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O combate à discriminação no futebol e o artigo 243-G

Uma recente decisão do Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva reacendeu debates sobre a discriminação no futebol. No dia 18 de novembro, o Pleno deferiu parcialmente o recurso do Brusque no processo que respondia por manifestações discriminatórias por parte de um de seus dirigentes direcionadas ao atleta do Londrina, Celsinho.

Digo que o Pleno “deferiu parcialmente” porque o Pleno não aceitou todos os pedidos do recurso do Brusque. Aliás, não aceitou quase nenhum. Mas, o pedido aceito foi o que instigou toda a controvérsia sobre a qual reside o atual debate sobre a discriminação no futebol.

Mas vamos por partes.

Intitulei esse texto trazendo o artigo 243-G. É que a denúncia que deu início o processo que o Brusque respondeu é sustentada nesse artigo, o 243-G; é por isso que meu foco será nele.

O artigo pune aquele que pratica “ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. ”

É uma baita arma que a Justiça Desportiva tem para usar no combate à discriminação no futebol.

Ocorre que há algumas questões importantes sobre as quais seria muito bem-vinda uma reflexão um pouco mais profunda dos tribunais desportivos quando o assunto é a aplicação do 243G.

  1. A primeira delas é sobre a questão da homofobia. O caput do artigo, ou seja, a “cabeça”, a parte superior do artigo, é o trecho entre aspas que eu utilizei agora a pouco quando falei da infração que o artigo pune.

Note que ali não há nada sobre discriminação em razão da orientação sexual. É que o artigo 243-G foi incluído no Código pela Resolução CNE nº 29 no ano de 2009.

10 anos antes de o Supremo Tribunal Federal (quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 26 e do Mandado de Injunção 4733) ter reconhecido a mora do Congresso Nacional para legislar sobre atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGTB+ e enquadado a homofobia e a transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo – Lei 7.716/1989.

10 anos antes da circular nº 1682 de 25 de julho de 2019 da FIFA que determinou a adoção de procedimentos por todas as Federações Membros e respectivos árbitros no combate a ocorrência de comportamentos discriminatórios durante as partidas de futebol.

10 anos antes de a Procuradoria do STJD, como parte do trabalho preventivo contra casos de homofobia no futebol brasileiro, emitir uma recomendação para que clubes e Federações atuassem de forma preventiva com campanhas educativas e que os árbitros relatassem qualquer tipo de manifestação preconceituosa nas súmulas e documentos oficiais.

É por isso que as infrações que envolvem a prática de atos discriminatórios em razão da orientação sexual, mesmo que não mencione expressamente, são infrações ao artigo 243-G.

Ocorre que em 2019 o que o STF fez foi criar um crime por analogia.

A decisão da Suprema Corte é louvável no mérito, mas peca na forma. Trata-se de clara afronta ao princípio legalidade penal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Quem define tipo penal, portanto, é a lei.

Pode parecer um detalhe, algo que só advogado preocupa; mas não é. O princípio da legalidade é a base de uma sociedade civilizada.

Além disso, para que a norma penal seja aplicada, a conduta do sujeito deve incidir exatamente no que está descrito na lei. Como a criminalização da homofobia ocorreu por meio de decisão do judiciário e não por meio de uma norma debatida e editada pelo legislativo, não há definição legal exata do que seria o ato homofóbico punível.

Esta incerteza também é refletida na aplicação do artigo 243-G para punir atos homofóbicos. Ora, qual seria a definição sobre exatamente qual conduta é considerada homofóbica para que seja punível por afronta ao artigo 243-G, à luz da proteção à integridade da competição, bem jurídico tutelado pela Justiça Desportiva?

Ainda que não tenhamos a definição estritamente legal sobre a conduta punível à luz da analogia à Lei do Racismo, seria benéfico que os tribunais de justiça desportiva, após reflexão e diálogo com a comunidade desportiva, estabelecessem critérios e condutas definidas para a aplicação do artigo 243-G. A medida traria maior relevância, eficácia e justiça no combate à homofobia.

  1. O segundo ponto que merece uma reflexão maior do tribunal em relação ao artigo 243-G é sobre quem seriam as “pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva” a que se refere o § 1º do artigo 243-G.

