Na semana passada, esta coluna falou, sob um viés mais técnico, do papel da Procuradoria na Justiça Desportiva. Ressaltou-se que a Procuradoria é um dos pilares do sistema normativo disciplinar jurídico-desportivo no Brasil.
De fato, é a Procuradoria a responsável pelo início da esmagadora maioria dos procedimentos nos tribunais desportivos. E tais procedimentos são iniciados por meio da denúncia que, na maior parte das vezes (em especial quando trata-se de campeonatos nos quais não há transmissão) é baseada na súmula.
Mas nem só de súmula vivem as denúncias. Há outras formas de basear a denúncia: vídeos, fotos, depoimentos, outros documentos; de fato, todos os meios legais, ainda que não especificados no CBJD, são hábeis para provar a verdade dos fatos alegados no processo desportivo[1].
É aqui que entra o torcedor. Esta coluna já se referiu ao papel do torcedor na Justiça Desportiva em algumas oportunidades, em especial aqui e aqui. Em ambas oportunidades, falou-se da notícia de infração. A notícia de infração é um documento que detalha a suposta ocorrência de uma infração desportivamente punível. Este documento é endereçado à Procuradoria, que decidirá se apresentará uma denúncia com base nele ou não.
Em ambas colunas, mencionou-se que o STJD entende que o torcedor não poderia apresentar este documento, apesar de o artigo que regula a notícia de infração prever que “qualquer pessoa natural ou jurídica” pode apresentar tal documento.
Trata-se, pois, de um entendimento do STJD[2], não de uma regra colocada pelo legislador. Em decisão sobre uma Medida Inominada, processo n. 0032 /2019, no ano passado, o STJD reafirmou este entendimento:
Apesar desse entendimento, porém, não é incomum ver torcedores apresentando notícias de infração à Procuradoria. Em caso recente, um coletivo de torcedoras apresentou uma notícia de infração pedindo a anulação do registro do atleta Robinho[3], cuja contratação pelo Santos havia sido recentemente anunciada. Houve também uma notícia de infração apresentada por um torcedor do Atlético-GO, que alegou supostas irregularidades na hora do sorteio das oitavas de final da Copa do Brasil[4].
Como a falta de legitimidade do torcedor para apresentar a notícia de infração é um entendimento do STJD, e não uma regra clara do Código, é possível que uma composição distinta do tribunal entenda de outra forma e passe a legitimar o torcedor.
É possível ainda, que a Procuradoria, ao receber uma notícia de infração de um torcedor, requeira a instauração de um inquérito[5]; com base na investigação, então, a Procuradoria apresentaria a denúncia.
Neste cenário, portanto, temos o torcedor como aliado da Procuradoria. Ora, se o papel da Procuradoria, como dissemos, é defender a ordem jurídica e a disciplina desportiva, quanto mais elementos a ela forem fornecidos para fazê-lo, melhor.
Se uma infração é cometida e não é relatada em súmula ou não é percebida pela Procuradoria por meio de quaisquer outros meios, a notícia de infração trazida pelo torcedor pode ser fundamental.
Como já afirmado nesta coluna, “se houvessem meios eficazes de participação do torcedor na Justiça Desportiva, talvez a procura pelo Judiciário fosse menor. Essa participação poderia se dar pela notícia de infração. Não de forma individual, já que, se fosse o caso, a cada partida seriam apresentadas milhares de notícias de infração. Mas algo estruturado, de forma que um grupo de torcedores, munidos de um mínimo de assinaturas e da clara demonstração do legítimo interesse, pudesse apresentar a notícia de infração ao tribunal desportivo. Seria uma forma de aproximar o torcedor da Justiça Desportiva, enriquecendo ainda mais o trabalho dos tribunais”.
A aliança entre a Procuradoria e o torcedor pode ser extremamente benéfica para a promoção da justiça nos tribunais desportivos.
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[1] Artigo 56, CBJD.
[2]https://tjdam.com.br/site/arquivos/download/arqeditor/arquivamento%20de%20medida%20inominada%20extincao%20do%20merito.pdf
[3] https://jornaldebrasilia.com.br/torcida/coletivo-de-torcedoras-notifica-stjd-e-pede-anulacao-de-registro-de-robinho/
[4] https://www.futebolinterior.com.br/futebol/Copa-do-Brasil/Unica/2020/noticias/2020-10/sorteio-da-copa-do-brasil-pode-ser-anulado-saiba-o-motivo
[5] Inquérito é uma investigação preliminar conduzida quando os fatos não estão suficientemente claros para a apresentação de uma denúncia. Pode ser determinado pelo Presidente do Tribunal competente (STJD ou TJD), a requerimento da Procuradoria ou da parte interessada. Caso não seja determinado pela Procuradoria, esta deve acompanhar o inquérito.