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O paradoxo da NFL

Da arquibancada para dentro, o jogo da NFL no Brasil foi um grande sucesso. As dezenas de milhares de fãs do futebol americano que tiveram a sorte de comparecer ao São Paulo Game se juntaram em uma verdadeira catarse coletiva. Foi verdade e sentiremos saudade!

Os próprios atletas e membros das comissões técnicas do Green Bay Packers e do Philadelphia Eagles destacaram o excelente ambiente criado na Neo Química Arena, comparando-o à atmosfera de uma partida de playoffs.

Ficaram em segundo plano até mesmo a desinformação de alguns jogadores sobre a realidade socioeconômica brasileira e as críticas ao gramado, um tanto quanto injustas quando se avalia a (má) qualidade dos “terrenos” em certos estádios nos Estados Unidos.

A logística funcionou bem para quem escolheu ir e voltar de metrô. E foi especialmente emocionante, tanto no trajeto quanto no entorno da arena, acompanhar o desfile de camisas de praticamente todas as equipes da NFL.

Para quem esteve presente ou para quem assistiu pela televisão, o que se viu foi uma prova de amor do público brasileiro por um esporte e por uma liga que, pouco a pouco, vêm ampliando o seu alcance por aqui.

Fora de campo, o único ponto negativo foi a dificuldade para comprar alimentos e bebidas, com muita lentidão e filas imensas. Nesse aspecto, o acompanhamento do Procon-SP, iniciado dias antes do jogo, não foi suficiente: o nível de atendimento ficou abaixo da média de eventos semelhantes realizados no país.

A demora para a definição quanto à venda ou não de cerveja, em virtude da proibição contida na Lei Estadual nº 9.470/1996, pode ter contribuído para isso. Ocorre que a AB InBev, sobretudo por meio da marca Budweiser, é uma das principais parceiras da NFL. Em bom português, era óbvio que essa liberação viria mais cedo ou mais tarde. Veio mais tarde. Assim, o consumidor talvez tenha sido prejudicado apenas por conta de um mise en scène das autoridades responsáveis.

De toda forma, a estimativa é de que mais de R$ 300 milhões tenham sido movimentados na economia paulista em função da partida. Para a NFL e para todos os envolvidos, o gosto foi de “quero mais”.

Passada a euforia do São Paulo Game e do início da temporada 2024, voltou à tona um tema que gera desconforto à liga: as concussões.

Em outubro de 2022, publicamos na coluna um texto intitulado “Concussão: a maior dor de cabeça da história da NFL”. Pois bem, a dor de cabeça continua…

Os episódios que nos motivaram a abordar o tema naquela ocasião foram as concussões sofridas pelo quarterback Tua Tagovailoa, do Miami Dolphins, em jogos consecutivos contra o Buffalo Bills e contra o Cincinnati Bengals.

Na partida contra o Bengals, Tua, que sequer deveria estar em campo, bateu a cabeça no gramado e ali permaneceu, estirado, por intermináveis doze minutos. Durante esse tempo, o mundo assistiu, aflito, ao replay que mostrava os braços do atleta rígidos, com os dedos das mãos curvados, caracterizando o que a Medicina chama de “resposta de esgrima”, uma reação neurológica involuntária decorrente de uma concussão severa.

Uma investigação interna constatou diversos erros de procedimento e culminou com a demissão do médico que, após a primeira concussão de Tua, avaliara o jogador e permitira que ele retornasse ao jogo contra o Bills (e, consequentemente, que pudesse ser escalado contra o Bengals poucos dias depois).

As chocantes imagens de uma “resposta de esgrima” voltaram às nossas retinas no Thursday Night Football do último dia 12/09. De novo com Tua Tagovailoa. E em um lance que, quis o destino, envolveu Damar Hamlin.

Você se lembra de Damar Hamlin?

Em janeiro de 2023, Hamlin, defensor do Buffalo Bills, também foi personagem da coluna por um motivo dramático, nomeado como “vitória no jogo da vida”: após choque com um adversário, o jogador sofreu uma parada cardíaca, revertida pelos primeiros socorros com o uso de um desfibrilador.

Hamlin sofrera uma commotio cordis, que ocorre quando um impacto súbito e contundente no tórax gera uma perturbação elétrica que faz com que o coração deixe de bombear sangue para o cérebro e para o resto do corpo. Em outras palavras, uma condição que pode causar morte súbita em razão de uma arritmia cardíaca.