Essa definição é importante porque o § 1º do artigo 243-G traz uma punição pesada ao clube cujas “pessoas vinculadas” praticam a infração: trata-se da perda de pontos ou da exclusão da competição caso ao campeonato em disputa não se atribua pontos.

O torcedor é considerado “pessoa vinculada” ao clube para fins de incidência do § 1º do artigo 243-G? Ou estaria o legislador se referindo somente à dirigentes, membros da comissão técnica, etc?

Se o torcedor for considerado “pessoa vinculada”, cânticos de torcida podem ser entendidos como discriminatórios e o clube pode perder pontos ou ser excluído da competição.

Some-se isso ao fato apontado no ponto 1: o que seria um cântico homofóbico para fins de § 1º do artigo 243-G e consequente aplicação das pesadas penas?

Parece haver uma insegurança jurídico-desportiva considerável sobre a qual o tribunal poderia se debruçar, debater e esclarecer.

  1. Outro aspecto sobre o qual o tribunal poderia refletir com uma profundidade maior é sobre a aplicação da pena prevista no § 2º do artigo 243-G.

Consta nesse parágrafo que o torcedor que praticou atos discriminatórios, se identificado, ficará “proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias”.

É uma pena pesada, mas de rara aplicação, já que o controle de ingresso não é tão simples.

Ocorre que o torcedor não é jurisdicionado da Justiça Desportiva, ou seja, ao torcedor não se aplicariam diretamente as decisões tomadas pelos tribunais desportivos já que a ele não se aplica o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Mas na incidência da pena prevista no § 2º do artigo 243-G está-se diante de um cenário no qual o torcedor pode ser punido num Tribunal regido por um Código ao qual ele não está submetido, por meio de um processo ao qual ele não tem direito ao contraditório e à ampla defesa.

A aplicação da pena seria flagrantemente inconstitucional.

  1. Finalmente (e longe de ser menos importante), há de se debater sobre a aplicação da pena de perda de pontos, que foi alvo de muitas críticas ao longo dos dias que sucederam o julgamento do Pleno ao qual me referi no início desse texto.

É que o Pleno retirou a pena de perda de pontos aplicada ao Brusque pela Comissão Disciplinar. A aplicação da pena teve sustentação no § 3º do artigo 243-G, que prevê que “quando for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170”.

Bom, se você não tem o artigo 170 do CBJD na sua cabeça, esse trecho do texto não te ajudou muito.

O artigo 170 traz a lista de penas que podem ser aplicadas às infrações disciplinares previstas no código. O inciso V se refere à perda de pontos, o inciso VII se refere à perda de mando de campo e o inciso XI à exclusão do campeonato.

A Comissão Disciplinar aplicou a pena de perda de pontos com base no § 3º do artigo 243-G combinado com o artigo 170, inciso V. Ou seja, a Comissão Disciplinar entendeu que a infração foi considerada de extrema gravidade e, dentre o leque de 3 opções, aplicou a opção de perda de pontos.

Já o Pleno fez quase o mesmo: entendeu que a infração foi considerada de extrema gravidade, mas, também com base no § 3º do artigo 243-G combinado com o artigo 170, optou por uma outra opção do leque: a do inciso VII, a perda de mando de campo.

A decisão foi criticada. O Lei em Campo ouviu especialistas que classificaram como “retrocesso” tal decisão.

Entendo ser uma discussão um pouco mais profunda.

Parece claro que a punição de perda de pontos causa um impacto muito mais significativo do que a de perda de mando de campo. Esse impacto é importante na luta contra atos discriminatórios.

Por outro lado é preciso refletir sobre a aplicação do § 3º do artigo 243-G combinado com o artigo 170 de forma mais ampla.

A perda de pontos deveria ser aplicada a outros processos cuja denúncia é sustentada no artigo 243-G quando o tribunal entender pela gravidade da situação (o que, ao fim e ao cabo seria pra todos, afinal todas as manifestações discriminatórias são graves) e/ou quando praticadas por um número considerável de pessoas (considerando o que falei no ponto 2)?

É benéfico que os tribunais interfiram tanto assim nas competições?

Que tipo de tribunal desportivo nós queremos?

É inegável o papel da Justiça Desportiva no combate à discriminação e o artigo 243-G é ferramenta fundamental nessa luta. Para que seja efetivo, precisa ser aperfeiçoado.

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