Search
Close this search box.

Concussão: a maior dor de cabeça da história da NFL

No final de 2015, eu estava nos Estados Unidos quando estreou por lá o filme Concussion, protagonizado por Will Smith e baseado na história real do Dr. Bennet Omalu, patologista forense cujas pesquisas levaram à descoberta da encefalopatia traumática crônica (que corresponde, em inglês, à sigla CTE). Trata-se de uma doença degenerativa do cérebro que pode ocorrer após traumas cranianos repetitivos, algo perturbadoramente comum em jogadores de futebol americano.

Vi o filme no cinema e lembro-me perfeitamente de ouvir, nos dias seguintes, em programas de rádio e em podcasts, vários personagens importantes da NFL, incluindo o Comissário da liga, elogiarem o fato de a obra jogar luz sobre o tema das concussões no esporte da bola oval.

Nessa mesma viagem, tive a oportunidade de assistir, no estádio, a um jogo entre o New England Patriots, do multicampeão Tom Brady, e o Miami Dolphins, equipe que está no centro das atenções por conta das lesões sofridas pelo jovem quarterback Tua Tagovailoa.

No domingo, dia 25/09, após um forte choque na parte de trás da cabeça, Tua, nitidamente cambaleante, foi avaliado e autorizado a retornar a campo na partida contra o Buffalo Bills. Liberado para enfrentar o Cincinnati Bengals na quinta-feira seguinte, dia 29/09, Tua bateu a cabeça no gramado no segundo quarto do jogo e ali permaneceu, estirado, por angustiantes doze minutos, antes de ser levado de ambulância para o Centro Médico da Universidade de Cincinnati.

Instantaneamente após o lance, os braços do jogador ficaram rígidos e seus dedos se curvaram, algo que a Medicina chama de “resposta de esgrima”, uma reação neurológica involuntária a um evento concussivo significativo. As imagens são chocantes.

O caso causou comoção e reacendeu a polêmica sobre as concussões na NFL. Mesmo para um leigo, a instabilidade motora de Tua depois da pancada sofrida no domingo era evidente. Como ele foi autorizado a retornar para o jogo naquelas condições? E por que ele não foi vetado para atuar contra os Bengals tão poucos dias depois? Afinal, o protocolo de concussões está sendo cumprido?

No sábado, 01/10, após uma investigação interna que constatou diversos erros de procedimento, o médico independente especialista em neurotrauma que avaliou Tua e permitiu o retorno dele contra os Bills foi demitido pela NFLPA, a associação dos jogadores da liga.

Pela relevância do episódio e dos desdobramentos que ele ainda deve causar, a minha coluna desta semana será diferente das anteriores. O que você lerá, a seguir, é uma adaptação/tradução livre de trechos do excelente Playmakers: How the NFL Really Works (And Doesn’t), do jornalista Mike Florio, livro publicado em março deste ano. Peço a sua licença, caro leitor, para fazer minhas as palavras do autor:

Imagine-se saindo de casa depois do jantar. O ar está esfriando após um dia quente. Há um pouco de brisa. Você está parado a dois metros de distância da garagem. Agora, corra. Corra o máximo que puder, direto em direção à porta da garagem. E choque-se contra ela. Levante-se. Você está bem? Quem se importa além de você, não é? Volte e faça de novo. Faça isso novamente. E de novo. E de novo. Depois de fazer isso cerca de cinquenta vezes, você se sentirá como um jogador da NFL depois de um jogo.

Agora, faça isso todos os domingos (mais talvez uma quinta-feira ou uma segunda-feira ou um sábado) pelas próximas dezoito semanas. Não se preocupe. Você terá uma dessas semanas de folga para descansar – até conseguir continuar fazendo isso mais um pouco. E se você fizer isso muito bem, você vai conseguir fazer ainda mais. Mais três ou quatro fins de semana.

Faça isso de setembro a janeiro e você começará a entender a vida na NFL. Nos condicionamos ao longo dos anos a pensar que é só brilho e glamour e riqueza e luxo e tudo o que é bom e invejável. Não é. É dor e é agonia e são cirurgias e é pressão e é estresse e é todo mundo que você conhece querendo um pouco do que você tem, algo muito diferente da vida divertida e emocionante que uma nação ressentida de fãs acredita que exista.

