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Os destaques das atualizações da FIFA nos novos Códigos Disciplinar e de Ética

Uma das frases mais escutada por todos os espectadores do velho e rude esporte bretão é: é muito mais do que futebol. E assim o é. O esporte é o mais praticado e assistido do planeta, provoca o interesse de gerações, é uma fortíssima ferramenta de inclusão social e de união dos povos. Portanto, deve ser criado um ambiente propício para disseminação de matérias positivas provenientes da modalidade.

Ao mesmo tempo, com a audiência e espectadores ao redor do mundo, configurando-se um imensurável campo de consumidores e fonte de receita explorável, o esporte se torna extremamente lucrativo. Evidentemente, com todos esses atrativos econômicos, as grandes empresas, as pessoas mais poderosas, ricas e influentes se interessaram pelo futebol e, consequentemente, tendem a aplicar as mesmas táticas e procedimentos empresariais do seu negócio nos clubes que possuem participação. Uma delas é que uma empresa vai muito além das quatro paredes da sua sede e irradia para a sociedade.

Com efeito, o conceito de função social de uma empresa emergiu no ambiente dos negócios e foi se desenvolvendo. Antes, por essência exclusiva, a organização tinha o lucro como escopo único e principal. Com o surgimento e aumento de força da tese da função social, a empresa passou a ter que se dedicar diretamente para a sociedade a que se destina, constituindo-se em um poder-dever, no sentido de harmonizar as atividades empresariais com os interesses da sociedade, mediante a obediência de certos deveres positivos e negativos.

Atualmente, com a evolução das gerações, das novas tecnologias e de tudo aquilo que tem o poder de interferir no cotidiano, esse poder-dever antes mencionado passou a ser também para influenciar e melhorar a vida da sociedade. Nasceu, então, o conceito de responsabilidade social, que nada mais é do que as práticas e esforços que uma empresa faz, baseados no propósito de melhorar o mundo.

Sendo assim, a organização passa a contribuir para o desenvolvimento sustentável, pautado em diversas diretrizes, como as de direitos humanos e meio ambiente, por exemplo, adquirindo o papel de protagonista da transformação em temas variados, conforme o impacto que deseja causar. Desse modo, foi criada uma série de valores em comum para a atividade de algumas empresas, como os princípios éticos.

Igualmente, ao longo das décadas, foi necessário se adequar com perfeição a todas as leis e regulamentos, internos e externos, vigentes, pautados nas boas práticas comerciais, de governança, institucionais e também econômicas. Em outras palavras, resumidamente, essa é a definição de Compliance, que nos remete ao dever de conformidade das organizações, privadas e públicas, com suas obrigações, sejam elas fiscais, trabalhistas, penais, administrativas, previdenciárias, ambientais ou éticas, por exemplo.

Nesse contexto, evidentemente, devido a importância, relevância e representatividade econômico-social do futebol já relatadas, era inevitável a introdução de todas as premissas, em algum momento, nas mais diferentes instituições, tal como na entidade máxima da modalidade: a FIFA.

Nos últimos anos, é de conhecimento público os escândalos de corrupção que assolaram o futebol, como, por exemplo, o Fifagate, sendo um marco histórico para a entidade, para que, desde então, implementasse severas medidas de governança e Compliance, promovendo alterações significativas em seu Estatuto e demais Regulamentos.

Atualmente, a entidade figura entre as 7 federações internacionais com maior pontuação no ranking de padrões de governança, elaborado pela ASOIF(Associação de Federações Internacionais de Esportes Olímpicos de Verão). Essa análise é baseada em cinco aspectos chaves na governança: transparência, integridade, democracia, desenvolvimento e mecanismos de controle. É nítido, portanto, a evolução nesse aspecto.

Contudo, conforme já elucidado, o futebol traz diversos aspectos sociais e fatos empresariais para dentro da modalidade, seja no cotidiano dos clubes, como também de seus torcedores, do seu funcionamento e administração diária. Nessa esteira, podemos mencionar que crimes de uma sociedade também são praticados no ambiente do esporte, tal como o assédio, abuso sexual, todos os tipos de discriminação e situações empresariais que não chegam a se configurar crimes, como a insolvência, o endividamento, o não pagamento de credores no tempo ajustado. Nascem, logo, pretensões fundamentais para a manutenção de um ambiente saudável como o controle, investigação e punição.

Para todas essas situações morais, profissionais, éticas, sociais, de controle interno dos de todos os membros da cadeia associativa, bem como para aquelas condutas que se configuram refratárias ao espírito esportivo, como a violência, violação às regras de jogo, descumprimento de decisões, devem gerar consequências no âmbito desportivo, para que se mantenha a integridade. Sobre isso, ressalte-se que todas as punições referentes a esses atos estão previstas em dois documentos bem importantes da entidade máxima do esporte: o Código Disciplinar e o Código de Ética.

