Em texto anterior do Lei em Campo, abordamos a polêmica em torno da recusa do armador Kyrie Irvingem tomar a vacina contra a COVID-19. Em razão das exigências impostas pela Prefeitura de Nova Iorque, essa conduta fez com que o atleta, que (ainda) é jogador do Brooklyn Nets, não pudesse, durante praticamente toda a temporada regular de 2021-2022 da NBA, disputar as partidas que sua equipe fez como mandante.
Outras cidades, como San Francisco e Toronto, no Canadá, também haviam estabelecido regras dessanatureza e, entre idas e vindas, Irving, que perdeu muito dinheiro no processo (cerca de US$ 380.000,00 por partida), disputou apenas jogos fora de casa ao longo de 3 meses, tendo atuado, antes dos playoffs, em só 29 jogos dos 82 possíveis.
Perto do início da atual temporada da NBA, Kyrie Irving declarou, no Midia Day dos Nets, realizado no dia 26/09/2022, que a opção por não se vacinar havia lhe custado ainda mais dinheiro: “Desisti de 4anos e cento e poucos milhões de dólares ao decidir não me vacinar. Essa foi minha escolha”. Nessa fala, ele fazia referência a uma suposta extensão de contrato que a franquia do Brooklyn teria condicionado à comprovação da vacinação por parte do jogador.
Sem acordo para a extensão, o atleta exerceu a opção contratual que lhe garantia um último ano de vínculo com o time nova-iorquino, no valor de US$37 milhões pela temporada de 2022-2023. Ao anunciar que havia exercido a opção, Irving disse o seguinte: “Pessoas normais mantêm o mundo funcionando, mas aqueles que se atrevem a ser diferentes nos levam ao amanhã. Tomei minha decisão de optar pelo último ano do contrato. Então, vejo vocês no outono”. Um tanto quanto confuso, não?
De fato, as coisas nunca são muito claras em se tratando de Kyrie Irving. A crença do atleta de que a Terra seria plana ganhou notoriedade em 2017, quando, em entrevista ao podcast Road Trippin’, dos ex-companheiros de Cleveland Cavaliers Richard Jefferson e Channing Five, além de afirmar que Bob Marley fora assassinado pela CIA “por tentar unir o povo através do amor e da verdade”, ele disse coisas como:
“Está bem na nossa cara, eles mentem para nós. Me ensinaram que a Terra é redonda. Mas se você realmente parar para pensar sobre o assunto…a forma como nos movemos, como viajamos…você realmente acredita que giramos em torno do Sol e todos os planetas alinhados, girando em datas específicas? Tudo o que eles enviam, ou querem dizer que estão enviando, não volta. Não há nenhuma informação concreta, exceto a informação que eles estão nos dando. Eles estão colocando você especialmente na direção do que deve ou não acreditar. A verdade está bem aí, você só precisa ir em busca dela. Eu acho que as pessoas deveriam fazer suas próprias pesquisas. Aí, elas podem apoiar a minha crença ou jogá-la na água. Mas acho que é interessante para as pessoas descobrirem por conta própria. Eu vi muitas coisas que meu sistema educacional disse que eram reais e se revelaram completamente falsas, então não me importo de ir contra a corrente”.
Embora tenha, posteriormente, recuado um pouco em suas declarações, a pecha de terraplanista ficou impregnada em Kyrie Irving, também acusado de haver “contaminado” o ambiente no Boston Celtics por sua incapacidade de liderança.
A confusão mais recente envolvendo o controverso jogador começou no dia 29/10/2022, data em que, poucos meses depois de o New York Times apontar um crescimento de ataques contra judeus na “capital do mundo”, ele postou, no Twitter, um link para o filme Hebrews to Negroes: Wake Up Black America, obra de teor antissemita.
Por haver falhado em esclarecer o caso, com respostas evasivas aos questionamentos feitos por jornalistas, e por não haver se desculpado de forma direta na sequência, Kyrie Irving foi suspenso pelo Brooklyn Nets.
Após fortes reações da comunidade judaica, Irving foi citado como coautor de uma nota conjuntaatribuída aos Nets e à National Basketball Players Association (NBPA), da qual ele é um dos vice-presidentes, aliás.
Eis o teor da nota, que, curiosamente, não menciona nominalmente o armador:
“O antissemitismo não tem lugar em nossa sociedade. A NBPA está focada em criar um ambiente onde todos sejam aceitos. Estamos comprometidos em ajudar os jogadores a entender completamente que certas palavras podem levar à disseminação de ideologias odiosas. Continuaremos a trabalhar para identificar e combater todo discurso de ódio onde quer que ele surja”.
Antes de Kyrie Irving, Meyers Leonard, então no Miami Heat, também foi alvo de uma revolta popular ao utilizar um insulto antissemita durante uma transmissão feita na Twitch. Suspenso por sua equipe e multado pela NBA em US$ 50.000,00, Meyers nunca mais voltou a atuar na liga.