Agora, volte para a sua garagem. E antes de correr para se chocar com a porta, finja que está fazendo isso na frente de sessenta e cinco mil pessoas. Metade do tempo, quando você joga em casa, elas vão te amar (a menos que pensem que você é péssimo). Na outra metade do tempo, quando você joga como visitante, elas vão te odiar (especialmente se souberem que você não é péssimo).   

Milhões de outras pessoas assistirão pela TV. Algumas apostarão dinheiro no resultado do jogo. Outras dezenas de milhares ´possuirão´ você no fantasy e precisarão que você marque um touchdown, ou três. Um número ilimitado de idiotas nas redes sociais irá insultar você, sua esposa, sua mãe, seus filhos. Vão ameaçar matá-lo, ou matá-los, se você não jogar direito. Bem-vindo à vida real de um jogador da NFL. Bem-vindo às horas gastas tentando consertar um corpo quebrado a ponto de ele continuar batendo na porta da garagem. Bem-vindo aos desafios de atingir seu potencial máximo bem antes do seu vigésimo quinto aniversário. E às demandas de familiares e amigos que acreditam que a fonte de dinheiro durará para sempre, ou pelo menos muito mais do que realmente durará.

Bem-vindo à vida como uma vela que queima rapidamente. Um ano? Dois anos? Três? Quatro? Cinco, talvez. E, a cada ano, haverá uma nova safra de jogadores, mais jovens, mais baratos, mais saudáveis. Eles estão vindo para pegar o que é seu. Eventualmente, um deles conseguirá. Até que isso aconteça, você começará a se preocupar com a inevitabilidade desse destino. Ao longo do caminho, todos observarão tudo o que você faz. A recompensa pelo sucesso será uma vida levada em público, com constantes pedidos de fotos e autógrafos, ingressos e telefonemas. Parece ótimo no começo, mas você se cansa rapidamente. Muito rapidamente.

E isso é apenas um pedaço da vida como jogador da NFL. Para quase todos, chegar lá é a realização de um sonho. Esse sonho pode rapidamente se tornar um pesadelo de muitas maneiras, especialmente depois que os jogadores se aposentam para enfrentar décadas de preocupação com possíveis problemas físicos e cognitivos nos quais eles sequer teriam pensado se o sonho de infância fosse outro.

Embora o sucesso em qualquer esporte profissional traga muitos dos problemas que os jogadores da NFL enfrentam, poucos esportes cobram um preço físico tão extremo quanto o futebol americano. A ponto de alguns atletas se perguntarem: valeu a pena?

A maioria dirá que sim. O que mais eles podem dizer? No fundo, no entanto, muitos dos homens que saem de uma carreira na NFL, com articulações mutiladas e cicatrizes, sabem que a realidade simplesmente não correspondeu ao sonho.

Portanto, lembre-se de tudo isso da próxima vez que você estiver inclinado a zombar de um jogador da NFL, a twittar insultos e ameaças para ele ou a ridicularizar suas performances.

A NFL adora dizer: ´Futebol é família´. Futebol não é família. Futebol é negócio. E é bom para os negócios que a NFL diga: ´Futebol é família´. E, de fato, o futebol americano se tornou um negócio gigantesco. A NFL faz muitas coisas bem. Mas também faz muitas coisas mal.

