O cenário do futebol sofreu constantes mudanças ao longo das últimas décadas. A percepção de que o futebol vai muito além de um mero esporte foi essencial para tanto. Nesse sentido, passou-se a ver os clubes como empresas, torcedores como consumidores, campeonatos como oportunidades de negócio e a modalidade como um terreno rentável para investidores.
Com efeito, a criação de um ambiente seguro para investimentos, que pudesse passar credibilidade e gerar interesse aos jogadores e torcedores, era necessário para alteração do status quo. O modelo da Premier League, adotado no início dos anos 90 por todos os participantes, que se organizaram para o recebimento e incremento dos valores de direitos de transmissão e de patrocínios, se tornaria a principal liga do mundo.
Contudo, o caminho inglês até o sucesso não foi fácil. Nas décadas de 80/90, grandes craques atuavam na Espanha e principalmente na Itália, que tinham os campeonatos mais atrativos do mundo. Foi preciso, no entanto, controlar a violência nos estádios, berço do hooliganismo, o que afastava o público do esporte, afinal, não existe rentabilidade sem público e sem audiência. Começava ali o que seria o atual domínio econômico mundial e também esportivo.
Na semana passada, corroborando com o que o terreno de jogo nos demonstra, saiu o relatório da Deloitte, relativo à temporada de 2020/2021, que foi interrompida pela pandemia. A Deloitte Football Money League 2022[1] é um dos principais estudos sobre as finanças dos clubes mais ricos do futebol mundial. Nesse contexto, antes de adentrar os resultados de cada entidade, é imprescindível desenhar o panorama geral.
Esse período indicou uma recuperação ainda gradual dos clubes diante do cenário de crise financeira ocasionado pela pandemia. Ao todo, foram arrecadados 8,2 bilhões de euros, representando um aumento de 1% em relação ao ano anterior, mas, ao mesmo tempo, longe do ápice histórico da temporada de 2018/19, com 9,274 bilhões. Uma ligeira recuperação que nos traz um alento para o futuro.
Destrinchando esses valores, podemos dividi-los em 3 partes: quantias levantadas através da negociação dos direitos de transmissão, matchday e receitas comerciais. Nesse estudo, foram excluídas as receitas oriundas da venda dos direitos econômicos dos jogadores, o que é bastante usual nesse tipo de avaliação quando se trata das entidades europeias.
Em primeiro lugar, os recursos obtidos através do matchday (tudo aquilo arrecadado durante os dias de partida, seja bilheteria, venda de programa de sócios, artigos do clube, bar, por exemplo) alcançaram o valor de 111 milhões de euros. Foram os menores da série desde o começo da produção do relatório nos anos de 1996/97. Obviamente, isso foi ocasionado pelo fechamento dos estádios durante a crise sanitária.
Os recursos vindos da negociação dos direitos de transmissão chegaram ao valor de 4,5 bilhões de euros, um aumento de 1,4 bilhão em relação ao ano anterior. Sem embargo, não podemos olvidar que esse aumento é artificial, posto que os clubes receberam, de forma atrasada, parte daquilo relativo à temporada de 2019/20, que fora interrompida.
Por seu turno, os ingressos comerciais, ou seja, os valores recebidos com patrocínio, fan tokens, NFTs, entre outros, perfizeram a quantia de 3,5 bilhões de euros, representando uma queda de 6% (222 milhões de euros) se compararmos ao recorde de 2019/20 (€ 3,8 bilhões). A perda não foi tão significativa como muitos haviam previsto anteriormente.
Parte-se agora para a explanação das ligas e dos clubes, em cada caso concreto. A Premier League conta com 5 equipes no top 10, 10 na lista dos 20 times com mais receitas do futebol europeu e 14 entre as 30 equipes mais ricas. O líder, pela primeira vez na série histórica, foi o Manchester City, com 644,9 milhões de euros, representando um aumento de quase 100 milhões em relação ao exercício anterior.
