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O papel central das associações dos atletas nas ligas esportivas norte-americanas

A rodada disputada no segundo final de semana de julho de 2022 ficou marcada, em todo o Brasil, por protestos dos jogadores de futebol contra alguns pontos do Projeto de Lei nº 1153/2019, que estabelece a chamada Lei Geral do Esporte. Em campo, com a mão na boca, em gesto que representava uma mordaça, e em postagens padronizadas nas redes sociais, os atletas se queixavam (e continuam se queixando) de que o texto legal, da forma como redigido, suprime direitos trabalhistas.

Os protestos foram organizados por um movimento intitulado União dos Atletas de Futebol ‘Séries ABCD’, que assim se posicionou: “Na Câmara, somente os clubes foram ouvidos (…). Mas não iremos nos calar, nossa classe está unida e juntos teremos voz. E no Senado precisamos ser ouvidos. E vamos lutar por isso. Futebol é a maior paixão nacional, e nós atletas também somos as estrelas do espetáculo”.

Em 2013, o Bom Senso F.C. iniciou uma mobilização que culminou com mais de trezentas assinaturas de atletas dos principais clubes brasileiros em um manifesto que continha alguns pontos básicos a serem discutidos com a CBF (calendário, férias, período adequado de pré-temporada, fair-play financeiro e participação dos jogadores nos conselhos técnicos das entidades responsáveis pela gestão do futebol nacional). Embora “esvaziado” e oficialmente encerrado em 2016, o movimento é tido por alguns como o primeiro ato de maior relevância em que propostas foram levadas sem intermediários a quem comanda o esporte no Brasil.

Apesar da existência de entidades sindicais que, formalmente, falam pelos atletas, a impressão geral é de que a classe dos jogadores de futebol no país se ressente de representatividade e de uma real força política.

Sem entrar no mérito dos porquês dessa realidade, é útil olharmos para fora e examinarmos como se comportam as associações de atletas nos Estados Unidos. O ponto não é exatamente fazermos comparações, pois os contextos sociais, econômicos e legais são muito distintos. No entanto, podemos extrair algumas lições que, quem sabe, possam servir de inspiração em terras brasileiras.

O caso mais ilustrativo para demonstrar o papel central das associações de atletas nas ligas esportivas norte-americanas é o da NBA.

Em 30 de outubro de 1954, a liga assinara o seu primeiro contrato com a rede de televisão NBC. Naquele mesmo ano, fora fundada a National Basketball Players Association (NBPA), sobre a qual já tratamos em outras oportunidades, inclusive ao abordarmos o [excessivo?] poder dos atletas na relação com as franquias. Mas, se a NBPA possui, hoje, inegável prestígio e uma força negocial quase irresistível, as coisas nem sempre foram assim. Um episódio bem interessante nos ajuda a contar e a entender essa história

Quando o contrato original da NBA com a NBC expirou ao final da temporada de 1962 e as partes decidiram prorrogar o vínculo por mais dois anos, as atenções da liga já estavam direcionadas para outra emissora, a ABC, líder na transmissão de eventos esportivos no mercado norte-americano.

Querendo impressionar a ABC, a NBA caprichara nos preparativos para o All-Star Game de 1964. Contudo, poucas horas antes do evento, as principais estrelas da liga, por influência da NBPA, se reuniram nos vestiários e comunicaram que não entrariam em quadra se a NBA não concordasse com algumas reivindicações dos atletas, cujas condições de trabalho, naquele momento, eram precárias. Acuados e temendo que um possível boicote frustrasse os planos de assinar com a ABC, os dirigentes cederam e concordaram com as exigências quando faltavam cerca de 15 minutos para o início da partida[1].

Apesar dessa importante vitória, a NBPA continuou sendo, no máximo, tolerada pela NBA. Até que, em janeiro de 1967, liderada por seu presidente, o armador Oscar Robertson, e pelo advogado Larry Fleisher, a entidade apresentou à liga uma lista com seis exigências inegociáveis por parte dos jogadores, as quais, se não atendidas em um prazo determinado, possivelmente resultariam em uma greve.

Oscar Robertson, já consagrado naquele tempo, era o presidente da NBPA há cerca de um ano e meio e ficara conhecido por ser, além de um talentoso e completo jogador, alguém bastante combativo. Em paralelo, a presença de Larry Fleisher em reuniões era descrita pelos mandatários da liga como “perturbadora”.

Assim, com duas figuras de forte personalidade em seu comando, a NBPA passou a questionar incisivamente a NBA sobre a contradição representada pelas inúmeras carências na maneira como os atletas eram tratados, de um lado, e, de outro lado, pelos planos de expansão da liga, que possuía um contrato de direitos de transmissão estável, estava experimentando um crescimento significativo na venda de ingressos e tinha visto uma de suas franquias, o Boston Celtics, ser vendida recentemente por um valor recorde. Em outras palavras, não havia razão para que a situação dos jogadores permanecesse a mesma.

