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Tempos que não voltam? Parte final: MLS, o fenômeno imparável

Na primeira parte dessa série, que tem o escopo de demonstrar como funcionam os mercados que, às vezes, passam desapercebidos aos olhos dos torcedores brasileiros, tive a oportunidade de discorrer sobre o mundo árabe e o continente africano. Minha principal missão era explicar o motivo do aumento da competitividade, longe de ser repentina, que fez com que clubes e seleções desafiassem a ordem, até então inviolada, do futebol internacional.[1]

Para isso, foi necessário comprovar com números contábeis, receitas, transferências, tratados internacionais e até incentivos estatais, a razão de se ter uma paridade e até superioridade de investimentos em relação ao esporte que é jogado aqui na América do Sul, antiga segunda força hegemônica e indiscutível no mundo. Como é cediço por todos, futebol é um negócio onde a capacidade de investimentos traduz diretamente o êxito esportivo de uma equipe. Vamos agora ao próximo lugar, a maior economia do mundo.

Posto isso, o segundo e último capítulo tratará de desmiuçar o fenômeno chamado MLS (Major League Soccer), praticado nos EUA e no Canadá, em um modelo totalmente distinto ao que é realizado no restante do mundo, extraindo o que se tem de melhor da cultura americana. Nesse sentido, não podemos olvidar que 4 das 5 ligas nacionais de esporte mais valiosas do mundo são americanas. A receita de sucesso já vem dentro do próprio país.

A MLS possui um sistema idêntico ao de outras ligas locais, todos os times são franquias, é um modelo fechado, não havendo rebaixamento e ascensos (contrariando o art.10 do Regulamento de Aplicação do Estatuto FIFA), bem como os proprietários dos times, automaticamente, tem participação acionária na Liga, cada um com uma porcentagem igual. Todos trabalham não apenas para fazer seu time ter êxito dentro de campo, mas também para o crescimento do produto como um todo.

Da mesma forma, não podemos olvidar que os americanos intentam o desenvolvimento da modalidade desde a época que receberam a Copa do Mundo, em 1994. A MLS nasceu dois anos depois, ainda sem muito sucesso, devido à falta de estrutura de seus clubes, que não tinham estádio próprio e nem centro de treinamento. Houve diversas tentativas de se mudar as regras do jogo para que o esporte caísse nas graças do público local, porém não obtiveram sucesso.

Como, portanto, um quinto esporte (atrás do futebol americano, basquete, beisebol e hóquei no gelo) conseguiria a atenção de um público totalmente já consolidado? Ademais, ultrapassando as barreiras internas, como essa modalidade e os atletas se tornariam competitivos internacionalmente? Bem, tratando-se de esportes, nunca devemos duvidar dos americanos e da sua aptidão para o desporto, para os negócios e para o entretenimento em si.

Com efeito, a conta parece ser bastante simples: o aumento do interesse do público, traduzida na presença nos estádios e audiência televisiva das partidas, é propulsora do interesse de novas empresas, patrocinadores, investidores em participar da Liga. Para tanto, um dos caminhos foi trazer jogadores renomados do futebol mundial.

Desse modo, foi criado um mecanismo para excepcionar a vinda de jogadores bem-sucedidos por franquia, que poderiam furar o teto salarial existente para todos os times, mantendo assim o equilíbrio da competição. A partir do final dos anos 2000, diversos atletas vieram participar da Liga: Beckham, David Villa, Henry, Rooney, Kaká, Gerard, Lampard, Schweinsteiger, Pirlo e, mais recentemente, Zlatan Ibrahimovic, Gareth Bale e Giorgio Chiellini, bem como alguns atletas que ainda possuíam mercado no futebol europeu, mas que optaram pelo modelo e qualidade de vida proporcionado pelos americanos.

Por conseguinte, era inevitável o aumento do interesse do público, que tinha média de 15,1 mil em 2005 para 22,1 mil em 2017[2]. Sem embargo, trazer as estrelas mundiais não bastava para o projeto. Nesse contexto, era necessário aumentar a qualidade e a competitividade do produto, com o aporte de jogadores jovens e com talento, que pudessem viabilizar o projeto ao longo prazo, bem como pudessem representar uma oportunidade de revenda ao mercado europeu.

Sendo assim, a Liga passou a incentivar a contratação de jovens valores, que acabaram vindo dos países sul americanos. Os clubes passaram a poder ter até três atletas promissores abaixo de 22 anos. Em outras palavras, um atleta acima de média e com capacidade de render lucro em uma negociação futura. Concomitantemente, as franquias começaram a contar com divisões de base, o que não existia anteriormente.

Em levantamento recente feito pelo CIES em 2021, constatou que 46% dos atletas da MLS eram estrangeiros, sendo que a idade média dos que vem da América do Sul era de 23,4 anos, da Europa era de 26,7 anos e da África era de 22,7 anos.

