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Quando gols se transformam em ações. É possível um clube na Bolsa de Valores?

Por João Paulo Di Carlo e Eduardo de Holanda

Nos últimos dois anos, o cenário desportivo no Brasil vem mudando devido ao advento da Lei 14.193/21, conhecida como Lei das SAF. Desde então, abriu-se as portas para os investidores estrangeiros e deu-se a chance para que os clubes, alguns em estado terminal, pudessem se capitalizar e, ao mesmo tempo, equacionar as dívidas, principalmente aquelas cíveis e trabalhistas.

Nesse sentido, como o dispositivo legal ainda é recente, discussões têm sido travadas na esfera judicial, bem como nos bastidores dos clubes, pois a possibilidade de capitalização proporciona o aumento do poder de investimento e, consequentemente, a capacidade do elenco em conquistar títulos e agradar os torcedores.

Na semana passada, o assunto voltou à baila quando o clube mais rico do país, ainda que em estágio embrionário, passou a estudar internamente a transformação em sociedade anônima. Some-se a isso, o receio, por grande parte de seus componentes, de que uma aquisição por um único investidor estrangeiro possa descaracterizar as tradições e costumes da entidade e da torcida, já que ele teria o poder decisório em suas mãos se obtesse o controle majoritário.

Nesse contexto, a Lei 14.193/21 pareceu se atentar aos mínimos detalhes e tratou de assegurar que a associação mantivesse, ao mínimo, 10% das ações ordinárias de classe A, que obrigatoriamente serão subscritas exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu. Em outras palavras, a associação permanecerá com um percentual na SAF nos casos de cisão do departamento do futebol, como vem ocorrendo aqui no Brasil com a maioria dos clubes que adotaram o modelo da SAF.

Ademais, a Lei se apegou na manutenção da identidade do clube original, ressalvando que deve passar pelo crivo da entidade originária, através de votação, uma possível mudança nos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores, bem como mudança da sede para outro município e até alteração na denominação.

Por outro lado, o mercado e os clubes, preocupados com a possível influência e resultados negativos quando da chegada de investidores estrangeiros ao se tornarem proprietários, juntamente com a desnecessidade atual de se converterem em sociedade anônima, como é o caso do Flamengo, passaram a cogitar outro tipo de financiamento, o que garantiria um capital extra para investimentos no desenvolvimento da equipe e de sua estrutura, sem a figura de um proprietário único. Surge, então, a figura do IPO, a Bolsa de Valores e as ações.

Posto isso, faz-se necessário explanar o conceito e o que representa os itens acima, para uma melhor e mais rápida compreensão do tema. A Bolsa de Valores é um mercado que abrange variados centros de negociação de valores mobiliários, que, por meio de sistemas eletrônicos, os investidores se encontram para negociar a compra e venda de ações.

No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é a autarquia que fiscaliza e regulamenta o mercado de capitais. Por sua vez, a Bolsa tem total autonomia para exercer seu poder de autorregulamentação sobre as corretoras de valores que operam nela, cuja finalidade é proporcionar um ambiente líquido e adequado para que sejam realizados negócios com valores mobiliários de maneira transparente e eficaz. Os investidores só podem ter acesso aos sistemas de negociação, para que possam comprar ou vender esses ativos, por meio das corretoras de valores.

O Mercado de Capitais, se não o principal, é uma importante ferramenta para coordenação de recursos financeiros no mundo capitalista. Uma das principais funções econômicas é aquela de permitir às sociedades empresárias, mediante emissão pública de seus valores mobiliários, captar recursos junto ao público em geral.

Nessa esteira, essa captação não se dá somente com ações ou pelo IPO (initial public offering) que, em português, significa oferta pública inicial, ela pode ocorrer também através de outras alternativas como a securitização, emissão de produtos estruturados (por exemplo, Certificado de Recebíveis Imobiliários, as CRI de estádios e/ou de Centros de Treinamento), capitalização a partir de instrumentalizações de dívidas, fundos de investimento, debêntures,  e, por último, até captações em regime de crowdfunding, popularmente conhecida como “vaquinha”.

Decerto, o mais comum continua sendo a abertura de capital e a emissão de ações. Sem embargo, esse instituto apresenta como característica a alta volatilidade, pois se trata de clubes de futebol, portanto, sujeitos a mudanças no valor da ação devido às situações ocorridas no campo, como vitórias e derrotas, títulos ou fracassos, além de contratações exitosas ou não.

Do mesmo modo, surge a ideia a ideia de que esses clubes estão umbilicalmente ligados ao mercado consumidor e financeiro, portanto devem prestar as informações com a maior precisão e transparência possíveis. Por isso, se aumentam as exigências e a fiscalização mediante normativas impostas pela CVM e pela própria Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76), o que pode acelerar a profissionalização da gestão, principalmente no que concerne à governança, transparência e rentabilidade ao longo prazo.

