O esporte, como ele está organizado, sofre uma séria ameaça depois de decisões recentes de tribunais estatais. Um processo contra a Federação Internacional de Natação – ainda sem sentença – é mais um dos casos que assustam Comitê Olímpico Internacional e a própria FIFA. O monopólio dessas entidades no comando do esporte está ameaçado.
Tudo porque a justiça tem entendido que as entidades de administração do esporte estão, apesar de sua autonomia e estrutura de governança, submetidas à disciplina da legislação concorrencial. Ou seja, o esporte também está sendo vigiado em relação a sua atividade, com autoridades competentes reconhecendo a força econômica da atividade, assim como uma necessária vigilância contra monopólios e cerceamento da liberdade de trabalhadores ( no caso, atletas).
Resumindo, a justiça tem dado liberdade a atletas e empresas para se afastarem dos líderes da cadeia esportiva – tanto COI como a FIFA -, e participarem ou organizarem eventos de maneira independente. O monopólio corre risco.
E só existe um caminho nessa hora: dialogar.
Caso FINA
A Federação Internacional de Natação (FINA) é a responsável pela regulação dos esportes aquáticos, entre eles a natação. Praticamente tudo que se organiza de evento desses esportes passa por ela.
A International Swimming League – ISL é uma entidade independente criada para organizar eventos esportivos em um formato diferente, pensando em tornar as competições mais atrativas para o público e rentáveis para os atletas.
A ideia era a ISL trabalhar com a FINA na organização de novas competições.
A FINA pediu US$ 50 milhões a ser paga ao longo de dez anos para fechar uma parceira, não abrindo mão de continuar sendo a titular da competição, mantendo seus naming-rights como condições para a concessão da autorização.
A negociação parou.
A FINA divulgou memorando para todas as federações nacionais de natação dizendo não reconhecer a ISL ou qualquer competição realizada por ela. E, mais.
Ela lembrou dos artigos 4.1 de seu Regulamento Geral e ao artigo 9 de seu Código de Ética. Eles proibem que atletas e árbitros filiados à FINA tenham qualquer relacionamento com entidades não filiadas ou não sancionadas pela FINA, e a infração a tais dispositivos poderia resultar em exclusões de competições organizadas pela FINA pelo período de até 04 (quatro) anos.
Houve rompimento, um campeonato na Itália organizado pela Federação Italiana com a ISL foi cancelado e a questão foi judicializada.
Vou trazer aqui alguns dos detalhes trazidos por José Francisco Manssur e Tiago Gomes em artigo para o Lei em Campo.
Três atletas, junto com a ISL ajuizaram ações por violações concorrenciais contra a FINA, na justiça da Califórnia. Manssur e Gomes explicam que “a escolha permitida pela legislação americana e que reflete a intenção dos autores de perseguir as indenizações financeiras previstas na legislação concorrencial norte-americana, bastante mais rigorosa neste aspecto do que a legislação concorrencial europeia.”
Eles alegaram monopólio da FINA, reforçando que as regras de elegibilidade atacam a livre concorrência no mercado esportivo. Segundo o pedido, o caso escancara um fechamento de mercado baseado em critérios arbitrários e determinados pelas entidades esportivas.
Segundo o pedido, a imposta pela FINA também afeta os negócios que orbitam ao redor da modalidade, os “quais se beneficiariam de um maior número de competições de natação envolvendo a elite dos nadadores, incluindo os patrocinadores, transmissores dos eventos e fabricantes de produtos associados”.
O processo está andando.
Em dezembro de 2019, a corte californiana rejeitou um pedido da FINA para indeferir preliminarmente ambos os casos
O caso deve ser julgado por um júri popular em janeiro de 2022. O resultado é aguardado por todos do movimento esportivo. Mas a FINA já deu uns passos para trás e decidiu dialogar.
No início de 2019, ela emitiu um novo comunicado, revendo entendimento a respeito da participação dos atletas nas competições promovidas por organizadores independentes:
“FINA reconhece que os nadadores são livres para participar em competições ou eventos promovidos por organizadores independentes, nomeadamente entidades que não são nem membros da FINA ou a ela relacionadas de qualquer forma.”
Outro caso que assusta COI e FIFA
Recentemente escrevi aqui que a Federação de Patinação passou por um momento ainda pior.
Resumidamente.
O Tribunal Geral da União Europeia entendeu que as regras da patinação para atletas participarem das competições estão em desacordo com o código de concorrência da União Europeia.
Hoje, a International Skating Union (ISU) é a única autoridade reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional e tem o poder de pré-autorizar os eventos em que seus membros podem competir. Violações de seus estatutos estão sujeitas a pesadas multas.
Acontece que em 2014, uma empresa não afiliada tentou organizar uma nova competição de patinação de velocidade em Dubai, mas não conseguiu porque atletas de ponta não poderiam participar, já que corriam o risco de serem excluídos da federação ligada ao Comitê Olímpico.
Atletas se sentiram incomodados com isso e apresentarem uma queixa à Comissão Europeia em 2017. Imediatamente foi ordenado que a ISU alterasse suas regras ou enfrentaria multas. A federação de patinação no gelo não aceitou a decisão e levou a discussão ao Tribunal de Justiça Europeu.
Numa decisão publicada dia 16 de dezembro de 2020, o TJCE confirmou que a Comissão tinha razão ao sancionar o ISU e que o seu sistema de sanções é “desproporcionado” e “mal definido”.
“A ISU é obrigada a garantir, ao examinar os pedidos de autorização, que terceiros organizadores de competições de patinação de velocidade não sejam indevidamente privados de acesso ao mercado relevante”, diz a decisão.
Este caso do Tribunal de Justiça Europeu é o pioneiro sobre se as regras adotadas por uma federação desportiva violam o direito da concorrência da UE.
A decisão diz respeito a federação de patinação, mas assustou os gigantes FIFA e Comitê Olímpico Internacional. Eles também têm regras rígidas de elegibilidade, dentro da cadeia associativa do esporte, chamada Ein Platz Prinzip.
E agora?
Com mais essa decisão, o Tribunal de Justiça da União Europeia vai consolidando uma jurisprudência referente às limitações à aplicação dos princípios da especificidade e integridade do esporte frente ao direito da livre concorrência.
O esporte é transnacional, mas não independente. O que garante a estabilidade jurídica dele é a adesão de todos os participantes dessa cadeia às regras determinadas pelas entidades esportivas. Com o se fosse um contrato de adesão.
Quando a entidade não entende o que o movimento esportivo quer, ele corre um risco e sofre irritações. As pessoas (atletas) sempre estão livres a procurar a Justiça. No Brasil este direito é assegurado pelo art 5º da Constituição.
E se a Justiça entender que eles têm razão, o sistema jurídico do movimento esportivo sofre um baque gigante. E precisa ser revisto.
Foi assim no Caso Bosman, que já escrevi aqui. Um atleta belga inconformado com a lei que o prendia a um clube mesmo sem contrato, buscou o Estado. Ele ganhou na Justiça estatal, o esporte mudou regras e atletas de várias partes do mundo ganharam muito mais liberdade.
O processo contra a FINA e a decisão contra a federação de patinação são mais dois exemplos que podem ser marcos na liberdade de atletas e no combate ao monopólio. Você já imaginou um outro campeonato forte de futebol que não tenha a chancela da FIFA ou de entidades a ela filiadas? Pois, é. Já dá pra imaginar. Imaginar.
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