Evidentemente, essas transformações foram fundamentais para o aumento do valor dos clubes e, consequentemente, da MLS, impulsionados pelo interesse e maior investimento do mercado. Inevitavelmente, o modelo existente deveria crescer, expandindo-se para todo país.

O número de clubes, saltou de 12 em 2005 para atuais 29, com o estreante St. Louis City SC. A proprietária do novo clube estimou que sua franquia adotou um investimento de cerca de 1 bilhão de dólares (R$ 5,1 bilhões), incluindo centro de treinamento, o novo City Park Stadium (capacidade para 22.500 torcedores), um prédio administrativo e taxa de inscrição.[3]

A propósito, para participar da MLS é necessário fazer um pagamento como se fosse um valor de inscrição. O valor pago, a título de curiosidade, pela equipe de Charlotte, que iniciou na competição em 2022, foi de 325 milhões de dólares. Esse valor é mais do que o triplo pago pelo Real Salt Lake em 2007. Nos últimos 15 anos, a liga recebeu 1,15 bilhão de dólares em “taxas de inscrição”, uma média de 187 milhões de dólares por clube. Para ter uma ideia do crescimento, entre 2004 e 2010, o valor médio dessa taxa foi de 33 milhões de dólares por clube.

Dessa maneira, o valor dos clubes e da Liga aumentou. Atualmente, estima-se que o valor médio de cada clube saltou para 579 milhões de dólares, representando um aumento de 85% desde 2019. As franquias mais valiosas são Los Angeles Football Club, único a chegar na casa do bilhão de dólares, LA Galaxy (925 milhões de dólares), Atlanta United FC (850 milhões de dólares) e New York City FC (800 milhões de dólares), segundo a Forbes.[4]

Entretanto, as receitas dos clubes ainda estão longe dos demais esportes americanos e dos clubes mais ricos do Brasil. O LAFC teve receita de 116 milhões de dólares (aproximadamente 600 milhões de reais) e o LA Galaxy, por sua vez, 98 milhões de dólares (cerca de 510 milhões de reais), o que exclui as receitas com venda de jogadores.

Todavia, ainda sem a musculatura financeira dos principais centros, a atuação dos clubes americanos, conforme já exposto, tem ganhado cada vez mais protagonismo, juntamente com o seu vizinho México, os mercados dominantes da Concacaf.

Nesse contexto, é imprescindível expor alguns números trazidos à baila pela FIFA, retratando o mercado das transferências internacionais, através do relatório do TMS (Transfer Matching System), uma plataforma para armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol, relativo ao ano de 2022[5].

Foi a segunda Confederação que mais gastou em transferências (259,4 milhões de dólares), atrás apenas da UEFA. Desse valor, disparado é a que mais gasta com jogadores oriundos da Europa (109,9 milhões de dólares), com 363 jogadores e a segunda que gasta mais com futebolistas vindo da América do Sul (117 milhões de dólares), com 457 atletas.

Mais precisamente os EUA, foi o 10º país que mais importou jogadores (404) e o 13º a liberar jogadores (358), o 12º que mais recebeu pelas transferências internacionais (135,2 milhões de dólares) e o 8º que mais gastou (181,5 milhões de dólares). Dentro dos dez clubes que mais gastaram, 7 são americanos e 3 são mexicanos.

O período de janeiro de 2023, através de números fornecidos pela FIFA, coloca os EUA na liderança mundial dos países que liberaram jogadores para atuar em outros países (26), o que demonstra a mudança do perfil da MLS, que desperta cada vez mais interesse dos clubes europeus. Nos últimos anos, diversos jogadores da MLS saíram para brilhar na Europa, como, por exemplo, McKennie, Alphonso Davies, Pulisic e Almirón.

O futebol americano mostra sinais de crescimento dentro de campo e, pela primeira vez, teve representante no Mundial de Clubes, Seattle Sounders, que venceu a Champions da Concacaf, e teve um representante na seleção argentina campeã do mundo, Thiago Almada, que atua no Atlanta.

Contudo, a MLS parece não querer parar e caminha a passos largos para uma evolução ainda mais exponencial[6]. Cientes que a sua base de espectadores é a mais jovem do cenário esportivo dos EUA, a Liga resolveu se aventurar além das plataformas padrão e fez parceria com a Apple, que já tinha interesse em participar do meio do esporte, em um contrato de 2,5 bilhões de dólares por 10 anos, mais do que dobrando o valor anual recebido anteriormente pelos meios de transmissões usuais.

Convém aclarar que o acordo com a Apple não elimina os contratos de TVs atuais ou impede contratos futuros. Afinal, abrir mão dos veículos tradicionais é abrir mão de um público que está acostumado a consumir o produto daquela forma, alguns muito reticentes às mudanças tecnológicas.