Ademais, não podemos olvidar que a Lei da SAF prevê expressamente que a Lei das S/A (Lei nº 6.404/1976) é subsidiariamente aplicável às SAF, como um subtipo societário, espécie de sociedade anônima. Sendo assim, o arcabouço da Lei das S/A será aplicável, inclusive quando da abertura de capital, às ofertas públicas que vierem a ser realizadas para a captação de recursos perante o público em geral

Como a sociedade por ações ainda não é explorada no âmbito do futebol no Brasil, é impositivo observar o cenário europeu, muito mais evoluído normativamente e experimentado no tema ora em análise, com vários clubes tradicionais, pertencentes às principais ligas do mundo, já negociando suas ações na Bolsa de Valores, até no plano internacional.

A título exemplificativo, podemos citar: Ajax (Holanda) iniciou negociação na Bolsa em 1998; Benfica, Porto e Sporting (Portugal) em 2007, 1998 e 1999 respectivamente; Borussia Dortmund (Alemanha) em 2000; Celtic (Escócia) em 1995; na Inglaterra, o Tottenham saiu à Bolsa em 1983, o Manchester United em 2012, foi o primeiro clube a negociar suas ações no exterior. Seu IPO na Bolsa de Nova York levantou 230 milhões de dólares por uma fração dos papéis. Hoje, o controle da empresa está em negociação por mais de 6 bilhões de dólares (R$ 31,3 bi). Por fim, na Itália, a Juventus, Lazio e Roma em 2001, 1998 e 2000 respectivamente.

A propósito, no país transalpino, podemos citar, as transformações decorrentes de normas emanadas do Poder Público. A Lei nº 91/1981 vedava o fim lucrativo das sociedades de futebol, ou seja, a diferença entre receitas e despesas deveria ser integralmente reinvestida clube para a prática exclusiva do esporte. Entretanto, um caso que chegou ao Tribunal Europeu foi preponderante para a mudança da Legislação: o caso Bosman.

Nesse sentido, o pleito do desportista foi um marco para a fixação do esporte como atividade econômica e sua necessidade de estar em conformidade com as disposições sobre a livre circulação do Direito Europeu. Em outras palavras, ficou estabelecido que o esporte estaria sujeito às leis da Comunidade Europeia quando constituíssem atividade econômica, ou seja, quando houvesse remuneração do atleta, natural para o esporte considerado profissional.

Com a publicação da Lei nº 485/1996, a proibição de distribuição de lucros foi finalmente excluída do ordenamento, equiparando os clubes esportivos às tradicionais sociedades por ações e, consequentemente, permitindo que os clubes entrassem na Bolsa de Valores. Todavia, este procedimento ainda não era exequível, pelo menos até ao final de 1997, quando foi aprovado o novo regulamento de admissão à Bolsa, reduzindo consideravelmente os antigos empecilhos como, por exemplo, a obrigatoriedade de apresentar as três últimas demonstrações financeiras com lucro, o que, obviamente, dificultaria exacerbadamente os clubes, tendo em vista a crise financeira que assolava o futebol europeu.

Simultaneamente, era impositiva a presença de órgãos regulatórios, não necessariamente criados para tanto, pois já existiam, mas para que pudessem fiscalizar e controlar a atividade dessas sociedades. No momento, podemos citar 3 órgãos fundamentais para o correto funcionamento das sociedades: Comissão de Vigilância das Sociedades de Futebol Profissional (Covisoc, em italiano), Conselho de Vigilância, espécie de Conselho Fiscal (interno dos clubes) e Comissão Nacional para as Sociedades e a Bolsa (Consob, em italiano).

A Covisoc[1] já havia sido instituída após a Lei nº 91/1981, é um órgão interno da Federação Italiana de Futebol (FIGC, em italiano) responsável pelo acompanhamento e fiscalização da situação econômica e financeira dos clubes de futebol. A Comissão possui algumas funções como, por exemplo: solicitar a exibição de dados, documentos contábeis e societários para suas avaliações, solicitar informações sobre todos os sujeitos que, direta ou indiretamente, controlem as empresas, incluindo a pessoa que tem o controle final sobre elas e o grupo econômico a que possivelmente pertencem, além de poder propor a realização de investigações e procedimentos disciplinares.

A Consob equivale a nossa CVM, é uma autoridade independente, dotada de personalidade jurídica própria e plena autonomia, sendo responsável pela supervisão do mercado de valores mobiliários italiano e pela proteção dos investidores, promovendo seu desenvolvimento de modo eficiente e transparente.

No mais recente escândalo, os dirigentes da Juventus foram punidos e o clube sofreu com a perda de pontos, o que envolveu a atuação dos 3 órgãos acima. O caso consistia nas mais-valias “artificiais” ligadas ao mercado de transferências, e, por outro lado, as duas “medidas salariais” realizadas na época 2019/20 e 2020/21. As mais-valias fictícias consistiam nas transações que foram feitas para corrigir ou maquiar o balanço financeiro. Esse mecanismo, principalmente oriundo da troca de jogadores, requer um registro um valor de saída (receita de venda) e a baixa do registro (custo de saída). A Juventus fazia trocas que contabilmente geram lucro, mas financeiramente não significam movimentação financeira.

