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Liberdade de trabalho x força obrigatória dos contratos: o empoderamento dos atletas extrapolou os limites do aceitável?

Nos últimos anos, a expressão empoderamentopassou a ser comum em uma série de contextos, inclusive no universo do esporte. Em relação à NBA, o grande marco do movimento de empoderamento dos atletas foi The Decision, evento televisivo promovido por LeBron James em parceria com a ESPN por meio do qual, no dia 08 de julho de 2010,o maior jogador de basquete de sua geração anunciou, após uma badalada rodada de negociações com algumas franquias, para qual delas ele “levaria seus talentos.

Contudo, vasculhando o passado da NBA, podemosenxergar outros episódios marcantes em que atletas usaram seu poder e influência para forçar decisões por parte das equipes em que atuavam.

Em julho de 1968, em circunstâncias bem peculiares que envolveram, inclusive, uma ilegal promessa não cumprida de aquisição de parte da franquia, o Philadelphia 76ers se viu forçado a trocar Wilt Chamberlain, recordista de pontos (100) em uma partida da NBA, para o único destino desejado pelo astro, o Los Angeles Lakers.

Pouco antes do início da temporada 1974-1975, Kareem Abdul-Jabbar pediu para ser trocado do Milwaukee Bucks, tornando público o seu desejo de ir para o New York Knicks ou para o Los Angeles Lakers. À época, esta foi a justificativa que o pivôapresentou para querer deixar a cidade de Milwaukee:

Não tenho família ou amigos aqui. As coisas com as quais me identifico não acontecem nesta cidade em nenhum grau significativo. Culturalmente, o que eu sou e o que é Milwaukee são duas coisas diferentes. A razão pela qual eu não comentei sobre isso antes é que eu não quero dar uma surra em Milwaukee ou nas pessoas aqui e fazer com que eles pensem que não são dignos de mim. Não é disso que se trata.Não tenho sentimentos desagradáveis ​​em relação ao povo de Milwaukee ou Wisconsin. Eu quero destacar isso. Mas minha família e amigos não estão aqui e culturalmente o que eu gosto não existe aqui. Minha relação com a diretoria foi ótima e as pessoas da franquia são ótimas. Não tenho reclamações quanto a isso.

É inegável que, do ponto de vista da liberdade individual e, por consequência, da liberdade de trabalho, as razões apresentadas por Abdul-Jabbareram legítimas. E ele teve o cuidado de expor essas razões de um jeito transparente, elegante e respeitoso. Oito meses depois, o maior pontuador da história da NBA foi trocado para o Lakers, de onde pediu uma nova troca, agora exclusivamente para alguma das equipes de Nova Iorque (Knicks ou Nets, então em Nova Jersey), em 1981.

Foi também em 1981 que Magic Johnson, verbalizando a intenção de outros jogadores do Lakers, pediu a demissão do treinador Paul Westhead, ameaçando pedir para ser trocado caso tal pedido não fosse atendido. Essa história écontada em detalhes no livro Showtime: Magic, Kareem, Riley, and the Los Angeles Lakers Dynasty of the 1980s, do jornalista Jeff Pearlman, obra que inspirou a série Winning Time (intitulada, no Brasil, Lakers: Hora de Vencer), da HBO.

Ainda não se sabe como o programa de televisãoabordará o caso, mas a motivação para a conduta de Magic Johnson, ao menos a princípio, parecia fundamentada por questões esportivas, uma vez que ele e seus companheiros de Lakers vinham se sentindo tolhidos pelo sistema tático que Paul Westhead tentara impor em sua segunda temporada como comandante do time.

Um detalhe: quando Wilt Chamberlain, Kareem Abdul-Jabbar e Magic Johnson exerceram seu poder perante as franquias da NBA, sequer havia a free agency, implementada no final da década de 80 nos moldes em que ela funciona na atualidade. A propósito, ainda era relativamente recente a extinção da chamada reserve clause nos contratos padrão da liga. Em função dessa “cláusula de reserva”, as equipes continuavam a deter direitos sobre os jogadores mesmo após o encerramento do vínculo contratual. A regra deixou de existir oficialmente apenas em abril de 1976, em decorrência do acordo judicial firmado entre a NBA e a National Basketball Players Association (NBPA), equivalente ao sindicato dos atletas, nos autos do célebre “caso Oscar Robertson”.

Falando em free agency e em Los Angeles Lakers, a franquia da Califórnia, tantas vezes citada neste texto, foi uma das principais protagonista de outra gigantesca operação histórica na NBA, não de troca, mas de livre e regular negociação: a contratação de Shaquille O’Neal em julho de 1996, vindo do Orlando Magic.

Seguindo as regras do jogo, o atleta negociou como agente livre com o seu então empregador e com outras franquias e encontrou condições financeiras e esportivas mais favoráveis em Los Angeles. Nos dias de hoje, com o ambiente que permeia a NBA, será que o popular “Shaq, então uma das maiores estrelas da liga e recém derrotado na final da temporada anterior, teria forçado uma troca em vez de aguardar que seu contrato expirasse para testar o mercado no período da free agency?

Especulações à parte, o fato é que, vinte anos depois, Joel Corry, que trabalhava na ocasião como consultor junto ao empresário de Shaquille O’Neal, revelou os bastidores dessa transferência que alterou profundamente os destinos do Magic e do Lakers, apontando que tudo favorecia a permanência do jogador em Orlando, “exceto por uma mudança muito específica e inesperada no acordo coletivo de trabalho [Collective Bargaining Agreement], que foi tudo de que os Lakers precisavam para atrair Shaq por meio daprovavelmente mais brilhante medida de corte salarial que a NBA já viu.

