Em primeiro lugar, é importante entender que não existe em qualquer eSport a divisão entre modalidades masculinas e femininas.
Na teoria não há qualquer óbice para que mulheres participem das principais ligas de esportes eletrônicos, seja em modalidades individuais, seja em coletivas, pois, em regra, os regulamentos aceitam participantes de qualquer gênero.
Já na prática, observamos que a presença feminina no alto nível do esporte eletrônico é rara e quase inexistente. Se observar que as estatísticas dizem que as mulheres já são maioria entre os gamers (NEWZOO, 2018), o fato de quase não haver presença feminina nos principais campeonatos gera estranheza.
Não há pesquisa feita para apontar com certeza quais são os fatores que levam a isso, porém, o machismo latente nesse meio é considerado o maior deles.
Inclusive, o assédio contra as mulheres dentro do ambiente gamer, muito bem ilustrado pelo episódio protagonizado pela Gabi Cattuzo e Razer, e o histórico da participação da mulher – inclusive transsexual – no esporte tradicional e no eSport já foram abordados aqui no lei em campo.
Diante de tudo isso, competições exclusivamente femininas tornam-se um nicho interessante de investimento, principalmente na busca de uma identificação com o público feminino, que conta com alta demografia e até então recebeu pouca – ou nenhuma – atenção das marcas endêmicas.
Crítica n. 1: regras para inscrição na competição
Como descrito na introdução, o “GIRLGAMER Esports Festival” se propõe a ser uma competição de participação exclusivamente feminina.
Em um primeiro momento, o regulamento transcrevia as regras que são seguidas pelo TAS/CAS (Tribunal Arbitral do Esporte), ou seja, dizendo que poderão participar as pessoas que tiverem cromossomos XX ou que, sendo transsexuais, demonstrem que o tratamento hormonal é eficaz.
O entendimento deste autor é que a identificação do gênero é direito fundamental e deve gerar efeitos civis, todavia, no cenário esportivo, diante do princípio desportivo da igualdade da competição, a identificação com o gênero não é suficiente para garantir a participação.
Ao mesmo tempo, não há qualquer evidência que diga que exista vantagem biológica entre os gêneros no esporte eletrônico, uma vez que depende muito pouco de atividades físicas.
De qualquer forma, por conta da controvérsia gerada na comunidade que tratou como transfóbicos os termos utilizados no regulamento, este foi modificado, garantindo o acesso ao transsexual sem ser necessária a apresentação de laudo médico.
Crítica n. 2: utilização de software para verificação da identidade
Como no esporte eletrônico a maior parte das fases iniciais das competições acontece on-line, são necessários meios para comprovar que são os jogadores inscritos que estão jogando, ou que, pelo menos, seja a mesma pessoa que jogue todas as fases da competição.
Além disso, como o organizador da competição não tem acesso aos computadores utilizados nessas fases, são necessários meios para supervisionar o doping mecânico, ou seja, supervisionar se não está sendo utilizado algum software que garanta vantagem indevida ao participante.
Por tudo isso, é natural que haja a obrigação de uso de algum meio de provar tudo isso; no caso do GIRLGAMER, o meio escolhido foi o software plays.tv, que grava a tela e a voz de quem está jogando.
A utilização desse software foi criticada por dois motivos.
O primeiro deles foi prejudicar a performance de quem não tem um equipamento potente, porém, quando se trata de competição online, cada equipe/participante deve se responsabilizar pelo equipamento e conexão utilizados. No direito esportivo, o princípio pro-competitione determina que a credibilidade e segurança da competição tenham prioridade sobre o competidor.
O segundo deles aconteceu porque, em meio à discussão da crítica n. 1 e ao comentário infeliz de um funcionário da BBL (que provavelmente não fazia ideia da função do plays.tv), a intenção de garantir a segurança da competição ao utilizar o plays.tv foi confundida com uma fiscalização do gênero da pessoa e vista como uma medida machista.