Por seu turno, as medidas salariais foram ocasionadas pela emergência e crise gerada pela pandemia, com a renúncia pública de alguns jogadores a alguns meses de salário, enquanto que, de maneira obscura, existia um acordo privado entre as partes, que garantia o pagamento mesmo em caso de eventual transferência e teriam sido feitos de maneira oculta, não constando nas demonstrações financeiras dos clubes.

Por conseguinte, o clube foi acusado por falsas comunicações corporativas, manipulação de mercado, obstrução ao trabalho dos órgãos fiscalizadores e notas fiscais falsas de transações inexistentes. Essas falsas informações afetaram todo o mercado financeiro, subindo artificialmente os valores das ações e prejudicando os interessados em adquiri-las, sobretudo a longo prazo. No dia seguinte à punição sofrida, as ações do clube despencaram em mais de 11% na Bolsa de Valores[2]. O mercado controlando e reagindo ao escândalo.

Outro país tradicional no futebol e local da segunda liga mais rica do mundo, a Espanha, ainda é reticente a esse tipo de sociedade devido às tradições futebolísticas, por mais que exista uma lei prevendo essa possibilidade desde os anos 90. Real Madrid e Barcelona, os dois principais clubes do país, são dois das 4 equipes das duas primeiras divisões que seguiram no formato de associação.

O Intercity, clube da quarta divisão, no final de 2021, foi o primeiro clube espanhol a sair na Bolsa de Valores[3], em um projeto ambicioso que buscava rentabilizar a entidade para que pudesse chegar ao futebol profissional o mais rápido possível. O otimismo no cenário espanhol é alto para que, nos próximos anos, mais clubes possam sair na Bolsa, uma vez que estão mais equacionados, devido ao rigoroso regime de fair play financeiro nacional[4] a que estão submetidos, bem como a recente injeção de capital pela CVC Partners[5], ambas explicadas nessa seção em outras oportunidades.

Exposto o modelo europeu, citando casos concretos que demonstram os riscos e as obrigações inerentes a esse tipo de sociedade, passamos a examinar o cenário brasileiro. Atualmente, ainda há vácuo de uma regulamentação mais precisa da CVM sobre as SAF se tratando de abertura de capitais e mecanismos de funcionamento e fiscalizações.

Contudo, ultimamente, a CVM tem dirigido seus esforços a um projeto de Mercado de Capitais mais democrático que busque acelerar a inclusão dos brasileiros no mundo dos investimentos por meio do Mercado de Capitais. A Comissão tem priorizado, para os próximos anos, o aumento da participação do futebol no mercado de capitais, através de iniciativas como a realização de eventos com principais atores da indústria da modalidade, priorizando medidas de educação financeira e de incentivo sobre o tema, juntamente com a elaboração de parecer com orientações sobre a matéria.

Esse posicionamento vem justamente de encontro com a mudança do perfil, ainda que muito lenta, de investimento da população brasileira. No ano de 2022[6], houve um crescimento de 15%, passando 2,8 milhões para 3,2 milhões de CPFs. Em detalhes, 48% dos investidores que entram no mercado de ações estão na faixa de 25 a 39 anos, o que demostra o perfil da maioria dos investidores. Por outro lado, a crescente taxa de juros faz com que os investidores fiquem mais receosos quanto a essa modalidade e optem pela renda fixa, o que pode ser um obstáculo se mantido a esses níveis.

Por todo o exposto, resta nítido que a entrada na Bolsa pode ser um caminho cada vez mais plausível para os clubes brasileiros, diante do atual momento de crescimento das receitas na modalidade e do interesse da população no mercado de ações. No entanto, ressalte-se que o modelo europeu já nos mostrou da rigidez e exigência que esse tipo de modelo atrai, o que pode ser benéfico para a profissionalização do futebol no Brasil.

Por fim, a entrada no Mercado de Ações consiste em uma forma mais democrática que as demais já utilizadas, pois pode permitir que os torcedores sejam investidores do próprio clube, majorando um sentimento de pertencimento e propriedade do mesmo, ainda com a possibilidade de retorno financeiro ao longo prazo. Decerto, há uma necessidade de uma regulamentação mais precisa e do aumento de interesse das próprias entidades desportivas. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Microsoft Word – tit6_noif_art_da77a90_19-12-2018 (figc.it) – última consulta: 15.03.2023

[2] Juve, le azioni affossano in Borsa: le news sulla quotazione | Sky Sport – última consulta: 15.03.2023

[3] El Intercity, el primer club español que sale a Bolsa (mundodeportivo.com) – última consulta: 15.03.2023

[4] Liga parte 1: Controle Econômico, a pedra fundamental – Lei em Campo – última consulta: 15.03.2023

[5] Acordo Laliga – CVC: solução ou sacrifício? – Lei em Campo – última consulta: 15.03.2023

[6] Número de investidores na bolsa cresce 15% em 2022 apostando na diversificação (cnnbrasil.com.br) – última consulta: 15.03.2023

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