da Lei 91/81, o ordenamento jurídico italiano contava com a “società calcistiche”, equivalente a sociedade por ações sem fins lucrativos, por também desconsiderar, em alguma medida, métodos de gestão econômica e administrativa, assim como pela ausência de interesse econômico subjetivo e objetivo dos sócios, afastando a entidade de uma adequada estrutura organizativa, a fim de preservar o cerne desportivo.
Como dito, a “società calcistiche” discernia à sociedade empresária prevista no Código Civil italiano pela ausência de obtenção de lucro, muito embora a estrutura organizacional fosse corporativa.
Contudo, as mudanças legislativas ocorridas em 1996 inseriram as entidades de prática desportiva em um modelo societário típico.
Em 1996, mencionada legislação italiana passou por significativas mudanças, tal como a revogação destas duas regras, passando a permitir que em caso de liquidação da sociedade desportiva, todos os ativos passariam a ser destinados aos sócios, afora a determinação de que os lucros fossem distribuídos, não mais integralmente à própria sociedade desportiva, mas, ao menos 10%, às escolas de formação desportiva.
Pode-se afirmar que as alterações legislativas de 1996 aproximaram o modelo das sociedades desportivas italianas às noções gerais dispostas no Codice Civile.
O reconhecimento da possibilidade jurídica das agremiações desportivas se constituírem em sociedade por ações sem fins lucrativos ou sociedade empresária que visa o lucro, trazidos com as transfigurações da Lei em 1996, permitiram que os sócios obtivessem direito ao lucro distribuído nas sociedades por ações ou sociedades de responsabilidade limitada, além de permitir a aquisição de ações privilegiadas, e de receber valores residuais subsequentes à liquidação da sociedade. Com isso, mitigou-se o escopo meramente desportivo das sociedades desportivas, ressaltando o objetivo de geração de lucro.
Neste tocante, parte da doutrina passou a enquadrar a natureza jurídica destas sociedades desportivas como sociedades empresárias de fato, nos termos das regras gerais do código civil italiano, sob fundamento de que ainda que o lucro fosse reinvestido na própria sociedade, este equivale à devolução do lucro aos próprios sócios.
Mais uma vez constata-se o movimento do legislador em impor espécies societárias às entidades de prática desportiva como forma de alcançar um agrupamento de regras próprias a esses tipos, pretendendo obter maior controle na gestão, de forma que essa se opere de forma eficaz e profissional, com práticas de boa governança e transparência.
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[1] Mestranda em Direito Desportivo na PUC/SP; advogada desportiva no escritório Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados; membro da Comissão Jovem da Academia Nacional de Direito Desportivo; auditora vice-presidente da 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Futsal; auditora auxiliar do STJD do Futebol.