O erro da empresa foi pecar na seleção e no treinamento da equipe, que fez com que o problema tomasse proporções desnecessárias.
Crítica n. 3: participantes não podem denegrir imagem do torneio
No regulamento da competição, há a previsão de que “qualquer postagem que uma equipe/participante fizer denegrindo a imagem do torneio, do operador de liga ou de qualquer outro envolvido poderá levar a punição ou até mesmo a desclassificação da equipe dependendo da situação”.
A regra foi criticada por algumas participantes e pela comunidade.
A regra é razoável, pois, ao se inscrever e participar do torneio, a equipe/participante vincula sua imagem ao torneio, e é importante que essa vinculação seja imaculada. Para as duas partes, inclusive.
Também é importante observar que, por previsão constitucional, ninguém é obrigado a se associar ou se manter associado a ninguém.
Se não está contente com o regulamento, não se associe.
Se o regulamento foi alterado ou não está contente com o andamento da competição, se desassocie e busque indenização se houve algum dano.
Da mesma forma, se o organizador do torneio não está contente com a conduta de alguma equipe/participante, é seu direito desclassificá-los. E listar as ocasiões em que isso pode acontecer em regulamento permite que ele esteja protegido de indenizações caso o faça.
Crítica n. 4: horário dos jogos
Algumas equipes/participantes criticaram a escolha do horário dos jogos.
Fato é que dia e horário jamais serão algo unânime; sempre terá alguém que terá algum problema para se adequar.
Ocorre que o GarotaGeeks apontou que as partidas foram marcadas com pouquíssimos dias de antecedência e, por isso, não houve tempo hábil para participantes se adequarem. Se realmente essa foi a situação, a crítica é razoável.
A critíca deixa de ser razoável, porém, quando o argumento passa a ser “só vai ser nesse horário porque a organização tá mais preocupada com o retorno financeiro”.
Crítica n. 5: grande final em Dubai
A crítica gira em torno da cultura do local escolhido, que tem politicas rígidas contra homossexuais e transgêneros, além da discriminação contra mulheres.
A BBL se pronunciou sobre o assunto:
“O GirlGamer é um campeonato internacional. A edição que ocorre agora em São Paulo selecionará as melhores equipes da América Latina e garantirá uma vaga para Dubai, que é uma região que não assegura os direitos de grupos minoritários. A organização internacional do GirlGamer estipulou a necessidade de documentos oficiais do governo (com foto) para mulheres transsexuais que forem participar da competição. O site do Itamaraty detalha melhor os cuidados necessários em viagens para região dos Emirados Árabes. Toda jogadora transsexual que compete no GirlGamer tem os documentos oficiais do governo com o nome social ou apresentaram o processo de retirada da documentação oficial com o nome social à administração do evento. A BBL salienta sua preocupação com relação às jogadoras transsexuais devido às possíveis dificuldades que poderão ter ao viajar para a região dos Emirados Árabes.”
Conclusão e opinião do autor
Por mais nobre que a intenção possa ser, apenas intenção não paga conta. Apenas intenção não irá fomentar o cenário competitivo feminino. Dinheiro é necessário.
Para que o esporte gere dinheiro, é necessário que o produto torneio, além de atrair com o entretenimento, ofereça segurança e credibilidade em seus resultados.
Em um Brasil e mundo polarizados ideologicamente, principalmente no que tange ao gênero, qualquer discussão que envolva o tema acaba gerando controvérsia.
Esse ambiente faz com que todos estejam preparados para o embate para defender seu posicionamento. E por mais justo que seja o posicionamento, é necessário sensibilidade para que a razoabilidade não se perca.
Por fim, sei que jamais serei capaz de entender toda a extensão do assédio que mulheres, homossexuais e transgêneros sofrem todos os dias. Se por essa razão deixei de enxergar a situação por um ângulo que teria feito com que minha análise fosse diferente, estou aberto ao diálogo.