Por esse motivo, a MLS não cortou completamente o cordão umbilical: a cada ano até 2026, a Fox Sports realizará 34 partidas da temporada regular e oito jogos do playoff, incluindo a MLS Cup. A Fox Sports e a ESPN eram os detentores dos direitos nacionais anteriores, e o ESPN Plus transmitia partidas fora do mercado. O serviço da MLS na Apple TV será um exemplo de pay-per-view da Liga.

Esse novo contrato vai permitir o aumento do salário médio dos atletas, obtido através do Acordo Coletivo (Collective Bargaining Agreement – CBA) feito com a associação de jogadores, que prevê que os jogadores recebam 12,5% do aumento líquido de revenda dos direitos de transmissão de mídia acima de 100 milhões de dólares, o que aumentará para 25% até o fim do atual CBA, em 2027. Esse dinheiro irá direto para o teto salarial e para o general allocation money, ou o dinheiro de alocação geral, que pode ser usado por clubes para salários.[7]

Essa força do Estados Unidos em atrair uma das maiores empresas do mundo para sua Liga chamou a atenção do mercado, que, nos próximos anos, certamente, estará com os olhos voltados para o país devido à Copa do Mundo de 2026, que será realizada conjuntamente com México e Canadá.

Diante da necessidade de expansão do produto e da quantidade de consumidores hispanos no país, ávidos e apaixonados por futebol, esse ano, a MLS se juntou à Liga Mexicana. O que se resumia à contratação de jogadores mexicanos, até a realização do jogo das estrelas entre as ligas, se transformou em um torneio em conjunto, que promete revolucionar o continente e ter consequências para o futuro do esporte mundial.

Na metade da temporada regular, em meados de julho, será realizada a League Cup, que já existia em formato amistoso entre poucas equipes entre as ligas. Dessa vez, de maneira definitiva com todas as 29 equipes da MLS e as 18 da primeira divisão do México, a Liga MX.[8]

Os respectivos campeões da liga, LAFC e Pachuca, não jogarão na primeira rodada, que conta com 15 grupos de três equipes que buscam duas vagas cada nas oitavas de final. Ambos os finalistas e o terceiro colocado se classificarão para a Liga dos Campeões da Concacaf. Todas as partidas acontecerão nos Estados Unidos e Canadá.

Inclusive, o crescimento do futebol na América do Norte já é visto com desejo pelos membros da Conmebol, que assinaram um acordo com a Concacaf para a criação de um torneio entre as melhores equipes de cada continente, uma espécie de Final Four, que seria feito anualmente, a partir de 2024.[9]

Por todo o exposto, a MLS demonstra caminhar a passos largos, em inovação, investimentos em estrutura e em desenvolvimento, para ser um dos principais campeonatos do mundo, ainda que estejam longe da arrecadação dos principais clubes, dos principais centros. Contudo, quem ousa duvidar dos americanos? A Liga Americana demonstra que os tempos não voltam e tendem a avançar cada vez mais, sem olhar para o retrovisor. Serão os clubes americanos os próximos a desafiar a ordem do futebol?

Crédito imagem: Atlanta United

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Tempos que não voltam? Parte 1: Mundo Árabe e África – Lei em Campo – última consulta: 01.03.2023

[2] O soccer pede passagem: como a MLS pensa seu futuro – Opinião – InfoMoney – última consulta: 01.03.2023

[3] MLS abre temporada 2023 em crescimento nos embalos da próxima Copa | mls | ge (globo.com) – última consulta: 01.03.2023

[4] Major League Soccer’s Most Valuable Clubs 2023: LAFC Is The First Billion-Dollar Franchise (forbes.com)

[5] FIFA TMS 2022 – https://digitalhub.fifa.com/m/2ee0b8943684e25b/original/FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf – última consulta: 01.03.2023

[6] What to know about the 2023 MLS season – The Washington Post – – última consulta: 01.03.2023

[7] https://trivela.com.br/estados-unidos/mls/acordo-da-mls-com-a-apple-e-inovador-e-tem-potencial-transformador-para-a-liga/  – última consulta: 01.03.2023

[8] https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2022/10/07/mls-e-liga-mx-anunciam-torneio-com-times-dos-eua-e-mexico.ghtml – última consulta: 01.03.2023

[9] https://www.conmebol.com/pt-br/noticias-pt-br/conmebol-e-concacaf-assinam-acordo-estrategico-competicoes-de-selecoes-nacionais-em-2024-e-um-novo-torneio-de-clubes/#:~:text=CONMEBOL%20Evolu%C3%A7%C3%A3o-,CONMEBOL%20e%20Concacaf%20assinam%20acordo%20estrat%C3%A9gico%3A%20competi%C3%A7%C3%B5es%20de%20sele%C3%A7%C3%B5es%20nacionais,um%20novo%20torneio%20de%20clubes&text=A%20CONMEBOL%20Copa%20Am%C3%A9rica%20masculina,seis%20equipes%20convidadas%20da%20Concacaf. – – última consulta: 01.03.2023

 

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