Ao longo das últimas décadas, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) vem ganhando um protagonismo inesperado no mundo do esporte. Tudo isso porque, através de decisões emblemáticas e sempre à luz do direito europeu, é capaz de mudar as práticas de mercado do futebol e até economia global, exigir a criação de novas normativas e mecanismos ditados no âmbito privado, alterando, assim, a maneira como todos nós estamos acostumados a ver e analisar o esporte.
Nesse contexto, é impossível não se lembrar do Caso Bosman[1], ponto de partida para mudanças gigantescas no futebol. A decisão proferida pelo Tribunal Europeu estabeleceu que um futebolista tem de ser encarado como um trabalhador comum, pelo que, uma vez terminado o seu contrato, cessam as suas obrigações jurídicas e deverá ficar livre para assinar por outra equipe, declarando ilegal a compensação financeira ao antigo clube, até então permitida pela normativa. Outrossim, impôs o fim ao limite à inscrição de jogadores comunitários em competições realizadas dentro da União Europeia.
Essa decisão ficou marcada como a libertação dos futebolistas e teve repercussões mundiais, dando azo ao boom do mercado de jogadores. Com isso, a FIFA e UEFA uniram esforços para chegar a um acordo com as autoridades europeias sobre um sistema de transferências internacionais, que pudesse estabilizar as relações entre jogadores e clubes, especialmente sob o ponto de vista contratual e que, ao mesmo tempo, pudesse proteger os clubes formadores, celeiros de grandes desportistas.
Finalmente, em 2001, houve a criação do Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ), que trouxe diversas inovações, como, por exemplo, a criação do mecanismo de solidariedade, da indenização por formação e regras para a proteção dos atletas menores. No âmbito nacional, influenciada pelo Caso Bosman, a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) sofreu uma alteração importante pela Lei 10.672/03, com a introdução do artigo 28, que, naquele momento, excluiu o que era popularmente conhecido como “passe”.
Recentemente, duas decisões muito impactantes prometem mudar o conceito do esporte mais popular do planeta. Em primeiro lugar, conforme retratado em 2021 por mim[2], a Corte analisou o que ficou conhecido como o novo Caso Bosman. Nesse sentido, um clube belga ajuizou uma ação alegando a impossibilidade de contar com um jogador israelense devido a uma suposta restrição imposta pelo regulamento local, bem como o da UEFA.
A principal tese jurídica foi que a normativa belga violaria a livre circulação de trabalhadores dentro do território europeu, pois determinava que dos 25 jogadores permitidos por elenco, 8 deveriam vir das categorias de base e 6 deles deveriam estar obrigatoriamente na lista de jogadores relacionados para cada jogo. Da mesma forma, a UEFA, em suas principais competições, preceitua certas limitações sobre a lista que os clubes devem apresentar.
Dos 25 jogadores inscritos, 8 vagas devem ser reservadas para jogadores treinados na categoria de base do próprio time. Contudo, há uma certa flexibilização, já que, entre esses 8 jogadores, se permite que até 4 tenham se desenvolvido na base de outro time pertencente a mesma Federação. Sob esse viés, são considerados jogadores formados pelo próprio clube ou por outra entidade da mesma Federação todos os atletas, independente de nacionalidade e idade, que foram registrados por tal equipe durante 3 temporadas inteiras (de maneira contínua ou não), entre os 15 e 21 anos.
Sendo assim, o clube belga suscitava que essas disposições o impediam de contratar novos jogadores e interferia diretamente na escolha técnica para as partidas, afetando diretamente, portanto, a livre circulação de trabalhadores, de capital e a livre concorrência.
Em janeiro de 2024, foi publicada a decisão do Tribunal Europeu[3], sempre com um viés muito amplo e abstrato, que identificou que essas restrições eram contrárias à legislação europeia sempre que se demonstre que as normas podem afetar o comércio entre os Estados-Membros e que têm por objeto ou como efeito restringir a concorrência entre clubes de futebol profissional.
Outrossim, concluiu que as entidades de organização do desporto que instituíram esses dispositivos devem ser capazes de comprovar que, com tal norma, se pode alcançar, de forma coerente e sistemática, o objetivo de promover, no âmbito do território da sua aplicação, a captação e a formação de jovens jogadores. Decerto, essa decisão poderá alterar o regulamento das principais competições europeias nas próximas temporadas.
Por último, porém ainda mais impactante e midiática, com efeitos que poderão romper o modelo do futebol jogado até hoje, é a decisão do caso Superliga, já detalhado anteriormente nessa seção quando da divulgação do torneio, em 2021[4]. Novamente de maneira ampla e abstrata, sem tecer juízo de valor algum acerca da legalidade da competição em si ou do regulamento ainda não existente do certame, o Tribunal Europeu abalou o mundo do esporte.
