Pesquisar
Close this search box.

O renascimento do Calcio

Renascer é uma palavra comumente utilizada por muitos para expressar o nascer de novo, tal como a fênix que ressurge das próprias cinzas, um crescer de novo, uma reabilitação, uma recuperação. Contudo, ao falar de renascimento, é impossível não associar esse termo à Itália, o berço de um período histórico.

Com efeito, foi uma fase de grandes mudanças e conquistas culturais, com o surgimento de pensadores, artistas, arquitetos, escritores, ocorrido na Europa, entre o século XIV e o século XVI, marcando a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. A referência inicial é a região da Toscana, espalhando-se depois para o sul, tendo um impacto muito significativo sobre Roma, que foi praticamente reconstruída, em sua maior parte, sob a tutela dos Renascentistas.

Essa época representou um marco no estilo artístico, arquitetônico, com grandes construções, bem como o literário, capitaneado por grandes nomes como Nicolau Maquiavel, Dante Alighieri, Leonardo da Vinci e Michelangelo. Transportando para o mundo do futebol, como diria outro gênio, Nelson Rodrigues, “No futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” Eis que surge o conceito de muito além de um simples futebol.

A modalidade é a mais pura expressão pura da arte, da dança, da constante mistura sentimentos, do talento, da criatividade, da inovação e expressão da perfeição física em forma de movimentos imprevisíveis. Como não poderia deixar de ser, a Itália sempre foi o local de prática linear e rotineira desse esporte, o mais popular do país.

Ademais, representa um terreno fértil não somente para a produção e presença de vários craques, de um estilo de jogo único, mas como também um lugar onde o futebol foi muito bem sucedido, sendo a principal liga do mundo durante décadas, com destaque para os anos 80 e 90.

Sem embargo a partir de meados da primeira década do século 21, devido ao fortalecimento de outras Ligas, como a Premier League e Laliga, bem como a crise financeira do país, traduzida na dificuldade econômica e endividamento crescente de diversos clubes, o futebol italiano, popularmente conhecido como calcio, sucumbiu.

Por conseguinte, perdeu o protagonismo em nível europeu, ocorreu o esvaziamento de público, de craques, de interesse dos investidores e das grandes marcas, do poderio econômico dos clubes, o que traduziu diretamente no modelo do esporte do país, que ficou de fora das últimas duas Copas do Mundo e não passa da fase de grupos desde 2006, quando conquistou o último dos quatro títulos mundiais.

No entanto, ao contrário dos últimos anos, onde a conquista da Eurocopa pela Seleção foi um oásis em meio a um deserto, a temporada de 2022/23 trouxe indicadores bem robustos de que o Calcio dos anos 80/90, mesmo sem as principais estrelas do mundo, como ocorria em outrora, pode estar retornando ao seu papel de protagonismo no continente.

Dos 12 participantes das semifinais das 3 principais competições europeias, 5 são italianos: Milan e Internazionale (Champions League), Roma e Juventus (Europa League) e Fiorentina (Conference League). No principal torneio, foram 3 italianos nas quartas de final após exatos 17 anos. No cenário nacional, após um longo período sem qualquer adversário que pudesse fazer frente à Juventus, o Napoli deve ser, esta semana, a quarta equipe diferente a triunfar na Serie A nos últimos 4 anos.

Essa alternância nos vencedores das principais ligas do continente é incomum e demonstra um aumento de competitividade interno. O crescimento de equipes emergentes, que apresentam bom futebol, é evidente, como, por exemplo, Sassuolo e Atalanta. O resgate de instituições tradicionais como a Roma, Lazio e o próprio Napoli, que passou por um processo de falência no início dos anos 2000, trouxe muita força ao campeonato.

Some-se a isso a retomada de equipes com acesso a um mercado econômico mais forte, do Norte do país, com mais musculatura para investimentos, como o Milan e a Inter. Criou-se, portanto, um desafio ao poder da Velha Senhora. Todavia, para aumentar a qualidade técnica das equipes e, consequentemente, da competição, faz-se necessário ter um cenário atrativo do ponto de vista econômico para os atletas.

Para tanto, em 2018 chegou um dos maiores futebolistas do século com a árdua de missão de resgatar a importância do futebol italiano e trazer, finalmente, um título europeu à Juventus, equipe dominante na Itália, mas que perdia rotineiramente nas competições europeias. Em que pese o estímulo da conquista, um benefício fiscal foi fundamental para a contratação de Cristiano Ronaldo e de outros desportistas.

