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Liga parte final: Incentivos fiscais e a atração dos protagonistas do espetáculo

No último mês, um dos assuntos mais comentados do futebol nacional foi a criação de uma Liga, modelo de organização que promete revolucionar o esporte no país. Não somente isso, ainda que tardio, o processo de profissionalização da modalidade, principalmente na área da gestão, seja por meio da recém instituída Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), seja pela possibilidade de Liga, fez com que o mercado brasileiro passasse a ser o centro das atenções dos investidores de todo o mundo.

Nesse sentido, podemos destacar o interesse de conhecidos proprietários de conglomerados de empresas, que atuam também no futebol, detentores de uma carteira com diversos clubes (multi-club ownership). Além disso, a presença de algumas propostas de investimento, ainda incipientes, para a colaboração em uma futura Liga, prometem causar muitas discussões nos próximos meses, em um terreno que nunca foi pacífico entre os dirigentes das entidades.

Por conseguinte, comecei a escrever uma série de artigos sobre alguns dos elementos essenciais para o êxito de uma Liga aqui no Brasil. No primeiro capítulo, abordei a necessidade e as vantagens dos mecanismos de controle econômico exercidos por Laliga, referência mundial no tema e uma das interessadas na gestão da nossa competição, que poderia aportar sua expertise e experiência na gestão.[1]

Posteriormente, na segunda parte, discorri sobre a importância de uma negociação centralizada e uma distribuição mais igualitária dos direitos de transmissão para o equilíbrio da competição e suas consequências, explanando todo o processo nas três principais ligas europeias.[2]

Por último, comentei sobre a internacionalização da marca e como isso significou a mudança de status da Liga Espanhola, que passou a competir com outras ligas no âmbito internacional graças a um plano bem ousado, alterando sua estrutura interna e externa. Tudo isso pode ser utilizado futuramente em uma futura Liga aqui no Brasil, em caso de concretização dessa parceria com LaLiga.[3]

Posto isso, partimos para o fechamento dessa série. No quarto e último capítulo, debateremos um tema de direito público, que depende da iniciativa de alguns dos poderes que compõem o nosso sistema, mas que pode ser preponderante no momento de atrair novos jogadores para o nosso futebol. Afinal, a lex publica é um fator que não deve ser desprezado e é importantíssima para uma correta compreensão do esporte, de uma maneira geral.

Ao longo desse texto, demonstrarei como vem sendo utilizada a questão dos incentivos fiscais pelos principais países europeus, detentores das principais ligas, para aumentar a qualidade do espetáculo e, consequentemente, o interesse público e o aumento de receitas para os clubes. Para isso, nada melhor do que começar explicando uma lei que ganhou o nome popular de um jogador de futebol e marcou uma era na Espanha.

Nos anos 2000, o Real Decreto 687/2005[4], popularmente conhecida como Lei Beckham (um dos primeiros a usufruir dos benefícios), modificou o Regulamento do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas, que fora aprovado pelo Real Decreto 1775/2004, passando a dispor sobre o regime especial de tributação para os não residentes.

Contudo, esse benefício não foi direcionado exclusivamente aos futebolistas. O objetivo inicial era atrair mão de obra qualificada para diversas áreas, promovendo o desenvolvimento econômico do país, porém acabou sendo determinante para que os clubes espanhóis contratassem jogadores do mais alto gabarito. Coincidentemente, foi o período de formação de equipes fantásticas e da criação da marca galácticos pelo Real Madrid.

Nesse contexto, a Lei Beckham permitia reduzir a tributação, que girava em torno de 45% em média, já que varia de acordo com o local, de tudo aquilo que a pessoa percebeu a nível global para 24% sobre aquilo que a pessoa recebia tão somente na Espanha. No entanto, deveriam preencher alguns requisitos, como, por exemplo, não ter residido na Espanha nos 10 anos precedentes, que o deslocamento fosse realizado em razão de um contrato de trabalho e que o trabalho fosse prestado efetivamente no país.

Em 2010, tendo em vista a crise econômica do país, esse dispositivo sofreu uma mudança importante e foi fixado um teto de 600 mil euros anuais para a tributação em 24%. O que excedesse, seria tributado na alíquota normal, não valendo para os contratos em vigor. Em seguida, quatro anos depois, os futebolistas foram excluídos da lista das profissões aptas a requerer esse incentivo, não fazendo mais jus a essa regalia.