Já Irving, duramente criticado pelo proprietário do Brooklyn Nets, Joe Tsai, finalmente tentou se desculpar na última quinta-feira, dia 03/11/2022, por meio de sua conta no Instagram:
“Para todas as famílias e comunidades judaicas que estão feridas e afetadas pelo meu post, lamento profundamente ter causado dor a vocês e peço desculpas. Inicialmente, reagi por emoção ao ser injustamente rotulado como antissemita, em vez de me concentrar no processo de cura de meus irmãos e irmãs judeus que foram feridos pelas observações odiosas feitas no documentário. Eu não tinha intenção de desrespeitar qualquer história cultural judaica em relação ao Holocausto ou perpetuar qualquer ódio. Estou aprendendo com esse evento infeliz e espero que possamos encontrar entendimento entre todos nós”.
O estrago, porém, já estava feito.
Além da suspensão imposta pelos Nets e do incerto retorno à equipe, Irving viu a Nike, na sexta-feira, dia 04/11/2022, anunciar a suspensão do contrato com o jogador e o cancelamento do próximo modelo da linha de tênis que leva o nome dele:
“Na Nike, acreditamos que não há lugar para discursos de ódio e condenamos qualquer forma de antissemitismo. Por isso, tomamos a decisão de suspender nosso relacionamento com Kyrie Irving imediatamente e não lançaremos mais o Kyrie 8. Estamos profundamente tristes e desapontados com a situação e seu impacto”.
As críticas também recaíram sobre a NBA, que não teria se posicionado de forma mais incisiva sobre o episódio. Em declaração tida como amena, o comissário Adam Silver classificou como “imprudente” a decisão do atleta de postar um linkpara “obra” de conteúdo “antissemita profundamente ofensivo”, dizendo-se “desapontado [pelo fato de Irving] não haver oferecido um pedido de desculpas incondicional e, mais especificamente, por não haver denunciado o conteúdo vil e nocivo contido no filme”.
As apurações mais recentes dão conta de que estas foram as condições impostas pelo Brooklyn Nets para que Kyrie Irving retorne à equipe: (i) pedir desculpas e condenar o filme; (ii) doar US$ 500.000,00 para causas antiódio; (iii) passar por uma espécie de “treinamento de sensibilidade”; (iv) passar por uma espécie de “treinamento antissemita”; (v) reunir-se com líderes judeus; (vi) reunir-se com Joe Tsai para demonstrar efetivo entendimento sobre a questão.
Os Estados Unidos, como diz o hino norte-americano, são a “terra dos livres”, mas toda liberdade, seja a liberdade de expressão, seja a liberdade manifestada de outras formas, possui limites, notadamente quando confrontada com outro valor essencial para a vida em sociedade: o respeito pela dignidade dos demais indivíduos, que o Direito traduziu no chamado princípio da dignidade da pessoa humana.
Para efeito de comparação, o antissemitismo é considerado crime de racismo no Brasil, sendo imprescritível e inafiançável, nos termos do que foi decidido no célebre “Caso Ellwanger” (denunciado criminalmente por seus livros em 1992, Siegfried Ellwanger foi condenado em 1996 e teve um habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal em 2003).
Na era das redes sociais, os ídolos do esporte são, cada vez mais, formadores de opinião que precisam ter consciência da repercussão e das consequências que seus posicionamentos políticos e ideológicos geram ou podem gerar.
Além dessa consciência, é preciso que eles e outras figuras públicas aceitem que algum tipo de responsabilização é inevitável diante de certas atitudes, mesmo que elas não decorram de má-fé e que sejam atribuídas somente a alguma “imprudência”, para ficar na expressão utilizada por Adam Silver.
Evidentemente, deve ser dado aos atletas, como a qualquer cidadão, o direito de se manifestar segundo suas crenças. No entanto, esse direito não é um “salvo-conduto” absoluto para a prática de comportamentos que, do ponto de vista humanitário, são injustificáveis diante do sofrimento que causam a certas pessoas ou comunidades.
O Holocausto é uma das maiores vergonhas da humanidade e qualquer mínima demonstração de antissemitismo deve, sim, ser duramente combatida. O tema é altamente sensível e, em relação a ele, não pode haver a obscuridade e a ambiguidade típicas de Kyrie Irving.
Não se trata, no caso, da “patrulha do politicamente correto” ou de algum excesso praticado em virtude do viés abertamente “progressista” que a NBA abraça.
Trata-se de chamar à responsabilidade alguém que divulgou, para milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo, um material que propaga ideias amplamente consideradas como criminosas.
Kyrie Irving está quase sempre envolvido com coisas estranhas. E parece, muitas vezes, viver em um “mundo invertido”.
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