Felizmente, Hamlin, ressuscitado ao vivo, sobreviveu para contar a história e retomar a carreira.

No caso mais recente, foi justamente contra o peito e o braço de Damar Hamlin que Tua Tagovailoa se chocou de cabeça. Ao cair, a nuca do quarterback bateu no chão.

Braço direito levantado de forma rígida e involuntária. Dedos retorcidos. Sinais reveladores de um trauma cerebral. “Resposta de esgrima”. De novo.

Desde então, pairam dúvidas acerca do futuro de Tua Tagovailoa, que assinou com o Miami Dolphins, no final de julho, uma extensão contratual de quatro anos, no valor de US$ 212,4 milhões.

De tal quantia, US$ 167 milhões são garantidos, ou seja, o atleta receberia independentemente de qualquer lesão. Em 2024, Tua já embolsou US$ 43 milhões desse montante.

Se for clinicamente liberado para retornar ao futebol americano, mas optar por se aposentar, o atleta perderá o restante do dinheiro garantido (US$ 124 milhões), a não ser que a franquia de Miami esteja disposta a celebrar um acordo com ele.

Se for forçado pelos médicos da NFL a se aposentar, Tua terá direito ao total garantido por contrato.

De um lado, uma carreira promissora e super lucrativa de um talentoso atleta de 26 anos. De outro lado, o risco de não ter uma vida (saudável) para usufruir dos resultados de seu trabalho.

Fontes apontam que Tua Tagovailoa já tomou a decisão e que não tem planos de se aposentar. Porém, diante do clamor popular e de declarações incisivas de treinadores e ex-jogadores que defendem a aposentadoria do atleta, é razoável imaginar que a própria NFL, considerando o risco de algo pior no futuro, poderia preferir esse caminho

No mês de agosto, em entrevista concedida ao programa The Dan Le Batard Show, Tua admitiu que considerou a aposentadoria antes da temporada passada, sobretudo a pedido de sua mãe. Após optar por continuar a jogar, ele passou a intertemporada focado em aumentar a própria massa muscular e em aprender a como cair no chão sem bater a cabeça. Apesar de um 2023 produtivo e sem contusões, a preparação não foi suficiente desta vez.

O vigente protocolo de concussões da NFL prevê cinco etapas. Após repouso e recuperação (1ª etapa), o jogador precisa estar livre de sintomas e apresentar exame neurológico normal (2ª etapa). Na sequência, exercícios aeróbicos leves são liberados (3ª etapa), até que possam ser feitos exercícios aeróbicos contínuos e alguns treinamentos de força, sem contato (4ª etapa). Por fim, vem a liberação médica, por parte de um profissional da equipe do atleta e de um neurologista independente (5ª etapa).

Ouvido após o jogo em que Tua Tagovailoa sofreu a mais recente concussão, Damar Hamlin declarou:

É um trauma. Sempre estará lá. Posso não ser afetado por isso por causa do trabalho que fiz. Passei por terapia de trauma. Tenho uma psicóloga com quem converso. Isso me permitiu levar minha mente adiante, levar meu processo adiante”.

Do ponto de vista psicológico, Tua tem a chance de conseguir o mesmo que Hamlin conseguiu: jogar sem medo. Mas vale a pena?

Hoje não há mais dúvidas de que é enorme a incidência da encefalopatia traumática crônica (a sigla em inglês é CTE) em atletas de futebol americano. Trata-se de uma doença degenerativa do cérebro que pode ocorrer após traumas cranianos repetitivos, acarretando problemas de memória, alterações comportamentais, dificuldades de concentração, depressão e sintomas semelhantes aos da demência.

No caso de Tua, além da propensão a desenvolver essa doença, uma nova concussão poderia gerar sequelas neurológicas irreversíveis. Na hipótese mais extrema, a repetição da lesão poderia ser fatal.

Comparados àqueles que nunca sofreram uma concussão, esportistas que já sofreram tal trauma têm uma probabilidade de duas a quatro vezes maior de reincidência. Além disso, mesmo um impacto mais fraco do que aquele que causou a primeira concussão tende a ser suficiente para causar os sintomas pós-concussionais.

O risco de Tua Tagovailoa, portanto, é aumentado. E muito.

Em 1994, a NFL criou o Comitê de Lesões Cerebrais Traumáticas Leves, que, por muitos anos, foi acusado de minimizar os impactos que as concussões poderiam causar entre os praticantes do esporte.

