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A luta entre amigos e a aplicação da regra da timidez no MMA

No MMA, o entretenimento é garantido pela regra da “timidez”. As regras unificadas do MMA assim definem a atitude de timidez: “qualquer lutador que evita propositalmente o contato com seu oponente ou foge da ação da luta[1]”. Tal atitude pode gerar advertência para o atleta ou mesmo sua desclassificação.

A timidez também pode ser considerada pelo árbitro como qualquer tentativa de um lutador de ganhar tempo alegando falsamente uma falta, uma lesão, ou deixando cair ou cuspindo propositalmente o bocal ou outra ação destinada a paralisar ou atrasar a ação da luta.

Já falamos no passada sobre a regra da timidez. Porém, convém voltarmos ao tema devido ao polêmico episodio ocorrido há algumas semanas na Professional Fight League (PFL), envolvendo dois lutadores brasileiros, companheiros de equipe, durante a PFL 6, no dia 23 de junho de 2023.

A PFL é uma promoção de MMA que tenta se diferenciar dos demais por ter uma temporada regular, playoffs e campeões que se revezam por temporada.

O show é concebido com a premissa de que o mérito dita o avanço, e não apenas a vontade do promotor.

Há algumas semanas, no entanto, a PFL interferiu nesse formato, colocando em dúvida sua integridade.

O bicampeão dos pesos leves Natan Schulte enfrentaria o ex-campeão Raush Manfio, com o vencedor seguindo uma chance nos playoffs.

Embora, no papel, não houvesse nada de errado com esse confronto, os fãs questionaram a colocação de Schulte e Manfio – dois amigos íntimos – um contra o outro. Alguns temiam que isso resultasse em uma luta monótona.

De fato, foi o que o ocorreu. Em uma luta que mais pareceu um sparring de aquecimento entre amigos, Schulte e Manfio foram tímidos em suas apresentações, com o primeiro sendo indicado como vencedor pelos juízes após três rounds.

A vitória levaria Schulte para uma luta contra Clay Collard, que estava no topo da tabela após o evento.

De acordo com o sistema de pontos da temporada da PFL, Natan ganharia o direito de entrar nos playoffs, onde poderia competir pelo prêmio de um milhão de dólares.

A promoção, no entanto, decidiu expulsá-lo de seu merecido lugar e substituí-lo por uma estrela potencialmente maior, o ex-UFC Shane Burgos, estrela contratada na recente temporada que não havia conseguido se qualificar. O evento alegou que a vitória de Schulte não atendeu a seus “padrões”.

A questão que isso desencadeia é a dos direitos dos atletas. Eles se baseiam nas regras das comissões, nos regulamentos e nos contratos entre lutadores e promotores, e não naquilo que a promoção gostaria que acontecesse.

Na ocasião, poderia o árbitro ter interferido, como base na já falada regra da timidez, para acelerar o combate. Sobre a questão, Guilherme Bravo, juiz mais respeitado do MMA no Brasil, assim se posicionou[2]:

Normalmente, quando tem um só atleta fugindo da luta, você pede tempo, conversa e explica que ele precisa lutar ou você vai tirar pontos até desclassifica-lo. Já quando se entende que os dois não querem lutar, ambos podem ser desclassificados.

(…)

Se o árbitro deixou rolar, ele está dizendo que teve luta. Teve um resultado anunciado, uma vitória e a comissão não tem nada a ver com isso. Agora é com o evento e eles vão fazer o que der na cabeça deles.

Sobre a suspensão de ambos os envolvidos da competição, a PFL se manifestou nos seguintes termos[3]:

Na noite passada, Natan Schulte e Raush Manfio não cumpriram os padrões que todos os lutadores da PFL concordam em manter na competição.

Em seus contratos de luta com a PFL, todos os lutadores concordam em usar seus “melhores esforços… habilidades e capacidades como atleta profissional para competir… e derrotar qualquer oponente”.

Ficou muito claro que Natan e Raush não cumpriram esse padrão contratual na luta de ontem.

A PFL suspendeu imediatamente os dois lutadores da temporada e considerou a luta como tendo 0 pontos para fins de classificação na Liga.

