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Superliga: o problema da competição fechada e o paradoxo da autonomia

A superliga de clubes, sobre a qual tanto se especulou nos últimos meses, enfim deu o ar da graça. E, da mesma forma repentina como foi anunciada no último domingo, já na terça-feira encontrava-se suspensa, com a saída anunciada pela maioria dos doze clubes fundadores (incluindo todos os seis ingleses).

O volume de debates gerado pelo anúncio do torneio foi inversamente proporcional ao curtíssimo espaço de tempo pelo qual ele se manteve de pé (ao menos nesse primeiro momento). E não sem razão: independentemente de se considerar uma iniciativa positiva ou negativa, ela colocou em causa a essência do sistema federativo que permeia a maioria absoluta das modalidades esportivas em sua prática formal e organizada.

No início do ano, já havíamos abordado o tema aqui na coluna. No primeiro texto, explicamos como um caso envolvendo a Federação Internacional de Patinação (ISU, na sigla em inglês) tornou-se referência na aplicação do direito da União Europeia em matérias esportivas e, mais especificamente, quanto a sanções a atletas que busquem participar de eventos fora do sistema piramidal comandado pela federação internacional. No segundo, expusemos como esse precedente poderia ser utilizado a favor de uma superliga de clubes (até então apenas objeto de especulação), em prejuízo do monopólio da FIFA.

O anúncio oficial da superliga trouxe mais informações sobre o projeto capitaneado por seus doze clubes fundadores. O objetivo era criar uma competição de 20 clubes, em que 15 vagas seriam cativas (os fundadores então divulgados e mais três – potencialmente PSG, Bayern e Dortmund); os cinco clubes restantes poderiam variar temporada a temporada, mas não se chegou a detalhar como se daria a escolha dessas equipes.

Diante dessas novidades, o exame do caso sob a ótica do direito da União Europeia ganhou novos contornos. Se de um lado persistiria a possibilidade de FIFA e UEFA se verem impedidas de sancionar clubes e/ou atletas pela participação na superliga, de outro emergiu uma característica bastante singular (ao menos para os padrões do sistema esportivo predominante na Europa e na maior parte do mundo) do torneio esboçado: a não previsão de rebaixamento e promoção (no mínimo, em relação a 15 dos 20 participantes) com base no mérito esportivo.

Essa característica é de fundamental importância para a aplicação do direito da União Europeia ao caso. Isto porque o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estipula, em seu artigo 165º (2), que a União tem por objetivo “desenvolver a dimensão europeia do desporto, promovendo a equidade e a abertura nas competições”.

De imediato, nota-se que a criação de uma competição fechada, isto é, que tem como premissa a reunião de um grupo específico de competidores sem privilegiar o ingresso de novos participantes por mérito esportivo, contraria o disposto no Tratado. Nesse ponto, o modelo de vagas cativas anunciado pela superliga (que remete àquele adotado nas ligas norte-americanas) poderia causar dificuldades no âmbito judicial, quando confrontado com o artigo 165º do TFUE. Assim, enquanto o precedente da ISU confere bons fundamentos à superliga, os objetivos definidos no Tratado poderiam ser utilizados pelos entes do sistema federativo em vigor (FIFA, UEFA, demais clubes) no combate a esse novo modelo proposto.

Noutro plano, vale destacar um paradoxo observado após o anúncio da superliga.

O sistema federativo rege-se pela Lex Sportiva, que tem como um de seus pilares o princípio da autonomia. As entidades responsáveis pela organização e administração do esporte – notadamente as federações internacionais – promovem grande esforço no sentido de afastar qualquer tipo de intervenção estatal sobre seus respectivos sistemas. Para tanto, estabelecem diversas normas em seus estatutos e normativos internos prevendo inclusive sanções graves como suspensão e desfiliação de membros que não preservem sua autonomia, inclusive em nível nacional.

O que se verificou nesta última semana, curiosamente, foi uma série de manifestações de autoridades de diversos Estados europeus saindo em defesa do sistema piramidal liderado pela FIFA. Além das críticas à iniciativa da superliga, algumas notícias deram conta inclusive de planos de determinadas nações para legislar de modo a dificultar ou mesmo impedir a viabilidade do projeto – como, por exemplo, no caso do Reino Unido.

O paradoxo é claro: o sistema federativo, que tanto repele a intervenção dos Estados em busca da preservação de sua autonomia, acabou sendo por eles “defendido”. Um esboço de “intervenção às avessas”, que – ao menos no campo da repercussão e da opinião pública – visava minar a superliga e manter intacto o sistema piramidal do futebol como conhecemos.

Cabe ressaltar, aliás, que o repúdio não se restringiu aos Estados nacionais, estendendo-se a autoridades da própria União Europeia. Dois exemplos emblemáticos foram o comunicado de grupo especializado em esporte constituído no âmbito do Parlamento Europeu e as declarações de vice-presidente da Comissão Europeia em defesa do modelo europeu do desporto. Tendo em vista que o direito da União Europeia, aplicado por suas instituições, é um dos grandes balizadores da Lex Sportiva (vide caso Bosman), essas manifestações ganham especial relevância: teria a superliga chances de sucesso em eventuais disputas perante a Comissão Europeia ou mesmo o Tribunal de Justiça da União Europeia?

Considerando a anunciada suspensão do projeto após a desistência da maior parte de seus fundadores, essa e tantas outras perguntas aparentemente ficarão sem resposta, ao menos neste momento. Ainda assim, a Superliga deixa no ar uma ideia que põe em xeque o sistema esportivo como nos acostumamos a conhecer, e que eventualmente pode voltar à tona futuramente.

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