No ano de 2009, um Comitê Judiciário da Câmara convocou o comissário Roger Goodell e DeMaurice Smith, diretor executivo da NFLPA (associação dos atletas), para testemunharem sobre a questão. Ameaçada, a liga aprovou novas diretrizes para lidar com o tema.

Muita coisa aconteceu desde então, como explica um trecho do livro Playmakers: How the NFL Really Works (And Doesn’t), do jornalista Mike Florio:

A partir de 2009, enfim, a liga percebeu que a longevidade de seu produto exigia mudanças significativas na maneira como todos tratam e consideram os traumatismos cranianos.

Sim, a NFL começou a levar as concussões mais a sério não apenas por causa da pressão real do Congresso. A liga temia, justificadamente, assumir, por décadas, uma enorme responsabilidade legal se ex-jogadores começassem a alegar que ela teria falhado em avisá-los adequadamente sobre os riscos de golpes repetitivos na cabeça. E que ela teria falhado em protegê-los razoavelmente desse tipo de lesão. Os processos, de fato, vieram. Por que não?

O desafio dos advogados era provar que a NFL tinha responsabilidade por quaisquer problemas cognitivos desenvolvidos por um jogador de futebol americano anos após ele ter encerrado a carreira. Mas o litígio foi resolvido muito antes que o sistema judicial tivesse a oportunidade de solucionar as várias questões que a liga poderia apresentar para se defender das ações movidas por ex-jogadores. Em relação a muitos destes, poderia ser invocada a prescrição. Em relação a outros, poderia ser alegada a impossibilidade de provar que suas lesões decorreram da prática do futebol americano profissional, e não de quando atuaram na faculdade ou no ensino médio. Em relação a praticamente todos, por fim, poderia ser sustentado que o acordo coletivo de trabalho entre NFL e NFLPA impede recursos diretos ao sistema judicial. Ou mesmo que esses atletas teriam continuado a jogar futebol americano ainda que soubessem tudo o que havia para saber sobre todos os riscos que corriam.

Embora tivesse muitos argumentos persuasivos e poderosos, a NFL, sabendo que o caso levaria anos para ser resolvido nos Tribunais, estava sujeita a um tipo diferente de risco: se o litígio prosseguisse, fatalmente seriam produzidos documentos e obtidas evidências do que a liga sabia e desde quando ela sabia. Isso representava um imensurável potencial de dano em relação à imagem pública da NFL, o que ficou claro à medida em que passaram a vir à tona relatos e mais relatos sobre memorandos, e-mails, testemunhos e outras provas de que a liga minimizava os riscos de lesões cerebrais ou os ocultava completamente.

Esses vários fatores culminaram com um esforço para resolver o caso amigavelmente. A liga inicialmente concordou em pagar US$ 765 milhões para resolver tudo, com US$ 675 milhões destinados a um fundo para ex-jogadores e suas famílias, que seriam elegíveis para receber indenizações por certas doenças e condições específicas sem terem de provar o nexo de causalidade entre elas e a prática do futebol americano profissional.

Rapidamente surgiram reclamações sobre a (in)suficiência do montante e, mais importante, sobre a fixação de um limite rígido aplicável a esse fundo. Para garantir a homologação judicial do acordo, a NFL concordou em remover tal limite e em assumir o risco de, em teoria, passar a ter uma responsabilidade ilimitada relativamente a todos os jogadores aposentados que eventualmente pudessem se habilitar para receber a indenização. Ainda assim, acabou sendo um bom negócio para a liga, facilmente justificável como compensação suplementar para homens que ajudaram a tornar o jogo algo tão rentável.

Embora a NFL enfrente outros desafios decorrentes das concussões (incluindo o fato de que as crianças dos Estados Unidos não estão jogando tanto futebol americano quanto costumavam jogar), o problema se tornou bem menor do que poderia ser.

(…)

A liga continua sendo periodicamente questionada por falhas e pela curiosa incapacidade ou falta de vontade de cumprir o protocolo de concussão. Claro que os casos em que isso acontece acabam sendo amplamente divulgados. E isso se justifica: será necessário que um jogador morra em campo para que esses episódios parem de se repetir?

O dilema de Tua é complexo, pois não existe jogo mais importante ou valioso do que o “jogo da vida”. E não há respostas fáceis.

Um entretenimento esportivo maravilhoso, como vimos aqui no Brasil, mas no qual a tragédia está à espreita a cada lance. Eis o paradoxo da NFL.

Crédito imagem: Jasen Vinlove / USA Today

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