Em outras palavras, o Lakers atuou de forma criativa dentro das regras salariais impostas pela liga e, legalmente, conseguiu contratar o pivô, algo muito melhor para a imagem da NBA do que o tampering, de que tratamos em nossa última coluna, e muito mais adequado do que o modus operandi para forçar trocas descrito por alguns agentes.

Outra estratégia popularizada na NBA por LeBron James como manifestação do empoderamentos dos atletas é a assinatura de contratos com prazo de vigência mais curto, aptos a garantir uma flexibilidade negocial que acordos mais longos não permitem e a viabilizar uma constante pressão sobre a direção das franquias para atender os pedidos dosjogadores.

Foi essa estratégia, aliás, que criou as bases para que duas outras grandes estrelas, Dwayne Wade e Chris Bosh, também vinculados a contratos mais curtos, se juntassem a LeBron James no Miami Heat após The Decision. Não foi por acaso que os três jogadores, em 2006, representados pela mesma agência, assinaram extensões contratuais menores do que se esperava, as quais terminariam no mesmo momento, um indício de que a possibilidade de atuarem juntos já estava no horizonte. Tudo dentro das regras e de um manejo criativo destas.

Naturalmente, existem elementos comuns por trás das imposições dos atletas, dos polêmicos pedidos de troca e das negociações e arranjos contratuais realizados regularmente: a liberdade individual, a liberdade de trabalho e motivações esportivas e financeiras dos jogadores. De todo modo, como se percebe a partir dos relatos apresentados, existem diferentes formas de exercer esses direitos e de levar tais motivações às últimas consequências.

Algo que parece ter mudado radicalmente, em especial desde The Decision, é a maneira como o poder dos jogadores se manifesta. Essa mudança, ao que tudo indica, terá de ser diretamente endereçada no próximo acordo coletivo de trabalho a ser firmado entre a NBPA e a NBA.

No mais recente episódio de seu podcast, o Bola Presa chamou a atenção para o fato de que o constrangimento social que um pedido de troca causava praticamente deixou de existir, inclusive no caso de atletas com muitos anos de contrato ainda vigentes.

Isso é algo que deve estimular as franquias a pleitearem a inclusão de uma regra pela qual demandas dessa natureza, se aceitas, implicariam uma redução salarial para os jogadores que as apresentassem, em uma espécie de reverse oupenalty trade kicker. Pelas normas da NBA, um trade kicker é um bônus salarial ao qual jogadores trocados passam a ter direito em determinadas hipóteses. Se aprovado esse pleito, o atleta que forçar uma troca perderá dinheiro. Em termos de liberdade individual e liberdade de trabalho, isso seria justo?

Por outro lado, como questionamos anteriormente no Lei em Campo, é justo com as franquias que atletas aos quais elas pagam remunerações milionárias e aos quais oferecem as melhores condições de trabalho possíveis tenham tanto poder de barganha para forçar trocas, decidir os destinos de toda uma organização e, a rigor, descumprir contratos?

No momento, boa parte da mídia que cobre a NBA está mobilizada pelo pedido de troca feito por Kevin Durant e pelo “ultimato” que ele apresentou ao Brooklyn Nets, insinuando que a única chance de continuar cumprindo os quatro anos restantes de seu contrato estaria condicionada à demissão dos atuais treinador e general manager da equipe, os quais, por sua vez, fizeram de tudo para manter o atleta confortável e satisfeito durante todo o tempo.

Há inúmeros outros exemplos de situações extremas em pedidos de troca ou de trocas forçadas nos últimos anos: Carmelo Anthony do Denver Nuggets para o New York Knicks em 2011, Dwight Howard do Orlando Magic para o Los Angeles Lakers em 2012, Anthony Davis do New Orleans Pelicans para o Los Angeles Lakers em 2019, James Harden do Houston Rockets para o Brooklyn Nets em 2021 e do Brooklyn Nets para o Philadelphia 76ers em 2022.Em todos eles, o poder dos atletas de “forçar a mão” de seus empregadores falou mais alto do que os comandos contidos nos contratos assinados livremente entre as partes.

Se o empoderamento dos atletas extrapolou os limites do aceitável, caberá à NBA, que, paradoxalmente, lucra bastante com o frenesi criado pelos rumores e vazamentos de negociações em redes sociais, construir um consenso junto aos representantes dos jogadores quanto àquilo que é melhor para a liga. Adicionalmente, será necessário entender até que ponto estamos diante de poderes (talvez) excessivos apenas das superestrelas, uma vez que os atletas secundários envolvidos nessas trocas não têm nenhuma voz quando são simplesmente “despachados” para outras franquias.  

Na NBA, a tensão entre a liberdade de trabalho e a força obrigatória dos contratos nunca esteve tão grande. Não há vilões e nem mocinhos, mas há regras que precisam ser respeitadas (e, se for o caso, repensadas e modificadas), sob pena de um comprometimento de todo o sistema. Lidar com esse tipo de tensão e conciliar interesses por vezes antagônicos em prol de interesses comuns é o recorrente dever de casa de todos os envolvidos em uma liga esportiva profissional.

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