A tributação excessiva em comparação com os países concorrentes e os recentes litígios judiciais das estrelas da liga com a Agência Estatal de Administração Tributária (AEAT), que versavam principalmente sobre os direitos de imagem, fez com que o ambiente espanhol perdesse parte do interesse dos jogadores, a competitividade no momento de contratar e provocou uma debandada de estrelas. Atualmente, isso é uma das maiores preocupações dos dirigentes de Laliga.

No Brasil, o direito de imagem também ocasionou muita polêmica. Em virtude do artigo 87-A da Lei 9.615/98[5], incluído em 2015, a Lei Pelé, o valor correspondente a ele não pode ultrapassar 40% da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem. Portanto, a divisão máxima permitida é de 60/40. No entanto, a forma de recebimento da imagem não era bem vista pela Receita Federal.

Isso porque, segundo a autoridade fiscal, a quantia percebida pelas empresas abertas pelos profissionais (não apenas atletas, como também treinadores e até artistas) eram rendimentos salariais mascarados e que não poderiam ser tributados com a alíquota de 15% (se adotado o modelo de lucro presumido), e sim a de 27,5%, importância destinada as pessoas físicas.

Após decisões conflitantes dos órgãos judiciais e também do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) envolvendo diversos futebolistas e artistas de renome, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado. Por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 66[6], movida pela Confederação Nacional da Comunicação Social (CNCom), a Corte Suprema decidiu pela constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, que autorizava a abertura de empresas por pessoas físicas para a prestação de serviços intelectuais, culturais, artísticos ou científicos. O principal argumento foi o da mínima interferência na liberdade econômica, assegurada pela Constituição, no vínculo jurídico estabelecido pelas partes (tomador e prestador de serviços).

Retornando ao cenário europeu, a desvantagem da Liga Espanhola no mercado é referente aos direitos de imagem e o que é recebido em razão dele fora do país[7]. A divisão adotada na Espanha é 85/15, esses 15%, recebidos através de uma pessoa jurídica a título global, são tributados pela alíquota de 25% do Imposto sobre Sociedades, divergindo dos outros países.

Por sua vez, na Itália, foi aprovado, em 2019, o Decreto Lei de Crescimento[8], que alterou uma lei que também era utilizada para atrair mão de obra altamente qualificada ou dirigentes do alto escalão de empresas, passando a incluir, então, os desportistas. Ela foi fundamental para ajudar os clubes e os futebolistas em um mercado cada vez mais competitivo. Sendo assim, houve uma redução da base tributável para somente 50% se o jogador transferisse a residência para o território italiano e permanecesse ao menos dois anos em solo transalpino, ou seja, que assinasse um contrato bienal.

Além disso, existem regimes mais favoráveis que permitem pagar uma taxa fixa de 100.000 euros de tributação anual máxima, qualquer que seja o valor recebido pelos direitos de imagem pagos no exterior, em vez de pagá-los de acordo com uma tabela progressiva. Evidentemente, essas alterações foram fundamentais para a vinda e a permanência de estrelas internacionais nos últimos anos como Cristiano Ronaldo, Ibrahimovic e Lukaku.

Em um simples exercício de cálculo, resta claro o benefício injetado no mercado. Antes dessa medida, um salário bruto de 10 milhões de euros correspondia a aproximadamente 5,5 milhões líquidos. Com o Decreto de Crescimento, o mesmo valor corresponde a cerca de 7,5 milhões líquidos[9].

Por seu turno, o futebol inglês, embora inicialmente não fosse pensado para os futebolistas, pois visava atrair trabalhadores qualificados, sobretudo para o mercado financeiro, possui dois regimes: i) um pelo qual o ano de chegada ou saída do jogador é tributado apenas pelo período passado no país, e ii) outro regime para um residente não domiciliado pelo qual todos os rendimentos gerados fora do Reino Unido, desde que não sejam trazidos para o Reino Unido, não são tributáveis.

Em contrapartida, na Espanha, por exemplo, essa receita, que pode ser oriunda de direitos de imagem com campanhas publicitárias fora do país ou derivada de prêmios obtidos em competições no exterior, teria cobrança de imposto, pois se parte da premissa da renda global.

Em estudo elaborado pelo portal El Confidencial[10] no ano de 2020, expõe a considerável diferença entre as 3 ligas mencionadas, principalmente nos direitos de imagem. Foi colocado uma situação hipotética de um jogador, com contrato de 5 anos, que recebesse uma quantia salarial anual de 25 milhões de euros livres de impostos e percebesse 50 milhões de euros anuais em direitos de imagem (40 milhões procedentes do exterior e 10 milhões no país de residência).

