É incerto, na ocasião em que escrevo este texto, se a “MP das Apostas” (nº 1.182, de 24 de julho de 2023) vai parar em pé, caducar ou sofrer alterações por parte do Congresso Nacional.
Fato é, porém, que a aludida Medida Provisória encerrou um período de mais de 4 (quatro) anos de inércia por parte do Governo Federal em regular as apostas desportivas em território nacional, iniciado desde a edição da Lei nº 13.756, em dezembro de 2018.
Entretanto, ainda que a Medida Provisória siga as diretrizes da lei que a precede, regulando as apostas de quota-fixa em eventos que tenham “temática desportiva”, há dúvida, inicialmente, se suas disposições sejam aplicáveis aos esportes eletrônicos.
A dúvida emerge, primeiro, em virtude das declarações da então Ministra dos Esportes, Ana Moser, logo ao início do ano de 2023, afirmando que os eSports não seriam esporte, mas entretenimento.
Poucos meses após, em junho de 2023, sob a relatoria da Senadora Leila, o Senado Federal aprovou a nova Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/23), mas do texto final, levado à sanção presidencial, foi suprimido o verbete[1] originalmente inserido no substitutivo da Câmara dos Deputados que conferia ao desporto virtual o expresso caráter de esporte.
Assim, em tese, não existem disposições específicas aos eSports na nova LGE, embora isto não impeça sua aplicação analógica à indústria, a depender do caso concreto, como preceituam os princípios inseridos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, pois o ordenamento pátrio ainda é lacunoso no que tange aos esportes eletrônicos.[2][3]
Pois bem.
Todo esse cenário leva à conclusão inicial de que o Governo, ao regular apostas de quota-fixa em esportes por meio de medida provisória, não pretenderia incluir os esportes eletrônicos: afinal, a Ministra titular não concorda com a equiparação de ambos, tampouco a Lei Geral do Esporte dá suporte legislativo expresso a tanto.
Entretanto, Carlos Maximiliano, em suas clássicas lições de hermenêutica, ensinava que “não se presumem, na lei, palavras inúteis”[4]. Ou seja, a lei não contém palavras em vão.
Não obstante, é certo que apostas de quota-fixa em esportes eletrônicos são um fenômeno social, ao qual o direito não pode fechar os olhos. Os sites de apostas desportivas tradicionais, usualmente, contêm um mercado específico voltado aos eventos de eSports, aos quais é visível e palatável categorizar como de “temática esportiva”, a fim de não ter de se debruçar num embate intraministerial se eSports são ou não são esporte.
Ora, nos jogos eletrônicos há competição entre pessoas, emoção ao público e emprego de habilidade (destreza, mecânica, movimentos físicos e qualidades intelectuais) para se obter a vitória. Há, portanto, vasto mercado consumidor.
Assim, ao se deparar com o texto da MP das Apostas, o leitor ou intérprete verificam que o Governo trouxe o artigo 29-A, cujo inciso I define “eventos reais de temática esportiva” da seguinte forma:
I – eventos reais de temática esportiva – evento, competição ou ato que inclua competições desportivas, torneios, jogos ou provas com interação humana, individuais ou coletivos, excluídos aqueles que envolvam exclusivamente a participação de menores de dezoito anos de idade, cujo resultado é desconhecido no momento da aposta e que sejam promovidos ou organizados: (grifei)
a) de acordo com as regras estabelecidas pela organização nacional de administração do esporte, na forma prevista na Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023 – Lei Geral do Esporte, ou por suas organizações afiliadas;
b) por organizações de administração do esporte sediadas fora do País.
Nesse aspecto, segundo a lição de Maximiliano à melhor interpretação jurídica, quisesse o Governo limitar as apostas ao esporte não precisaria utilizar expressões como “temática” ou “jogos”, bastando fazer simples remissão à definição contida na Lei Geral do Esporte, pois não se pode presumir que a lei contenha palavras inúteis.
Não se pode deixar de considerar, também, que a interpretação jurídica não pode ignorar a vida humana. Essa preocupação, externada por Pontes de Miranda, reflete a necessidade de que a legislação possa acompanhar e ser adequada, ainda que por quem a aplique, aos fenômenos e arquétipos sociais vigentes: “(…) a riqueza da vida humana é demasiadamente complexa para se deixar abroquelar por legislações hipostasiadas”.[5]
Assim, do trecho acima, pode-se dizer que não é a MP das Apostas Esportivas, mas a MP das Apostas de Temática Esportiva, abrindo-se espaço para que os operadores possam explorar as apostas em esportes eletrônicos, desde que (curiosamente) os promoventes do evento sejam, a priori, as organizações nacionais ou internacionais do esporte tradicional ou afiliadas a estas (limitações das alíneas “a” e “b”, supra).
Esse último ponto é curioso porque os maiores campeonatos de esporte eletrônico do mundo, como o CS, o LOL, o Valorant, não guardam qualquer correspondência com o esporte tradicional e suas organizações, estando, a princípio, vedados de ter as apostas exploradas no Brasil, fazendo com que o consumidor brasileiro tenha de recorrer a operadores estrangeiros sem nada nos reverter. Os atletas e partícipes, por sua vez, igualmente não estão sujeitos às restrições e ao alcance da lei brasileira.
Por outro lado, torneios de eSports promovidos pela FIFA, pela NBA ou, mesmo, pelos Comitês Olímpico[6] e pela PANAM Sports (falamos sobre eSports e o PAN de 2023 nesta coluna, inclusive[7]), a princípio parecem sujeitos, pelo texto do artigo 29-A trazido pela MP, ao alcance da regulação brasileira, mesmo realizados fora do Brasil (artigo 29-A, I, “b”). Ou seja, podem, em tese, ser explorados pelo operador, bem como devem submeter os participantes e organizadores aos benefícios e restrições advindos do ordenamento pátrio.
Eis, portanto, a MP das Apostas de Temática Esportiva e sua problemática inicial no que tange aos esportes eletrônicos, a priori, parcialmente regulados.
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[1] v. https://leiemcampo.com.br/esports-e-a-nova-lei-geral-do-esporte/
[2] Art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (grifei)
[3] Art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
[4] Apud Antonio Carlos de Oliveira Freitas, Juiz Pode Dispensar Exigências Formais em Documentos, ConJur, 2004. Op. Cit. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8a. ed., Freitas Bastos, 1965, p. 262.
[5] ISERHARD, Antonio Maria Rodrigues de Freitas. O Conceito de Direito em Pontes de Miranda. 1994. p. 220.
[6] https://olympics.com/en/esports/olympic-esports-series/
[7] https://leiemcampo.com.br/esporte-eletronico-jogos-panamericanos-olimpismo-e-concorrencia/