A tendência é a diferença aumentar e os ingleses subirem ainda mais na classificação fornecida pela Deloitte nos próximos anos, em virtude de o acordo de venda internacional dos direitos de transmissão ter atingido um valor nunca visto antes. Pela primeira vez, a venda internacional superará a venda interna, chegando uma quantia anual de 2,1 bilhões de euros, entre as temporadas de 2022/25, o que equivale a 30% mais sobre o contrato anterior. Tudo isso será repartido de maneira igual entre todos os membros da Liga.
A título de curiosidade, muito abaixo, vem Laliga, que arrecadou anualmente 897 milhões no último contrato (2019/2022). As outras ligas perceberam uma quantidade irrisória em comparação com a Premier League: Bundesliga (2021/24) 360 milhões, Serie A (2021/2024) 196 milhões e a Ligue 1(2018/24) 80 milhões, quase 25 vezes menos que os ingleses por ano.[2]
Além disso, o sucesso esportivo no âmbito europeu pode provocar uma disparidade econômica ainda maior em favor dos clubes ingleses em função da premiação, podendo crescer ao longo prazo devido a forma da sua distribuição, que leva, por exemplo, um coeficiente de rendimento esportivo das últimas temporadas como um dos critérios.
A propósito, as últimas 3 finais de Champions League e Europa League, as duas principais competições europeias de clubes, contaram 7 vezes com a participação de ingleses (Manchester City, Chelsea duas vezes, Arsenal, Manchester United, Liverpool e Tottenham), com 3 títulos ao todo. Na atual Champions League, são 3 ingleses entre os 8 finalistas, todos considerados favoritos para ganhar o troféu.
Outro fator que pode gerar bastante preocupação, pois a empresa ainda existe e o caso está em andamento no Tribunal Europeu, é a probabilidade, ainda que reduzida, da reativação do projeto da Superliga Europeia de Clubes, detalhada na época dos fatos, em meados de 2021, por este autor aqui no Lei em Campo[3].
Sob esse viés, 11 das 12 equipes que participaram inicialmente do planejamento do torneio, estão dentro das primeiras 14 entidades com maior arrecadação no estudo da Deloitte, com a exceção de Bayern de Munique (3º), PSG (5º) e Borussia Dortmund (12º). O único ausente dessa lista é o Milan.
É válido mencionar que, a princípio, o objetivo da criação dessa competição era alavancar o ganho desses clubes, que estavam pressionados pela necessidade gerada pela crise econômica, um dos efeitos da pandemia. Essa necessidade e vontade de se manter no topo ainda existem e, apesar de ter sido rechaçada pela maioria do mundo do esporte, não podemos descartar outras movimentações ou intervenções junto à UEFA nessa direção. Tudo isso, sobretudo, para a manutenção da atual posição dominante desses clubes, nem que seja por um novo formato na distribuição dos prêmios ou na própria competição, como já foi aprovado.
Por outro lado, entre o top 10, os excluídos da Superliga, PSG e Bayer, se destacam em virtude da diferente composição das receitas. Enquanto 8 dos 10 clubes possuem 50% ou mais das receitas totais oriundas da venda dos direitos de transmissão, essas duas entidades possuem, respectivamente, 36% e 42%. Ambas as equipes ainda pagam o preço por não terem uma competição nacional mais atrativa no plano internacional.
Projetando os próximos anos, a expectativa é que no exercício de 2022/23 se possa atingir, aproximadamente, a quantidade de 10 bilhões de euros, em virtude dos novos acordos de venda dos direitos de transmissão nacionais e internacionais, bem como a volta das receitas do matchday, que devem incrementar os ganhos para todos.
Comparando com o cenário brasileiro, recentemente, ainda que muito distante da realidade da grande maioria dos clubes no país, foi divulgado o balanço do Flamengo, que contou com uma arrecadação bruta de 1,081 bilhão de reais (213,21 milhões de euros)[4] em 2021. Essa cifra bateu o recorde obtido no ano de 2019, em que se consagrou vencedor da Libertadores e do Brasileiro, de 950 milhões.[5] Esses valores lhe dariam a posição 20º clube na lista da Deloitte.