Conforme já explicado aqui nesta Seção, em outra oportunidade[1], foi aprovado, em 2019, o Decreto Lei de Crescimento, que alterou uma lei que também era utilizada para atrair mão de obra altamente qualificada ou dirigentes do alto escalão de empresas, passando a incluir, então, os desportistas. Sendo assim, houve uma redução da base tributável para somente 50% se o jogador transferisse a residência para o território italiano e permanecesse ao menos dois anos em solo transalpino, ou seja, que assinasse um contrato bienal.

Além disso, existiam regimes mais favoráveis que permitiam pagar uma taxa fixa de 100.000 euros de tributação anual máxima, qualquer que seja o valor recebido pelos direitos de imagem pagos no exterior, em vez de pagá-los de acordo com uma tabela progressiva. Evidentemente, essas alterações foram fundamentais para a vinda e a permanência de estrelas internacionais nos últimos anos como Ibrahimovic e Lukaku.

Em um simples exercício de cálculo, resta claro o benefício injetado no mercado. Antes dessa medida, um salário bruto de 10 milhões de euros correspondia a aproximadamente 5,5 milhões líquidos. Com o Decreto de Crescimento, o mesmo valor corresponde a cerca de 7,5 milhões líquidos.

A presença de grandes estrelas, conforme já exposto, provocou o aumento de receitas com publicidade, com patrocinadores e, principalmente, com a comercialização dos direitos de transmissão. Essa projeção de crescimento da importância da Liga Italiana, principalmente com o iminente aumento dos valores de exploração dos direitos de transmissão, chamou a atenção de um grande grupo de investidores, a CVC Capital Partners.

Em meio a uma conjuntura de crise econômica gerada pela pandemia, o grupo ofereceu 1,7[2] bilhões de euros por cerca de 10% dos direitos televisivos, porém, como já exposto aqui anteriormente[3], a oferta foi recusada e o fundo resolveu investir na Laliga, na Espanha.

Isso porque, após amplos debates, 7 equipes se opuseram às condições de negócio apresentadas, capitaneados pela Juventus e pela Internazionale de Milão. Meses depois, veio à tona o projeto da Superliga, com a adesão desses dois clubes e liderado por Andrea Agnelli (presidente da Velha Senhora), o que levantou suspeitas de que os dirigentes teriam agido de propósito para sabotar o acordo.

Cerca de 3 anos depois, outro fundo americano, Oaktree, apresentou uma proposta um pouco superior àquela da CVC. A Oaktree estruturaria o investimento por meio de uma combinação de dívida e caixa, o que implicaria um valor empresarial para a empresa de mídia da Série A de 15 bilhões de euros. Em detalhes, seria um empréstimo de 1 bilhão de euros mais 750 milhões para adquirir 5% da empresa de mídia, o que inclui os direitos de televisão.

Esse fundo já havia tido relações com uma holding pertencente a família Zhang, proprietária da Internazionale Milan. A proposta deve ser analisada, juntamente com as recebidas de outros gigantes da indústria, e serão divulgadas detalhadamente ainda esse mês em uma Assembleia com os membros da Liga.[4]

Decerto, a expectativa das partes é que essa injeção de capital possa ajudar na realização de projetos de crescimento e consolidação em matéria de tecnologia, inovação, internacionalização do produto e os de âmbito desportivo. Alguns clubes já possuem planos de reforma ou construção de seus estádios e construção de centro de treinamento, por exemplo.

Sob esse viés, um dos grandes problemas da Itália é a existência de estádios ultrapassados, pouco modernos, que destoam da qualidade e da importância do futebol italiano. Roma, Inter e Milan, Fiorentina, são alguns dos clubes com projetos avançados, mas que encontram problemas burocráticos e/ou de financiamento. A Federação Italiana, inclusive, cogita o lançamento da candidatura para receber a Eurocopa de 2032 como forma de estimular a modernização dos estádios locais. [5]

Aproveitando o bom momento, as próximas semanas devem ser decisivas para o futebol italiano com a negociação dos direitos televisivos para o próximo triênio. Grandes emissoras como Sky, Dazn, Mediaset, assim como a Amazon prometem entrar na briga em um valor que promete ser recorde diante do momento favorável. O objetivo é diversificar cada vez mais as transmissões e valorizar os direitos internacionais, que possuem uma margem muito grande para crescimento em comparação com as demais principais ligas.

Por outro lado, os últimos anos foram de crescimento vertiginoso dos investimentos, principalmente de fundos de investimentos americanos, na estrutura societária de clubes na Europa. Seguindo a tendência, na Itália, atualmente, segundo o CIES, 12 clubes pertencem majoritariamente à investidores americanos, número que promete aumentar.

