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Thomas Heurtel, a guerra na Ucrânia e o papel do esporte

Enquanto as atenções no noticiário da NBA se dividem entre a nebulosa punição do Boston Celtics ao treinador Ime Udoka, por violação das políticas internas da franquia, e a venda do Phoenix Suns por Robert Sarver, em um desdobramento surpreendentemente rápido das medidas anunciadas na última semana pela liga, há quem esteja de olho no que acontece na Europa.

Aliás, a própria NBA parece estar enxergando o mercado europeu com mais carinho, tendo anunciado, recentemente, uma expansão das transmissões em horário nobre para o “Velho Continente”.

Mas não é sobre isso e nem sobre o recém-encerrado EuroBasket, que teve a Espanha como campeã e o naturalizado Lorenzo Brown como um dos destaques da competição, que falaremos hoje. Tampouco sobre a vice-campeã França, a não ser para mencionar que nela joga o armador Thomas Heurtel, cuja história abordaremos a seguir.

Não, Thomas Heurtel não é notícia, aqui, por ser casado com uma brasileira ou por ter uma carreira vitoriosa na Espanha, na Turquia e na própria seleção francesa. Evidentemente, ele também não é a estrela europeia mais “quente” do basquete mundial, estando muito atrás, em façanhas esportivas e em popularidade, dos astros Giannis Antetokounmpo, Nikola Jokić e Luka Dončić, e mesmo do compatriota francês Rudy Gobert.

O que nos leva a falar de Thomas Heurtel é o imbróglio em que ele se envolveu com a Federação Francesa de Basquete após a revelação de que o atleta assinou um contrato de 2 anos (no modelo 1 + 1, em que o segundo ano é uma opção) com o BC Zenit, de São Petersburgo.

E onde está a polêmica? Vamos lá…

No dia 01/08/2022, a Federação Francesa de Basquete declarou que qualquer jogador ou treinador que assinasse com uma organização russa ou bielorrussa enquanto a guerra na Ucrânia estivesse em andamento não seria elegível para atuar pelas seleções nacionais.

Na verdade, a Federação Francesa obrigou os atletas a assinarem um documento assumindo o compromisso de respeitarem tal determinação. Thomas Heurtel foi um dos que assinou. Questionado a respeito, uma vez que já existiam rumores de seu possível acerto com o Zenit, ele respondeu:

Sim, eu assinei o documento. Caso contrário, eu não estaria aqui [no EuroBasket]. Meus agentes estão em contato com clubes, clubes russos em particular, se você quiser saber. Mas também com outros clubes que disputam a Euroliga e clubes na Espanha. Veremos o que acontece no futuro.

Pois bem. O futuro chegou e, após a confirmação do acerto de Heurtel com o Zenit, a Federação Francesa se pronunciou:

O jogador assinou a declaração juramentada (…) no final de julho, indicando que não estava contratualmente comprometido e que não planejava assinar com um clube russo ou bielorrusso. Se Thomas Heurtel atuar pelo clube russo, esse compromisso será desrespeitado e o atleta deixará de atender aos critérios de seleção para os próximos eventos internacionais, incluindo os Jogos Olímpicos de 2024.

No momento em que este texto é escrito, ainda não temos a palavra oficial do atleta, que, em entrevista ao podcast Café Belgrado há cerca de 4 anos, demonstrou valorizar as oportunidades de defender as cores de seu país pelas quadras mundo afora. Estaria ele, conscientemente, disposto a abandonar a seleção aos 33 anos? Ou Heurtel comprará uma briga com a Federação para continuar atuando pela França?

Curiosamente, essa não é a primeira vez em que os holofotes recaem sobre Thomas Heurtel por motivos inusitados: em dezembro de 2020, jornais espanhóis noticiaram que o jogador, então no Barcelona, teria sido “abandonado” na Turquia após uma partida do clube pela Euroliga. O motivo? Dirigentes da equipe catalã teriam tomado conhecimento de que ele estaria negociando com o Real Madrid. O “boato” foi posteriormente desmentido pelas assessorias de imprensa, as quais afirmaram que a permanência do atleta em território turco teria sido previamente acordada.

Bom, o fato é que, depois de um curto período no basquete francês, Heurtel seria realmente contratado pelo Real Madrid em julho de 2021.

Rivalidades e episódios pitorescos à parte, a história de Thomas Heurtel nos leva a examinar as repercussões da guerra na Ucrânia no universo esportivo, as quais, especialmente no Lei em Campo, vêm sendo muito debatidas, inclusive no âmbito dos eSports.

Afinal, à luz da Lex Sportiva, ações como as da Federação Francesa de Basquete são legítimas? Quais são os limites da atuação política do movimento transnacional do esporte? Caberá ao TAS (Tribunal Arbitral do Esporte) definir os destinos de Thomas Heurtel na seleção da França?

Podemos refletir, no mais, se a repercussão do episódio seria outra caso o atleta envolvido fosse um “figurão” do futebol mundial (Mbappé?) transferindo-se para um clube russo. Ou um jogador de basquete de mais renome, que já tivesse “furado a bolha” dos aficionados pelo esporte da “bola ao cesto”. O impacto midiático levaria a um recuo da Federação Francesa? Quem controla a narrativa faria a balança pender para qual lado?

Como apontou Andrei Kampff, a despeito do disposto na Regra 50 da Carta Olímpica[1] e no art. 4 do Estatuto da FIFA[2], “o esporte vive a utopia de buscar ser um ambiente livre de ‘manifestações políticas’”, mas “com a Guerra na Ucrânia e as consequentes punições em cadeia ao esporte russo, esse castelo de areia se desmanchou” e “o esporte tomou um caminho político, justificado pela proteção de direitos humanos”.

Nos modelos de ligas profissionais privadas totalmente independentes de Federações nacionais, como é a NBA e como são outras ligas norte-americanas, situações como a de Thomas Heurtel acabam ficando em segundo plano, relegadas a um patamar de menor relevância quando comparadas com as punições aplicadas por Comissários que, em tese, são simultaneamente juízes, júri e executores das penas.

As vidas da NBA e do basquete FIBA, a propósito, só se entrelaçaram para valer com a participação do Dream Team nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. E esse entrelaçamento passa a ser minimamente importante, quando muito, apenas de 4 em 4 anos, se algum grande nome da liga resolve disputar os Jogos Olímpicos, algo que aconteceu em grau mínimo no Rio 2016 e em Tóquio 2020 em virtude das ausências e/ou pedidos de dispensa dos rostos mais famosos do Team USA.

Seja como for, vivemos em um tempo no qual o esporte, cuja força social é inegável, vai muito além do jogo em si, seja do ponto de vista comercial, com o conceito de sportainment (tão bem explorado pelas ligas esportivas dos Estados Unidos), seja do ponto de vista geopolítico, com o crescente fenômeno do sportswashing.

Assim, é difícil que discussões como esta, proporcionada pelo caso Thomas Heurtel, deixem de chegar a quem acompanha o esporte, não importando se você é apenas um consumidor “neutro” de ligas norte-americanas ou um profissional do Direito Desportivo.

Nas palavras de Nelson Rodrigues, “o pior cego é o que só vê a bola”. Não só no futebol.

Crédito imagem: Zenit

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[1] No kind of demonstration or political, religious or racial propaganda is permitted in any Olympic sites, venues or other areas.

[2] FIFA remains neutral in matters of politics and religion. Exceptions may be made with regard to matters affected by FIFA’s statutory objectives.

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