Ato contínuo, no final desses 5 anos de contrato, chegou-se à conclusão de que a tributação dos salários era mais ou menos parecida: 106,3 milhões na Espanha, 107,7 milhões na Itália, 98,7 milhões no Reino Unido. Entretanto, nos direitos de imagem a diferença de tributação era enorme: 108 milhões de euros na Espanha, 22,7 milhões na Itália e 22 milhões no Reino Unido. Sem dúvidas, o cenário mais atrativo para os jogadores e benéfico para os clubes não é a Espanha.

Outro país que criou uma normativa para colaborar com a repatriação de jogadores foi Portugal. O artigo 12-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares[11] promoveu uma redução da base tributável dos ex residentes para 50% para aqueles profissionais que transferissem sua residência de volta para Portugal, nos anos 2019 e 2020.

Para tanto, não deveriam ter sido considerados residentes em qualquer dos três anos anteriores e teriam que ter sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015. Essa mudança foi muito celebrada pelos clubes e trouxe de volta diversos atletas de renome, como Pepe. [12]

Da mesma forma, tendo em vista que o Brasil é o principal exportador de jogadores do mundo, podemos afirmar que essa medida seria muito positiva no atual contexto das SAF, em que as entidades conseguiram uma nova fonte de investimento, através da captação de investidores, muitos com o capital oriundo do exterior.

Decerto, as modificações introduzidas no regime tributário devem ser debatidas de maneira ampla e exaustiva, pois as contas públicas estão em jogo. Do mesmo modo, uma diminuição da carga tributária, conforme já exposto, pode configurar em um aumento da competitividade da liga em relação aos concorrentes, atraindo novos jogadores, com a qualidade suficiente para aumentar o nível técnico e, consequentemente, as receitas dos clubes, seja por bilheteria, sócio torcedor, direitos de transmissão e patrocinadores, por exemplo. Portanto, valeria a pena diminuir os impostos já que, indiretamente, se ganharia em outros impostos com o aumento dessas receitas pelos clubes/SAF.

Todavia, não podemos ignorar que para haja um investimento forte em futebolistas reconhecidos internacionalmente, favorecidas por uma possível redução dos tributos, os clubes devem estar revestidos de uma musculatura financeira adequada, com a capacidade para poder executar esse tipo de contratação.

Diante disso, todos os passos listados nos artigos anteriores (controle econômico, negociação centralizada e equilíbrio quando da distribuição dos direitos de transmissão, além da internacionalização da marca) são primordiais para a preparação de um terreno longevo e justo para a competição e para as próprias entidades. Em outras palavras, o incentivo fiscal não atuará sozinho.

Crédito imagem: Guarani FC

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[1] Liga parte 1: Controle Econômico, a pedra fundamental – Lei em Campo – última consulta: 08.03.2022

[2] Liga parte 2 – Direitos audiovisuais: centralizar, multiplicar e dividir – Lei em Campo – última consulta: 08.03.2022

[3] Liga parte 3: Internacionalização, a mudança de patamar – Lei em Campo – última consulta: 08.03.2022

[4] Real Decreto 687/2005 – BOE.es – BOE-A-2005-9875 Real Decreto 687/2005, de 10 de junio, por el que se modifica el Reglamento del Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas, aprobado por el Real Decreto 1775/2004, de 30 de julio, para regular el régimen especial de tributación por el Impuesto sobre la Renta de no Residentes, y se eleva el porcentaje de gastos de difícil justificación de los agricultores y ganaderos en estimación directa simplificada. – – última consulta: 08.03.2022

[5] Lei Pelé – L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 08.03.2022

[6] ADC 66 – Supremo Tribunal Federal STF – AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE: ADC 66 DF 0031072-52.2019.1.00.0000 (jusbrasil.com.br) – última consulta: 08.03.2022

[7] Por qué es más barato fichar futbolistas en Italia e Inglaterra que en España (elconfidencial.com) – última consulta: 09.03.2022

[8] Decreto crescita: col rientro dei cervelli un assist ai club di A – La Gazzetta dello Sport – – última consulta: 09.03.2022

[9] Decreto Crescita nel calcio: cosa prevede per il calciomercato | Goal.com – última consulta: 09.03.2022

[10] Por qué es más barato fichar futbolistas en Italia e Inglaterra que en España (elconfidencial.com) – – última consulta: 09.03.2022

[11]https://info.portaldasfinancas.gov.pt/pt/informacao_fiscal/codigos_tributarios/cirs_rep/Pages/irs12a.aspx – última consulta: 09.03.2022

[12] Craques de volta a Portugal a um terço do custo graças ao IRS para ex-residentes (ojogo.pt) – última consulta: 09.03.2022

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