A NFL conseguiu ´empurrar com a barriga´, por décadas, o tema dos golpes repetidos na cabeça. Em 1994, a liga formou o chamado Comitê de Lesões Cerebrais Traumáticas Leves e passou muito mais tempo minimizando os riscos do que entendendo-os total e completamente. O inevitável acerto de contas foi adiado com sucesso por uma década e meia. Como sempre, porém, o acerto de contas finalmente chegou. Quando o Congresso se envolve em assuntos de empresas privadas, os administradores de tais empresas e aqueles que têm interesse nelas perguntam em alto e bom tom: ´O Congresso não tem coisas melhores para fazer?´

Bom, a verdade é que certas empresas privadas afetam suficientemente o interesse público para justificar a intervenção de órgãos legislativos federais. Foi o que aconteceu em outubro de 2009, quando o Comitê Judiciário da Câmara convocou o comissário Roger Goodell e o diretor executivo da NFLPA, DeMaurice Smith, para testemunhar sobre a questão do traumatismo craniano. A mensagem foi clara: NFL, você tem um problema. Limpe por conta própria ou nós limparemos para você. E você não irá gostar de como faremos isso.

Com ameaças abertas contra a isenção antitruste relativa aos direitos de transmissão da liga, a NFL agiu rapidamente para resolver o problema. Pouco mais de um mês depois, a liga aprovou diretrizes abrangentes e sem precedentes que regulam como jogadores que sofreram concussões podem retornar a treinos e jogos. A responsabilidade pelo problema, sem dúvida, era da liga e da associação dos jogadores. Elas não tinham escolha. O acerto de contas há muito esperado havia chegado. O futebol americano mudaria ou possivelmente morreria.

Agora, olhando mais de uma década em retrospectiva, fica claro que forçar a NFL e a NFLPA a enfrentarem o problema sob a ameaça de mudanças externas desencadeou mudanças internas que transformaram dramaticamente o jogo.

A liga, com a intenção de garantir que o fluxo de futuros jogadores de futebol americano não diminuísse (e, no entanto, ele diminuiu), trabalhou para pressionar todos os estados a adotarem uma versão da Lei Lystedt, uma medida aprovada pela primeira vez em Washington depois que Zachary Lystedt retornou ao futebol americano com uma concussão e sofreu graves danos cerebrais.

Além das mudanças na lei, a NFL tentou provocar uma mudança na cultura do futebol americano, uma cultura que recompensa a vontade e a resolução de jogar com toda e qualquer lesão. Para lesões cerebrais, o desafio passou a ser persuadir os jogadores a se comportarem de forma contraintuitiva, aceitando a situação quando sofrem uma possível concussão em vez de lutarem contra esse fato. Mas, mesmo agora, essa abordagem tem falhas significativas. Uma coisa é um quarterback titular que não tem medo de perder seu emprego levantar a mão e relatar uma possível concussão. Outra bem diferente é um jogador veterano que quer preservar sua vaga no elenco sair voluntariamente da briga e dar ao seu substituto a chance de brilhar e assumir sua posição.

Cá entre nós, mesmo jogadores que têm seu espaço garantido burlam o sistema. O lendário quarterback Peyton Manning afirmou, em 2011, que deliberadamente falseava os resultados de testes cognitivos realizados na pré-temporada para passar mais facilmente em novos testes dessa natureza se/quando ele tivesse que fazê-lo após sofrer uma lesão na cabeça. ‘Eles têm esses novos testes que temos que fazer’, disse Manning à época. ´Antes da temporada, você tem que olhar vinte fotos e virar o papel e depois tentar desenhar essas vinte fotos. E eles fazem isso com palavras também. Vinte palavras, você vira e tenta escrever essas vinte palavras. Então, depois de uma concussão, você faz o mesmo teste e, se for pior do que no primeiro teste, não pode jogar. Bem, eu apenas tentava me sair mal no primeiro teste.’ 

Depois que os comentários de Manning criaram um alvoroço, ele tentou dizer que estava brincando. Poucos acreditaram nisso, porque a maioria entende que o esforço para fazer com que os jogadores de futebol americano voluntariamente não joguem é praticamente em vão. Ainda assim, a viabilidade a longo prazo do esporte está ameaçada se a NFL não tentar ao máximo proteger os jogadores uns dos outros e, finalmente, de si mesmos.

A partir de 2009, enfim, a liga percebeu que a longevidade de seu produto exigia mudanças significativas na maneira como todos tratam e consideram os traumatismos cranianos.