Ambos os diplomas foram atualizados essa semana[1][2] e trouxeram importantes inovações, que serão o escopo principal desse artigo. O Código Disciplinar já no ano de 2019[3], havia sofrido alterações significativas, depois de muito tempo sem reformas relevantes, como a diminuição do número de artigos de 147 para 72, dentre as quais podemos citar: i) a inclusão da rede social também como um espaço para o cometimento de infrações; ii) a expansão da definição de comportamento discriminatório juntamente com o aumento das sanções (de cinco para dez jogos e possibilidade de suspensão da partida), reforçando o combate ao racismo; iii) fechou o cerco para manipulação de partidas; iv) criou o conceito de sucessor esportivo no art.15, já explicado aqui em outra oportunidade[4], pois tinha se tornado usual os clubes tentarem se eximir de suas responsabilidades financeiras que possuíam com jogadores, outros clubes, treinadores, agentes.

Além disso, foi fundamental a criação do mecanismo de coerção para aqueles que descumprissem, integralmente ou parcialmente, uma decisão de natureza econômica emanada de um órgão da FIFA ou do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS). Sendo assim, a proibição de transferência (transfer ban), que antes era opcional, passou ser impositiva até o pagamento ou cumprimento integral do montante devido ou obrigação.

Por sua vez, o Código de Ética, lançado em 2004, tem uma aplicabilidade bem clara, abarca todas condutas que não sejam expressamente reguladas em outros regulamentos e que não estejam relacionadas ao campo de jogo, que possam prejudicar a integridade e a reputação do futebol, especialmente quando se trate de comportamentos ilegais, imorais ou carentes de princípios éticos.

Ultimamente, esse dispositivo vem sendo aprimorado com mais frequência em relação ao Código Disciplinar, explicado pelo contexto conturbado vivido pela entidade na última década. As principais alterações foram: inclusão de tipificações de assédio, exploração sexual (com pena mínima de dez anos), além da corrupção, desvio de verbas, garantia da independência e imparcialidade dos juízes que compõe a Comissão de Ética, que passaram a não poder ocupar outros cargos em federações, confederações ou na própria Fifa, aumentando a transparência e, por fim, incrementando as penas para manipulação de resultados.

Sem embargo, a prescrição de 10 anos, caso haja investigação passa para 15, dos atos de corrupção, malversação e apropriação indébita não foi tão bem visto aos olhos da mídia, ainda mais pelo passado recente obscuro da entidade. Acreditava-se que, esse fato, era para evitar investigações e punições a dirigentes antigos, quando não havia todos esses mecanismos de controle.

Nessa semana, ambas as normativas foram atualizadas e publicadas em conjunto pela FIFA, que apresentam muitos pontos e objetivos em comum. Em primeiro lugar, trataremos do Código Disciplinar, que teve como propósito a garantia de maior eficiência e celeridade à prestação jurisdicional. Para tanto, a FIFA alterou o antigo artigo 15 (atual 21), que tratava do descumprimento de decisões, principalmente aquelas de natureza econômica, em que uma das medidas adotadas era o transfer ban.

A partir desse momento, para evitar recursos com o único escopo de atrasar o pagamento das dívidas, quando já ocorreu uma decisão firme do TAS e decisão da Comissão Disciplinar aplicando uma punição devido à relutância do devedor em adimplir a dívida, antes de mesmo do recurso da decisão que determinou a sanção, feita ao TAS, a FIFA pode aumentar o pagamento de juros ao credor para 18% (mais do que triplicando o valor usual). Sendo assim, busca-se criar outro meio coercitivo eficaz e evitar estratégias procrastinatórias.

Ato contínuo, a nova normativa dá ainda mais poder à Comissão Disciplinar, que poderá aplicar provisoriamente a prorrogação das sanções, até que seja proferida decisão final por este órgão, àquele devedor contumaz, quando de uma decisão emitida pelo Tribunal de Futebol da FIFA ou de uma proposta confirmada pelo secretariado-geral da FIFA que contiver punições por falta de pagamento no prazo e que o devedor não tenha fornecido prova do pagamento após o cumprimento integral de tais consequências.

Ademais, foram feitas algumas mudanças para agilizar o procedimento diante desse órgão, como por exemplo: i) as possíveis discussões processuais (preliminares) nos recursos serão decididas antes da análise do mérito do recurso; ii) ampliaram-se os poderes dos membros da Comissão Disciplinar que atuam como juízes únicos, como aumento de aplicação do valor da multa (de 50 mil francos para 100 mil) e partidas (de 4 para 5), decidir casos relacionados à ordem e segurança nas partidas; iii) casos urgentes poderão ser encaminhados diretamente ao Comitê de Apelação.

Por seu turno, as principais mudanças exclusivas do Código de Ética foram para reconhecer e valorizar a colaboração daqueles envolvidos em procedimentos éticos. Nesse sentido, as partes poderão negociar com a FIFA em casos de sanções relativas à proteção da integridade física e mental, ou delitos como suborno e corrupção, apropriação indébita, peculato e manipulação de partidas ou competições, quando o acusado oferecer ajuda substancial.

