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Perder para ganhar

Quando Chet Holmgren, a segunda escolha do último draft (processo de recrutamento de atletas) da NBA se contundiu em partida amistosa disputada em Seattle no último dia 20 de agosto, dois temas passaram a ser discutidos na mídia especializada norte-americana imediatamente depois: se atletas profissionais com contratos milionários deveriam disputar jogos dessa natureza, colocando-se em risco adicional em relação a lesões, e se a ausência do jovem pivô ao longo da próxima temporada reforçaria a ideia de que o Oklahoma City Thunder, equipe que o selecionou, mergulharia de cabeça em mais um período dedicado a “perder de propósito”, o chamado tanking, a fim de aumentar as chances de obter uma melhor posição no draft em 2023.

Assim como o tampering e as manobras para “driblar” regras salariais, assuntos que já abordamos em coluna anterior, o tanking é uma preocupação não só da NBA, mas também da NFL.

Uma das manifestações mais emblemáticas do tanking nos campos de futebol americano foi o movimentoSuck for Luck, quando alguns torcedores dos times com mais chances de terem campanhas ruins na temporada 2011-2012 passaram a ver com bons olhos que suas equipes fossem derrotadas para, assim, aumentarem a probabilidade de poderem selecionar, no draft, o quarterback Andrew Luck, hoje aposentado e então projetado como um jogador capaz de mudar os destinos de uma franquia por muitos anos.  

Recentemente, a NFL investigou e absolveu o Cleveland Browns após o ex-treinador Hue Jacksonalegar que a equipe era incentivada a perder de propósito ao longo dos anos de 2016 e 2017.

A cidade de Cleveland, als, também teria sido palco de pouco esforço do Cleveland Cavaliers para vencer partidas da NBA nos anos que antecederam o recrutamento de LeBron James pela franquia. Em uma entrevista no final de 2018, Jim Paxson, dirigente da equipe à época, embora negando a relação direta entre essa conduta e o plano de selecionar LeBron, admitiu ser real a intenção depiorar o time para obter uma posição mais alta no draft de 2003, cuja classe de novatos já era reconhecida como uma das mais talentosas da história da liga, com vários atletas em condições de liderar seus times rumo a uma era duradoura de vitórias.

A “receita do bolo” teria sido fornecida anos antes pelo San Antonio Spurs, que supostamente se esforçara para vencer menos partidas na temporada 1996-1997 com a expectativa de selecionar Tim Duncan no draft seguinte, teoria que, apesar de refutada por alguns, é amplamente aceita e difundida por muita gente que acompanha de perto a NBA. Com Duncan como protagonista, o Spursconquistou 5 vezes a NBA e foi candidato ao título durante quase 20 anos.  

Mas afinal, é mesmo factível conseguir que equipes formadas por atletas naturalmente competitivos percam de propósito sob os olhares de todo o mundo?

Há quem alegue que isso é verdadeiramente inviável na NFL, pois as características físicas do futebol americano, com o alto impacto de colisões dentro de campo, tornariam muito arriscado “fazer corpo mole”. Além disso, para atletas remunerados por seu desempenho individual e pelo alcance de resultados coletivos, concordar com essa prática seria impensável. E isso sem falar no cuidado dos jogadores com suas marcas pessoais, com suas narrativas e com seu legado esportivo.

Devemos ter em mente que aqueles que chegam aos elencos principais de franquias da NFL e da NBA são a elite da elite do esporte. Eles costumam ser aqueles garotos que se destacavam como os melhores de sua rua, de seu bairro, de seu colégio e, muitas vezes, de suas universidades.

Acostumados com a glória de vencer e com o brilho dos holofotes que o destaque esportivo propicia a qualquer jovem, seria crível convencê-los a não dar o melhor de si dentro dos gramados ou das quadras? Pouco provável. Não é assim que o tanking funciona.

Decisões de diretorias e comissões técnicas, porém, como construir elencos muito jovens e inexperientes e não escalar jogadores ao menor sinal de desgaste, potencializam a estratégia de “perder agora para ganhar depois”.

Na NBA, o Philadelphia 76ers passou praticamente metade da última década envolvido no intitulado “O Processo”, cujo principal fruto foi a escolha do astro Joel Embiid no draft (o apelido oficial do camaronês naturalizado francês é, exatamente, “O Processo”). Depois de anos e anos alegadamente perdendo de propósito para acumular o que se descreve como capital de draft, a franquia se transformou, nos últimos tempos, em uma das mais cotadas para conseguir o troféu de campeã da NBA.

O ótimo livro Tanking to the Top: The Philadelphia 76ers and the Most Audacious Process in the Historyof Professional Sports, do jornalista Yaron Weitzman, conta detalhes dessa e de outras histórias relacionadas à cultura de perder de propósito, algo que fere a regra de ouro em esportes profissionais: joga-se para ganhar o jogo.

Não foi à toa que o comissário da NBA, Adam Silver, endereçou diretamente a questão em um memorando enviado às franquias em 2018, no qual declarou que “o tanking não tem lugar no nosso jogo” e que, diante de evidências de que jogadores ou treinadores estivessem tentando perder de propósito, “essa conduta seria recebida com a resposta mais rápida e dura possível por parte da liga.

Tal memorando fora motivado por declarações de Mark Cuban, proprietário do Dallas Mavericks, que revelara em um podcast ter dito aos membros de sua equipe algo como perder é nossa melhor opção“. Cuban foi multado em US$ 600.000,00 por haver dadodeclarações públicas prejudiciais à NBA“.

As zonas cinzentas são muitas e é bem difícil distinguir, categoricamente, o que é mera incompetência na montagem de um elenco e o que é um esforço deliberado para não ser competitivo.

Do mesmo modo, é bastante problemático imaginar que treinadores possam ser coagidos” a não fazer o melhor que podem com os recursos disponíveis, inclusive pelo fato de que a capacidade de trabalho desses profissionais é medida, no mais das vezes, pelos resultados obtidos pelos times que comandam.

Se perder para ganhar passa a ser um caminho aceitável, vale a pena manter a estrutura de recompensar, via draft, os piores em uma temporada com as melhores posições para o recrutamento na temporada seguinte, recurso diretamente ligado à manutenção do equilíbrio competitivo, a médio e longo prazo, no modelo de negócios das ligas esportivas profissionais norte-americanas?

Uma estrutura totalmente aleatória para definição das posições no draft não seria mais adequada e condizente com a ética no esporte, conquanto pudesse sacrificar um pouco do controle das ligas sobre o equilíbrio competitivo entre as equipes?

É justo com torcedores, que pagam ingressos para toda uma temporada e investem não só financeiramente, mas também emocionalmente nas equipes para as quais torcem, colocar em campo ou em quadra um time feito para perder?

O que é melhor para os negócios no futuro deve se sobrepor ao que é melhor para o jogo no presente?  

As reflexões para encontrar o equilíbrio ideal, enfim,são complexas, o que explica o fato de que mudanças na sistemática do draft vêm sendo discutidas e/ou implementadas na NFL, na NBA e também na NHL e na MLB, todas focadas, invariavelmente, em reduzir os incentivos a quem escolhe perder de propósito.        

O tanking, claramente, macula a integridade do esporte e não se coaduna com os valores mais nobres que podem ser transmitidos por meio da prática esportiva.

Crédito imagem: getty images

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