Ocorre que, todavia, diferentemente dos europeus, esses números contêm os recursos obtidos na venda dos direitos econômicos de jogadores e do recebimento de mecanismo de solidariedade, que perfizeram o total 278,4 milhões de reais (aproximadamente 55 milhões de euros)[6].
Outro clube que apresentou quantias consideráveis foi o Palmeiras, com faturamento de 910 milhões de reais (cerca de 180 milhões de euros), o que lhe garantiria a 26ª posição no ranking. Da mesma forma, houve a inclusão de 34 milhões de reais com a venda dos direitos econômicos dos jogadores. [7][8]
Ademais, ressalte-se que esses valores foram inflados devido ao pagamento atrasado dos direitos de transmissão relativos à temporada de 2020, que foram recebidos e contabilizados no exercício de 2021, assim como ocorreu na Europa. Nessa temporada, a situação já estará normalizada.
Conforme o exposto, a expectativa para os próximos anos é de domínio cada vez mais crescente da Premier League no cenário internacional, com a ampla supremacia econômica e esportiva das equipes inglesas no cenário europeu, em razão do arcabouço econômico diferenciado, que parece não decrescer, mesmo diante das dificuldades.
A rivalidade com Laliga, embora, por ora, no campo esportivo ainda esteja acirrada, ainda é um ponto de interrogação nos próximos anos, quando se fala da parte econômica. Frise-se que, segundo o acordo de desenvolvimento Laliga Impulso já explicado aqui anteriormente[9], ela comprometeu as receitas futuras da maioria dos clubes para o fundo CVC Capital Partners, o que tomará cerca de 10% anuais dos recursos da venda dos direitos de transmissão como contraprestação do investimento inicial.
Para o Brasil, podemos traçar um prognóstico muito otimista, uma vez que aqui ainda temos pouquíssima profissionalização e, principalmente, interesse externo, seja através de investidores, como também patrocinadores, público em geral e uma venda internacional de direitos de transmissão quase irrisória.
Nessa esteira, a criação da Lei das SAF e o projeto de Liga são altamente recomendáveis para que cheguemos ao novo ciclo da indústria do esporte nacional, que está muito atrasada em relação ao resto do mundo. Temos tudo para ser competitivos também no aspecto internacional, com os clubes brasileiros também presentes nessa lista tão importante, elaborada pela Deloitte.
É a nova era e a nova ordem do futebol mundial sendo construídas em tempo real!
Crédito imagem: Getty Images
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[1]Deloitte Football Money League 2022 – deloitte-uk-dfml22.pdf – última consulta: 04.04.2022
[2] Fonte Football Benchmark – Football Benchmark: publicações | LinkedIn – última consulta: 04.04.2022
[3] Superliga Europeia: Uma avalanche de dúvidas e o Direito em sua essência – Lei em Campo – última consulta: 04.04.2022
[4] Cotação do euro do dia 05.04.2022 = R$5,07 – última consulta: 04.04.2022
[5] Balanço do Flamengo tem receita recorde de mais de R$ 1 bilhão em 2021 (uol.com.br) – última consulta: 04.04.2022
[6] Cotação do euro do dia 05.04.2022 = R$5,07 – última consulta: 04.04.2022
[7]Balanço do Palmeiras – Balancete-e-demonstrativo-financeiro-SEP-Jan-2022.pdf (sep-bucket-prod.s3.amazonaws.com) – – última consulta: 04.04.2022
[8] Palmeiras registra receita e superavit recordes em 2021, mas não vive época de extravagâncias | negócios do esporte | ge (globo.com) – – última consulta: 04.04.2022
[9] Acordo Laliga – CVC: solução ou sacrifício? – Lei em Campo – última consulta: 04.04.2022