As demandas da NBPA não eram exatamente uma novidade. Todavia, até aquele momento, elas tinham sido recebidas por “ouvidos surdos” na NBA. A primeira das seis exigências era o fim da cláusula de reserva. A segunda era a melhoria dos planos de pensão dos jogadores, financiada pelas receitas de televisão. A terceira era a criação da National Basketball Players Properties Inc., semelhante ao programa de licenciamento coletivo criado por profissionais do beisebol meses depois, destinado à exploração comercial da imagem dos atletas. A quarta reinvindicação era a fundação de um comitê que funcionaria como fórum para discussões com atletas de outras modalidades, com o objetivo de fortalecer a defesa dos direitos dos jogadores profissionais. A quinta exigência era a redução do calendário da temporada regular e a última demanda era que os atletas fossem remunerados pela disputa de partidas amistosas, cuja quantidade deveria ser reduzida (algumas equipes chegavam a fazer até quinze jogos de pré-temporada).

Em 1º de março de 1967, os atletas anunciaram que, a menos que um acordo fosse alcançado, eles não disputariam os playoffs, período da temporada em que a liga mais ganharia dinheiro e, logo, o pior momento possível para a eclosão de uma greve. Por fim, as reinvindicações dos jogadores foram atendidas.

O plano com as seis exigências apresentadas pela NBPA é considerado a primeira declaração efetiva de direitos e objetivos de atletas profissionais na história do esporte moderno e, por bastante tempo, representou a vanguarda em termos de relações trabalhistas no universo esportivo. Não é exagero dizer que, até ali, os jogadores e as entidades que os representavam não eram levados a sério. Ao longo das décadas seguintes, todos os objetivos estabelecidos pela NBPA foram alcançados, exceto um: a temporada da NBA continua tendo oitenta e dois jogos[2].

Se o esporte nos Estados Unidos nunca gerou tanto dinheiro quanto na atualidade, isso só foi possível pelo fato de as ligas profissionais e as associações de atletas terem aprendido, a duras penas, às vezes após lockouts e greves, a trabalhar em conjunto para construir acordos coletivos de trabalho eficientes, que, mesmo não estando imunes a críticas e necessitando de revisões periódicas para responder às mudanças de cenário, garantem patamares suficientes de segurança jurídica a todos os envolvidos.

A associação de atletas da Major League Baseball (MLB) é a MLBPA, que se destaca na representação dos jogadores em questões comerciais e de licenciamento, um dos pontos fortes da liga, que fatura aproximadamente US$ 5,5 bilhões em produtos licenciados.

A Major League Soccer Players Association (MLSPA) tem como mote “capacitar os jogadores, estabelecendo uma comunidade de apoio e uma voz unificada que impacta positivamente as vidas de nossos membros passados, atuais e futuros“.

Já a National Football League Players Association (NFLPA), que existe desde 1956, foca bastante nos temas pertinentes à segurança dos atletas, tendo sido essencial, por exemplo, nas recentes pesquisas e adoção de medidas relativas à ocorrência de concussões (e suas severas consequências) em partidas de futebol americano.

A National Hockey League Players’ Association (NHLPA), além de participar das negociações salariais de praxe, é fundamental na representação dos atletas perante aquela que é tida como a liga esportiva profissional norte-americana menos bem administrada.

Por último, mas não menos importante, quem merece bastante destaque é a Women’s National Basketball Players Association (WNBPA). Fundada em 1998 e primeira entidade de representação de atletas do sexo feminino, a WNBPA pavimentou o caminho para que os atletas da NBA se manifestassem sobre questões sociais e raciais na “bolha” organizada pela liga nas instalações do Walt Disney World em Orlando, no ano de 2020. Sim, não é apenas às discussões salariais que as associações de atletas se dedicam nos Estados Unidos.

Na era da Economia 4.0, as oportunidades de ganhos financeiros para aqueles que exercem seus ofícios nas quadras e nos campos são maiores do que nunca, assim como são crescentes o volume e a qualidade dos estudos científicos destinados a orientar a atividade esportiva, especialmente na seara do alto rendimento. Entidades de representação coletiva podem e devem ter protagonismo junto às ligas na construção de soluções que, sob todos os prismas, melhorem a vida dos praticantes do jogo, inclusive do ponto de vista da expressão identitária.

Vive-se um paradoxo: com as redes sociais, os atletas têm enorme facilidade para se expressar, mas também se vêm fragilizados pela assombrosa exposição à qual estão submetidos. Essa exposição, aliás, evidencia a heterogeneidade de jogadores e jogadoras do ponto de vista intelectual e social, de modo que a presença de uma entidade que equalize as muitas vozes dissonantes e as canalize em prol de interesses comuns passa a ser primordial.

É impossível afirmar se as associações de atletas terão um dia, no Brasil, o papel central que possuem nas ligas esportivas norte-americanas. Caso isso ocorra, que seja para tornar mais fortes aqueles que nos emocionam com gols, pontos, cestas e jardas.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Para mais detalhes, recomendamos a leitura do ótimo Era de Gigantes, livro em português sobre a história do basquete profissional norte-americano no século XX, escrito por Vitor Camargo (https://www.amazon.com.br/Era-Gigantes-Vitor-Luis-Camargo/dp/8557003560).

[2] Uma obra bem completa sobre o tema é The Cap: How Larry Fleisher and David Stern Built the Modern NBA, de Joshua Mendelsohn (https://www.amazon.com/Cap-Larry-Fleisher-David-Modern/dp/1496218787).

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