Esta não é a primeira nem a segunda vez em que tratamos de direito de arena na coluna.
Em outubro passado, quatro meses após a edição da Medida Provisória nº 984/2020, expusemos sobre a insegurança jurídica por ela causada tendo em vista dúvidas sobre sua constitucionalidade e, sobretudo, devido ao fato de ter caducado, sem exame pelo Congresso Nacional. Naquela altura, era proposto o Projeto de Lei nº 4889/2020, que buscava impor aos clubes participantes das séries A e B do campeonato brasileiro de futebol masculino a criação de uma liga, com negociação coletiva dos direitos de transmissão. Se a MP 984 gerava debates quanto à constitucionalidade sob a perspectiva formal (haveria a urgência exigida para edição de medida provisória?), o PL 4889/2020 desafiava a Constituição Federal em seu mérito, afrontando não apenas o princípio da autonomia (art. 217) mas também a liberdade de associação (art. 5º, XX).
Já em fevereiro, retomamos o tema em função de notícias que davam conta de uma possível reedição da MP 984, novamente com o objetivo de atribuir aos clubes mandantes o direito de arena. Ali voltavam à tona os questionamentos sobre a constitucionalidade de uma medida provisória com esse objeto, diante da aparente ausência da urgência exigida pelo art. 62 da Constituição Federal.
Hoje o assunto volta à baila em função do Projeto de Lei nº 2336/2021, proposto no fim de junho com o objetivo de acrescentar o artigo 42-A à Lei nº 9.615/98, cujo caput teria a seguinte disposição: “Pertence à entidade de prática desportiva de futebol mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo.”
Como se vê, a finalidade parece ser a mesma da MP 984: atribuir ao mandante da partida de futebol o direito de arena, reformulando o sistema atualmente vigente pelo qual a transmissão de um jogo requer anuência também da equipe visitante. Contudo, há diferenças importantes na abordagem da questão.
Sob o prisma formal, o projeto de lei parece ser mais adequado do que a medida provisória, na medida em que afasta questionamentos quanto à sua constitucionalidade por ausência de urgência da matéria. Aliás, é interessante notar que o PL 2336 foi proposto pelo Ministro da Cidadania, autoridade responsável pelo esporte no âmbito do Governo Federal – vale lembrar que, com a extinção do Ministério do Esporte em 2019, a pasta passou a ser de competência do Ministério da Cidadania, onde hoje funciona a Secretaria Especial do Esporte. Cuida-se, portanto, de iniciativa mais condizente com o que se espera do regular (no sentido de não ser excepcional) processo legislativo.
Outra distinção se dá no âmbito material. Enquanto a MP 984 alterava o artigo 42 da Lei nº 9.615/98, o PL 2336 o mantém intacto e cria o artigo 42-A. Mas não se trata de duplicidade: o novo artigo 42-A refere-se expressa e especificamente às entidades de prática desportiva de futebol, não se aplicando às demais modalidades. Por isso a manutenção do artigo 42, que seguiria regendo as relações dos demais esportes sem qualquer modificação.
Essa perspectiva joga luz sobre outro assunto também recorrente aqui na coluna (vide esse texto de novembro de 2020): o quanto a legislação nacional relacionada ao esporte é pensada para o futebol. Qual seria a razão de termos uma regra de direito de arena para essa modalidade e outra para as demais? O que é bom para um esporte em tese não seria melhor também para os outros? Afinal, modalidades tradicionais como voleibol, basquete e futsal têm ligas bem consolidadas e com farta transmissão televisiva (e/ou por streaming!), o que por si só demonstra a importância do tema além do universo futebolístico.
Noutro plano, temos as modalidades em que o próprio conceito de mandante não se aplica de forma clara (ao menos não no sentido considerado pelo legislador, de uma partida envolvendo duas equipes), o que à primeira vista poderia justificar um tratamento distinto. Seriam os casos de esportes como o atletismo, o judô, a natação, o automobilismo… Mas é preciso ir além: alguns esportes (inclusive parte dos ora mencionados) eventualmente admitem a inscrição e participação de um atleta em competição esportiva em nome próprio, ou seja, sem representar uma entidade de prática desportiva – o triathlon é um ótimo exemplo desse cenário. Ora, nessa hipótese, nem mesmo o artigo 42 em sua redação atual se revela adequado, visto que ele atrela o direito de arena às entidades de prática desportiva.
Essa análise evidencia o quão difícil é a aplicação da legislação nacional a todas as modalidades esportivas. Trata-se de um enorme desafio ao operador do direito, diante das peculiaridades de cada esporte e do hábito do legislador de tomar o futebol como ponto de partida de suas proposições normativas. E isso reforça a importância de se discutir o esporte (e a legislação esportiva) numa perspectiva mais ampla e diversa, que propicie o desenvolvimento das mais diversas modalidades, sem prejuízo de se atender às demandas futebolísticas.
Enfim, ressalvas à parte, chegamos a julho de 2021 (mais de um ano após a MP 984) com uma nova iniciativa legislativa para atribuir ao mandante da partida de futebol o respectivo direito de arena. Ao que tudo indica, em que pese eventuais ajustes necessários, cuida-se de proposição mais madura e aparentemente mais apta a ser aprovada pelo Congresso Nacional. Resta-nos aguardar a tramitação do projeto e verificar se, afinal, o futebol brasileiro consegue virar essa página – mas sem nos descuidarmos do necessário debate em relação ao esporte como um todo.