Essa ajuda consiste em 3 pontos: a) revelação por depoimento escrito e assinado ou entrevista gravada todas as informações de que dispõe sobre o delito em questão; b) cooperação plena com a investigação e decisão de todos os casos ou questões relacionadas com as informações fornecidas, incluindo, fornecimento de provas, atuação como testemunha em uma audiência, se solicitado pela FIFA ou pelo órgão julgador; c) fornecimento de informações confiáveis ​​que representem grande parte do caso ou procedimento que é posteriormente iniciado ou, pelo menos, que tenha constituído uma base suficiente para iniciar um caso ou procedimento.

Conjuntamente, diante do aumento das denúncias e de procedimentos nos últimos anos, com relutância de investigações e punições dentro das Federações, ambas normativas consolidaram a tolerância zero contra crimes de abuso sexual em diversas medidas.

Podemos citar algumas: o ato ilícito se tornou imprescritível, foi vedado o reconhecimento de ajuda substancial ou negociação da pena nesses casos, obrigação de denúncia e informação da Federação/Confederação à FIFA de toda punição para que se amplie à nível mundial ou se faça outras investigações, as vítimas podem passar ser consideradas como parte, permitindo que recorram das decisões dos órgãos.

Na parte de manipulação de resultados, que coloca em risco a integridade do esporte, a FIFA passa a encaminhar as investigações de questões disciplinares e éticas à especialistas independentes, que não possuem vínculo com a cadeia do esporte. Outrossim, todos os membros devem informar a FIFA de todas as sanções impostas em casos de manipulação de jogo, também com a intenção de extensão à nível mundial.

Por último, mas não menos importante, em face das constantes atualizações e inovações na base legal do futebol, promovidas pela FIFA no ano de 2022, ambas as normativas foram adaptadas aos novos regulamentos como: o novo Tribunal do Futebol, o novo Regulamento de Agentes FIFA e a Clearing House.

Entretanto, após a exposição das principais alterações, este que vos escreve se permite emitir uma breve opinião e uma decepção pessoal. Após as modificações marcantes sobre o tema da discriminação na atualização do Código Disciplinar de 2019, que podia até culminar na perda de pontos, por exemplo, ao meu ver, a edição atual flexibilizou o tema, muito embora mantendo as sanções anteriormente previstas, perdendo aquela intransigência necessária para se combater e extirpar esse problema do esporte.

Com a inserção do item 3 ao atual artigo 15 (antigo 13), que trata da discriminação, o órgão judicial competente poderá divergir das sanções mínimas descritas se a Federação e/ou clube afetado concordar em trabalhar, em conjunto com a FIFA, em um plano abrangente que garanta sua atuação em casos de discriminação e prevenção de reincidência.

O plano deve ser aprovado pela entidade máxima do futebol e incluir, pelo menos, os três âmbitos a seguir:

a) Atividades educativas (incluindo uma campanha de comunicação dirigida aos torcedores e público em geral). A eficácia da campanha será revisada com frequência.

b) Segurança do estádio e medidas de diálogo (incluindo um protocolo para identificar infratores e lidar com eles por meio de sanções, criando outro protocolo para determinar quando encaminhar o caso às autoridades judiciais e, ao mesmo tempo, manter um diálogo com torcedores e influenciadores para conseguir as mudanças almejadas).

c) Parcerias (inclui trabalhar com torcedores, ONGs, especialistas e grupos de interesse para aconselhar e apoiar o plano de ação e garantir a implementação efetiva e contínua).

Ao meu ver, o lado educativo é muito importante, mas deve caminhar ao lado das sanções. Com a discriminação não se negocia, se combate com veemência, sempre garantindo uma defesa ampla e justa ao acusado, de acordo com os ditames processuais do devido contraditório. Do mesmo modo, a sanção possui aspecto pedagógico e poderia ser implementada em conjunto com as educativas trazidas à baila nessa edição. A FIFA perdeu uma chance de ser mais rigorosa com um tema que, infelizmente, vem crescendo bastante nos últimos anos.

Conforme o exposto, baseado cada vez mais nos ditames corporativos, as inovações trazidas, em sua grande maioria, fortalecem a busca pela integridade, por um ambiente mais justo e transparente, oportunizando a defesa àqueles que necessitam, sempre se atualizando em razão do que vem ocorrendo no mercado. Uma das virtudes dessa gestão FIFA, que merece ser destacada, é o amplo debate, inclusive com especialistas do meio do Direito Desportivo. Esperaremos os próximos capítulos para ver as modificações na prática.

Crédito imagem: FIFA

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[1] Código de Ética 2023 – Codigo-de-Etica-de-la-FIFA-2023.pdf  – última consulta: 01.02.2023

[2] Código Disciplinar 2023 – Codigo-Disciplinario-de-la-FIFA-2023.pdf – última consulta: 01.02.2023

[3] Código Disciplinar 2019 – i8zsik8xws0pyl8uay9i-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 01.02.2023

[4] O clube sucessor, as dívidas na FIFA no contexto da SAF e suas consequências – Lei em Campo – última consulta: 01.02.2023

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