Sim, a NFL começou a levar as concussões mais a sério não apenas por causa da pressão real do Congresso. A liga temia, justificadamente, assumir, por décadas, uma enorme responsabilidade legal se ex-jogadores começassem a alegar que ela teria falhado em avisá-los adequadamente sobre os riscos de golpes repetitivos na cabeça. E que ela teria falhado em protegê-los razoavelmente desse tipo de lesão. Os processos, de fato, vieram. Por que não?

O desafio dos advogados era provar que a NFL tinha responsabilidade por quaisquer problemas cognitivos desenvolvidos por um jogador de futebol americano anos após ele ter encerrado a carreira. Mas o litígio foi resolvido muito antes que o sistema judicial tivesse a oportunidade de resolver as várias questões que a liga poderia apresentar para se defender das ações movidas por ex-jogadores. Em relação a muitos destes, poderia ser invocada a prescrição. Em relação a outros, poderia ser alegada a impossibilidade de provar que suas lesões decorreram da prática do futebol americano profissional, e não de quando atuaram na faculdade ou no ensino médio. Em relação a praticamente todos, por fim, poderia ser sustentado que o acordo coletivo de trabalho entre NFL e NFLPA impede recursos diretos ao sistema judicial. Ou mesmo que esses atletas teriam continuado a jogar futebol americano ainda que soubessem tudo o que havia para saber sobre todos os riscos que corriam.

Embora tivesse muitos argumentos persuasivos e poderosos, a NFL, sabendo que o caso levaria anos para ser resolvido nos Tribunais, estava sujeita a um tipo diferente de risco: se o litígio prosseguisse, fatalmente seriam produzidos documentos e obtidas evidências do que a liga sabia e desde quando ela sabia. Isso representava um imensurável potencial de dano em relação à imagem pública da NFL, o que ficou claro à medida em que passaram a vir à tona relatos e mais relatos sobre memorandos, e-mails, testemunhas e outras provas de que a liga minimizava os riscos de lesões cerebrais ou os ocultava completamente.

Esses vários fatores culminaram com um esforço para resolver o caso amigavelmente. A liga inicialmente concordou em pagar US$ 765 milhões para resolver tudo, com US$ 675 milhões destinados a um fundo para ex-jogadores e suas famílias, que seriam elegíveis para receber indenizações por certas doenças e condições específicas sem terem de provar o nexo de causalidade entre elas e a prática do futebol americano profissional.

Rapidamente surgiram reclamações sobre a (in)suficiência do montante e, mais importante, sobre a fixação de um limite rígido aplicável a esse fundo. Para garantir a homologação judicial do acordo, a NFL concordou em remover tal limite e em assumir o risco de, em teoria, passar a ter uma responsabilidade ilimitada relativamente a todos os jogadores aposentados que eventualmente pudessem se habilitar para receber a indenização. Ainda assim, acabou sendo um bom negócio para a liga, facilmente justificável como compensação suplementar para homens que ajudaram a tornar o jogo algo tão rentável.

Embora a NFL enfrente outros desafios decorrentes das concussões (incluindo o fato de que as crianças dos Estados Unidos não estão jogando tanto futebol americano quanto costumavam jogar), o problema se tornou bem menor do que poderia ser.

A NFL tem regras específicas que se aplicam quando um atleta sofre uma concussão. As coisas ficam obscuras, contudo, quando se trata de saber se um jogador realmente sofreu uma concussão durante um jogo. Na maioria dos casos, fica óbvio que a concussão ocorreu. Mas há casos sem essa obviedade. Muitas das concussões não óbvias acontecem em momentos nos quais tirar o jogador de campo por algo que ele pode não ter sofrido resultaria na derrota do time. Às vezes, quem potencialmente sofreu uma concussão é um quarterback em um momento decisivo de um jogo também decisivo e equilibrado. Esse é o problema.

A liga continua sendo periodicamente questionada por falhas e pela curiosa incapacidade ou falta de vontade de cumprir o protocolo de concussão. Claro que os casos em que isso acontece acabam sendo amplamente divulgados. E isso se justifica: será necessário que um jogador morra em campo para que esses episódios parem de se repetir?

Crédito imagem: getty images

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.