Search
Close this search box.

Valores e princípios olímpicos em conflito com o esporte eletrônico

Na publicação que explica como o esporte eletrônico pode se tornar olímpico, foi visto que é necessário que ele esteja de acordo com os valores essenciais e princípios fundamentais do Movimento Olímpico.

É necessário fazer uma análise crítica sem carga de preconceito antes de decidir se o eSport é capaz de se integrar ao movimento olímpico.

Os valores essenciais do Movimento Olímpico não estão escritos e muito menos estão listados taxativamente. Esses valores são entranhados na tradição e nas práticas daqueles que fazem parte do movimento olímpico.

Não há definição clara se o eSport está em compasso com os valores essenciais do Movimento Olímpico, dado que se trata de matéria subjetiva, porém é possível tocar em algum dos pontos mais sensíveis dessa discussão.

Os Princípios Fundamentais do Movimento Olímpico estão em lista taxativa na Carta Olímpica. Na publicação da semana passada, é possível encontrar uma síntese de todos eles.

Dentre os sete princípios, os de número 4 e 5 são responsáveis por estabelecer objetivamente condições para que um esporte seja considerado olímpico. Em ambos os princípios, é possível identificar conflitos com o eSport.

Essência do esporte e sua utilização para a inclusão e educação

Enquanto o Movimento Olímpico é todo estruturado em filosofias de vida, ética e respeito, o eSport foi criado para o lucro de grandes empresas e se apoia na popularidade de seu entretenimento.

Entretanto, para que um esporte seja olímpico, ele deve ser capaz de ser utilizado como instrumento de inclusão e educação, independentemente de suas origens.

Nesse sentido, ao passo que vários esportes analógicos evoluíram e se tornaram negócio, o esporte eletrônico foi capaz de fazer o caminho inverso. Começou como negócio e evoluiu para se tornar tão capaz de transmitir respeito, bons exemplos e desenvolvimento social do praticante quanto qualquer esporte analógico.

Atividade física

Outra questão inevitável de ser discutida é quanto ao esforço físico do praticante para que uma atividade seja esporte.

Seria simples dizer que esportes como o xadrez ou o tiro esportivo, que se assemelham ao eSport nesse sentido, já são esportes olímpicos, portanto não há razão para que o esporte eletrônico não seja também.

Mas é interessante enquadrar o esporte eletrônico dentro da concepção de esporte do próprio Barão Pierre de Coubertin, que o definiu como “culto ao exercício muscular intensivo, apoiado no desejo de progresso e podendo ir até o risco”.

Usando como exemplo as modalidades RTS, que a todo momento medem APM (ações por minuto) de seus praticantes durante as disputas, é possível identificar uma média de APM altíssima (entre 200 e 700), o que demanda extrema preparação física e esforço.
Só para se ter uma ideia, a norma regulamentadora 17 do Ministério do Trabalho, que trata da ergonomia, diz:

17.6.4. Nas atividades de processamento eletrônico de dados, deve-se, salvo o disposto em convenções e acordos coletivos de trabalho, observar o seguinte:
b) o número máximo de toques reais exigidos pelo empregado não deve ser superior a 8 (oito) mil por hora trabalhada, sendo considerado toque real, para efeito desta NR, cada movimento de pressão sobre o teclado; (117.033-3 / I3)

Fazendo a conversão de ações por minuto para ações por hora, a média de toques por hora desses verdadeiros atletas fica entre 12 mil e 42 mil, muito acima do limite de tolerância da norma de ergonomia brasileira.

Imagem: quadro capturado da transmissão ao vivo do torneio de StarCraft 2 na Intel Extreme Masters 2019 (Neeb [P] vs Lambo [Z] – Group Stage Ro24 (Bo3) – Group B), disponível em https://www.twitch.tv/esl_sc2

Princípio Fundamental Número 4 – liberdade esportiva

O princípio número 4 prevê que a prática do esporte é um direito humano. Todo indivíduo deve ter a possibilidade de praticar esporte conforme o Espírito Olímpico, sem discriminação de qualquer tipo, o que requer entendimento mútuo com o espírito de amizade, solidariedade e fair play.

É importante entender que esse princípio procura garantir que quem quiser praticar esporte só seja impedido de fazê-lo por conta de suas próprias capacidades. Nenhum fato alheio à vontade da pessoa pode impedi-la.

Como os jogos eletrônicos praticados como esporte têm um dono com poderes de regular aquele que acessa seus servidores, na opinião do autor, resta prejudicado esse princípio.

Inclusive, expandindo a interpretação desse princípio, a GAISF, associação que tem o objetivo de ajudar as federações internacionais a serem reconhecidas pelo Comitê Olímpico Internacional, determinou que, para que uma atividade seja considerada esporte por ela, sua prática não pode depender de equipamentos que tenha apenas um fornecedor.

O software do jogo, embora seja virtual, deve ser entendido como um equipamento necessário para a prática de determinado esporte eletrônico. Dessa forma, mais uma vez, o eSport realmente entra em conflito com o princípio da liberdade esportiva.

Princípio Fundamental Número 5 – autonomia esportiva

O princípio fundamental número 5 reconhece que o fenômeno esportivo ocorre no contexto da sociedade. As organizações esportivas pertencentes ao Movimento Olímpico devem ter neutralidade política. Eles têm os direitos e obrigações da autonomia, o que inclui estabelecer e controlar as regras do esporte livremente, determinar a estrutura e governança de suas organizações, gozar de eleições livres de qualquer influência externa e a responsabilidade de garantir que os princípios da boa governança são aplicados.

Quando se fala do princípio da autonomia esportiva, logo se pensa em como é inconcebível a intervenção estatal em todos esses assuntos esportivos.

Entretanto, é inconcebível qualquer intervenção na forma de organização de uma federação e da administração da federação sob seu desporto.

O contexto histórico que deu origem a esse princípio e à forma como se dá a administração do esporte eletrônico pode ser encontrado neste artigo do eSports Legal.

A federação depende de uma boa relação para obter a permissão de administrar o esporte eletrônico de qualquer modalidade. Além disso, a federação jamais terá qualquer poder sobre as regras do esporte que administra.

Nesse sentido, a propriedade dos jogos praticados como esportes nas mãos de uma empresa que desenvolveu o jogo garante a ela pleno poder sobre a federação que utilizar seus jogos, fazendo com que esse princípio também esteja prejudicado.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.