A PFL toma essa medida em reconhecimento à sua responsabilidade para com todos os lutadores e fãs da PFL.

Aqui estão os confrontos atualizados das semifinais dos pesos leves:

#1 Clay Collard vs. #4 Shane Burgos

#2 Olivier Aubin-Mercier vs. #3 Bruno Miranda

Fato é que as regras afirmam claramente que os pontos (que determinam o direito de avançar em seu formato) serão baseados nas decisões da liga, ou seja, no julgamento dos promotores do evento, como dita o item 1.3 das regras da liga[4], senão, vejamos:

1.3 – Comissões

As lutas da temporada 2023 da PFL serão realizadas em várias jurisdições e cada luta será regida pelos regulamentos e regras da comissão da jurisdição em que a luta ocorrer. Caso surja uma inconsistência em qualquer ponto da temporada entre a aplicação das regras da liga e as regras da comissão aplicáveis, as regras da comissão terão precedência, com exceção das variações aprovadas pela comissão. Os pontos da liga, as classificações, os critérios de desempate e as chaves dos playoffs para fins intra-liga ficam a critério da liga. (grifo meu)

Nesse caso, embora a comissão da Geórgia tenha declarado Schulte como o vencedor oficial de uma luta, a liga simplesmente negou-lhe os pontos que deveriam ser atribuídos à sua vitória.

Pelas regras unificadas do MMA, como tratamos em outra coluna, as comissões têm o poder de anular o resultado de uma luta se acreditarem que os atletas não estavam competindo honestamente[5].

Esse é um poder que as comissões detêm, não os promotores. Se a comissão não usar esse poder, então a posição da PFL não faz sentido, pois não há evidencias de que a integridade da luta deva ser questionada, uma vez que a vitória faria sentido para que ambos seguissem na busca pelo prêmio de um milhão de dólares.

A luta, embora certamente não tenha sido a mais divertida, não trouxe aspectos a serem questionados quanto à sua integridade competitica, mas a PFL ainda sim optou por punir Manfio e Schulte, amigos de longa data, que não conseguiram colocar a amizade de lado para melhor performar.

Este é um dilema na luta: enfrentar companheiros de equipe que se ajudam no treino e acabam se tornando amigos. Os valores nas artes marciais por vezes dificultam que os atletas se vejam como adversários, ainda que sua sobrevivência na competição dependa disso muitas vezes.

Crédito imagem: PFL

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REFERÊNCIAS:

BRAVO, Guilherme. Nas mãos dos juízes: Uma perspectiva do MMA ao lado da grade. 1ª. ed. [S. l.]: PVT 1, 2019.

COSTA, Elthon José Gusmão da. Aspectos jurídicos do desporto MMA. 1ª. ed. São Paulo: Mizuno, 2023.

TROWBRIDGE, Glenn. Judging professional MMA. 1ª. ed. Las Vegas, Nevada: Munched Kitty Publications, 2014.

[1] https://www.abcboxing.com/wp-content/uploads/2020/02/unified-rules-mma-2019.pdf

[2] https://ge.globo.com/combate/noticia/2023/06/29/guilherme-bravo-explica-papel-da-arbitragem-em-polemica-de-natan-x-raush-na-pfl.ghtml

[3] https://www.pflmma.com/news/pfl-statement-on-schulte-vs-manfio

[4] https://pflmma-prod.s3.amazonaws.com/settings/league_attachments/5b1d7d77cfe8189c56ad88bbb1e24a1b-1.pdf

[5] Sob a regra contida no NAC 467.770 (Código Administrativo de Nevada, que regula as apelações no MMA em relação aos resultados), a comissão indica que não anulará um resultado, a menos que:

  1. A Comissão determine que houve conluio que afetou o resultado da contenda ou exibição;
  2. A compilação das fichas de pontuação dos juízes revelar um erro que mostra que a decisão foi dada ao combatente errado; ou
  3. Como resultado de um erro na interpretação de uma disposição deste capítulo, o árbitro tenha proferido uma decisão incorreta. (tradução livre) (grifo meu)

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