Esse aumento do interesse estrangeiro e dos aportes no calcio se transformam em números no mercado de transferências internacionais. Em 2022[6], os clubes italianos terminaram em segundo lugar, conforme o relatório do TMS (Transfer Matching System), elaborado pela FIFA, que nada mais é que uma plataforma para armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol, que apontou que foram gastos 673 milhões de dólares.

Outrossim, outro fator muito importante é a internacionalização da marca. Nesse sentido, os italianos[7][8] seguiram o exemplo da Supercopa da Espanha e passarão a exportar esse campeonato, alterando sua forma de disputa, para a Arábia Saudita, um mercado bastante promissor e gerador de receitas significantes para o mundo do futebol nos últimos anos. O novo modelo concederá a divisão, somente a título de participação, de aproximadamente 24 milhões de euros entre os 4 participantes.

Da mesma forma, na tentativa de diversificar e incrementar as receitas, é fundamental a criatividade e a inovação como forma de ativação das marcas das competições e de seus parceiros comerciais. Nesse contexto, ainda que feita para beneficência, uma ação de marketing inovadora ocorrida em algumas partidas da Serie A tem chamado a atenção dos espectadores, podendo ser convertida, de modo pontual ou contínuo, como um espaço considerável de marketing.[9]

Uma parceria entre Socios.com e a Liga, colocará as bolas das partidas em um leilão beneficente. O vencedor poderá assistir o gol de qualquer ângulo, inclusive o da bola, aumentando a experiência e a interação com os torcedores, detentores de fan token.

Para isso, após o gol, a bola de determinadas partidas é colocada dentro de uma sacola com a marca da Liga e da empresa, acompanhada da câmera de transmissão, que as expõe em um momento clímax da partida onde a atenção do espectador está totalmente voltada ao campo. Criou-se, assim, um espaço comercial antes não explorado.

Não obstante a parte comercial e a exploração dos ativos do campeonato serem unanimidade, em termos de importância, para o crescimento da modalidade, não podemos nos olvidar da imprescindibilidade do futebol jogado nas categorias de base para o futuro do esporte e para a manutenção do nível praticado nos clubes e na seleção.

Pensando nisso, a Liga promoverá importantes mudança no Campeonato de Primavera (espécie de juniores na Itália), prestigiando os jovens revelados no vivaio. Essa valorização das categorias de base é fundamental para os jovens e para promoção de alterações significativas na composição das equipes profissionais da Liga, uma das que menos utilizam jovens da base em suas partidas.

Com isso, se aumentará em um ano o limite de idade, passando a ser sub-20, e imporão uma obrigatoriedade no número de jogadores na lista da partida para que constem, pelo menos, cinco jogadores que tenham condições de ser convocados para as seleções italianas, até chegar a 10 na temporada 2025/2026.

Conforme o exposto, respeitando o passado e a história, mas buscando a inovação, os investimentos externos, a valorização do esporte praticado no país e a expansão global, investindo sempre na formação dos jovens, a Itália almeja incessantemente o seu Renascimento futebolístico. Ainda é cedo para comentar que a fênix ressurgiu das cinzas, porém os sinais são os mais animadores possíveis.

Crédito imagem: Inter de Milão/Divulgação

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Liga parte final: Incentivos fiscais e a atração dos protagonistas do espetáculo – Lei em Campo – última consulta: 03.05.2023

[2] Serie A, sì all’offerta dei fondi. Ai club vanno 1,7 miliardi – La Gazzetta dello Sport – última consulta: 03.05.2023

[3] Acordo Laliga – CVC: solução ou sacrifício? – Lei em Campo – última consulta: 03.05.2023

[4] Non solo il finanziamento da 300 milioni all’Inter: Oaktree offre 1,75 miliardi per la Lega Serie A – Eurosport – última consulta: 03.05.2023

[5] Euro 2020, Gravina: “Valuteremo la candidatura dell’Italia per Euro 2028 o Mondiale 2030. Sì al green pass negli stadi” – Eurosport – última consulta: 03.05.2023

[6] FIFA-Global-Transfer-Report-2022.pdf – última consulta: 03.05.2023

[7] Com quatro times, Supercopa da Itália muda de formato a partir de 2024 | futebol italiano | ge (globo.com) – última consulta: 03.05.2023

[8] Supercoppa Italiana 2023 2024: Inter, Fiorentina e le altre squadre partecipanti | Sky Sport – última consulta: 03.05.2023

[9] Napoli-Milan, nuova iniziativa: il pallone sarà messo all’asta per beneficenza | OneFootball – última consulta: 03.05.2023

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.