O órgão afirmou que os regulamentos FIFA e UEFA, assim como os mecanismos de controles e sanções, no caso Superliga, que vedam, por exemplo, a criação e elaboração de campeonatos e participação de clubes e atletas fora do sistema piramidal do esporte, são contrários à legislação europeia. Segundo a Corte, a organização de torneios e a exploração dos direitos de transmissão e comerciais são atividades econômicas e devem, portanto, cumprir as regras da concorrência e respeitar a liberdade de circulação.
Amparada nessa decisão, a empresa promotora da Superliga, A22 Sports Management, com sede em Madrid, já solicitou o registro das marcas do campeonato e de suas divisões no Boletim Oficial de Propriedade Intelectual da União Europeia, o que foi rechaçado pelo órgão, pois, segundo ele, colidia com o nome da Liga Dinamarquesa, já registrada anteriormente. A competição deve mudar de nome, mas a iniciativa já demonstra que o mundo do esporte poderá ter novidades nos próximos meses.
No entanto, não obstante todos os casos paradigmas já expostos, o Tribunal de Justiça da União Europeia foi provocado a se manifestar novamente acerca de um importante conceito para o mercado de transferências: a figura jurídica do clube indutor.[5]
Como é sabido, o contrato é um acordo de vontades entre duas ou mais partes, onde se estabelece deveres e obrigações, sendo capaz de gerar, modificar ou extinguir direitos. Todavia, esse instrumento também pode produzir efeitos sobre terceiros, que devem respeitar as obrigações contratuais e atuar em conformidade com o princípio corolário da boa-fé, fundamental em todas as relações jurídicas.
Nesse sentido, mais precisamente nos contratos de trabalho no âmbito do futebol, surge a figura do indutor, que pode ser uma pessoa, física ou jurídica, comumente uma entidade desportiva, alheia ao contrato, que provoca, estimula ou induz a uma das partes ao inadimplemento e/ou a sua terminação precoce. Esse elemento ganha uma atenção especial da FIFA em seu ordenamento e em suas decisões.
Isso porque um dos princípios norteadores do RSTJ[6] é o da estabilidade contratual, em que a entidade suíça busca incessantemente que os contratos sejam cumpridos em sua totalidade. Para tanto, em via de regra, não podem ser terminados antes do prazo, salvo por comum acordo entre as partes ou na existência de justa causa, já explicada aqui em outra oportunidade[7], não sendo o ponto central do presente artigo.
É bastante comum escutar de torcedores ou ler em algumas matérias na imprensa esportiva algo sobre um clube, estranho à relação contratual, que é acusado de “aliciar” ou “assediar” jogadores sob contrato com outro clube, geralmente jovens, para que rompam o seu vínculo e assinem pela sua equipe.
Com efeito, a entidade máxima do futebol é severa e impõe mecanismos para evitar a terminação ou para punir quem termina o contrato, de maneira antecipada e unilateral, sem a existência de justa causa, contidos no artigo 17. Como não poderia deixar de ser, os terceiros indutores também são passíveis de sanções esportivas e de pagar a indenização ao clube que sofreu os danos da terminação precoce sem causa justificada. Essa responsabilidade do novo clube é praticamente objetiva, independentemente se o novo clube induziu efetivamente ou não à quebra ou violação do contrato.
Do mesmo modo, no Brasil, a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) e a Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/23) determinam que o atleta e a nova entidade de prática desportiva empregadora são solidariamente responsáveis pelo pagamento da cláusula indenizatória.
Some-se a isso a jurisprudência do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS) e da Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), que reconhece que a responsabilidade segue sendo objetiva mesmo se o atleta assina o contrato com um outro clube após um período considerável de tempo da terminação do vínculo anterior.
Inclusive, é aplicável para as cessões temporárias (empréstimos), em que o clube cedente, detentor dos direitos econômicos, foi responsabilizado pelo pagamento da compensação para o clube cessionário, pela quebra contratual protagonizada pelo jogador cedido. Há, portanto, uma presunção que pode ocorrer de ofício ou a pedido de uma das partes, de que o novo clube do futebolista participou de todo o processo, invertendo-se o ônus da prova.
Com essa medida, a FIFA busca tutelar a estabilidade contratual, aliviando o fardo do desportista e transferindo ao novo clube. Igualmente, assegura que não haverá enriquecimento sem causa do novo clube, que não poderia se beneficiar de uma quebra de contrato cometida pelo jogador. Além disso, facilita o recebimento da indenização pela entidade que sofreu os danos da terminação precoce, tendo em vista a diferença de potencial econômico entre um clube e um jogador.
Posto isso, no caso concreto que chegou até o TJUE[8], um ex atleta ingressou com uma ação em face da FIFA e da Federação Belga, afirmando que essa disposição do RSTJ sobre o clube indutor o teria impedido de se empregar em um clube belga Sporting du Pays de Charleroi, requerendo, ainda, uma condenação dos demandados em perdas e danos em torno de 6 milhões de euros.
Para isso, o ex atleta elucida que estava sob contrato com o clube russo Lokomotiv Moscou, que resolveu o contrato o jogador em razão de um suposto descumprimento contratual, a que o atleta alega não ter cometido. Sendo assim, o clube russo, perante ao Tribunal do Futebol da FIFA, pleiteou uma indenização prevista no contrato pela rescisão do contrato e, por sua vez, o atleta apresentou um pedido de reconvenção buscando uma indenização por supostos salários não pagos pelo clube.
Dessa forma, o jogador sustentou que os clubes, dentre eles o clube belga anteriormente mencionado, tinham receios, baseados na jurisprudência e no RSTJ, em contratá-lo, pois, uma vez perdido o litígio, seriam condenados a pagar solidariamente o clube russo, já que seriam considerados um clube indutor, que poderia ter estimulado um possível descumprimento contratual de modo a forçar uma rescisão do contrato com o antigo empregador.
Nessa semana, o caso teve um importante desdobramento a favor do atleta, com a publicação dos parecer do Advogado Geral da União Europeia, ainda que não seja vinculante à decisão final do Tribunal. Sob esse viés, o advogado defendeu que as regras da FIFA, que regem as relações contratuais entre jogadores e clubes, podem ser contrárias ao direito europeu em matéria de livre concorrência e de livre circulação de pessoas.
Além disso, considerou latente a natureza restritiva do RSTJ que, segundo o profissional, tem o condão de desencorajar e dissuadir a contratação do jogador por receio de risco financeiro de um possível pagamento de indenização, somadas as possíveis sanções esportivas, que podem efetivamente impedir que um jogador possa exercer a sua profissão em um clube situado em outro Estado membro da União Europeia.
Por seu turno, sobre os aspectos referentes à livre concorrência, o advogado afirmou que o RTJ limita a possibilidade de os jogadores mudarem de clube e, inversamente, de os novos clubes contratarem jogadores, numa situação em que um jogador rescindiu seu contrato sem justa causa. Ao assim proceder, a normativa FIFA, limitando a capacidade dos clubes de contratar jogadores, afetaria necessariamente a concorrência entre os clubes no mercado de transferências.
Contudo, como um importante contraponto, faz-se necessário mencionar que a questão já foi enfrentada, por exemplo, pelo Tribunal Federal Suíço[9], geralmente instado a decidir somente questões de ordem pública após as decisões do CAS, como última instância.
Nesse contexto, a Corte Suíça definiu que o conceito não violava um princípio fundamental de direito material ao ponto de entrar em conflito com a ordem jurídica local e que era sustentado pela proteção do princípio da estabilidade contratual e integridade que a FIFA intentava promover.
Ademais, asseverou que seria difícil aduzir o contrário, pois a própria Lei Suíça tem regras mais ou menos comparáveis, citando o exemplo do artigo 58 da Lei Federal de Tráfego Rodoviário de 1958, que impõe responsabilidade civil objetiva ao titular do veículo motorizado se, como resultado da sua utilização, uma pessoa for morta ou ferida ou se danos materiais forem causados. A legalidade do dispositivo, portanto, foi chancelada pelo Tribunal Suíço.
Por derradeiro, é impositiva a análise das consequências negativas geradas por uma possível decisão em favor do atleta ao mercado do futebol, podendo ocasionar uma instabilidade contratual e jurídica significante ao mercado, com menos contratos cumpridos até o fim da vigência, um empecilho ao desenvolvimento de novos talentos, o que pode prejudicar os clubes formadores.
Ademais, no âmbito jurídico, poderia produzir um aumento da quantidade de demandas judiciais locais e na FIFA, aumento do tempo de prestação jurisdicional com maior volume de demandas, maior dificuldade no adimplemento dos credores, além de outros fatores que ainda devem surgir posteriormente.
Ante o exposto, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem mais uma decisão primordial e importante para futuro do futebol, onde se espera uma análise profunda e certeira sobre as consequências e os efeitos provocados em caso de uma definição que altere a normativa vigente. Qual será o próximo alvo do TJUE?
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
[1] Caso Bosman – curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?docid=99445&doclang=ES – última consulta: 01.05.2024
[2] O novo “caso Bosman” que promete revolucionar o futebol europeu – Lei em Campo – última consulta: 01.05.2024
[3]C680/21 – Tribunal de Justiça da União Europeia – CURIA – Documents (europa.eu) – última consulta: 01.05.2024
[4] Superliga Europeia: Uma avalanche de dúvidas e o Direito em sua essência – Lei em Campo – última consulta: 01.05.2024
[5] A figura jurídica do indutor no futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 01.05.2024
[6] RSTJ – Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-February-2024-edition.pdf (fifa.com) – última consulta: 01.05.2024
[7] A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional – Lei em Campo – última consulta: 01.05.2024
[8] AG Szpunar: Some FIFA rules on transfer of players may prove to be contrary to EU law (europa.eu) – última consulta: 01.05.2024
[9] Decisão do Tribunal Federal Suíço – 4A_32/2016 20.12.2016 – Schweizerisches Bundesgericht (bger.ch) – última consulta: 01.05.2024