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Repercussões do SAFE Bet Act no mercado esportivo norte-americano

No mesmo momento em que se anunciou, no Brasil, a suspensão das operadoras de apostas eletrônicas que não pediram autorização para funcionar no país, o que ocorreu na terça-feira, dia 1º de outubro, os debates sobre o SAFE Bet Act voltaram a ganhar corpo nos Estados Unidos.

O SAFE Bet Act é um projeto de lei cuja sigla corresponde à expressão Supporting Affordability and Fairness with Every Bet, que pode ser traduzida como “apoiando a acessibilidade e a justiça em cada aposta”.

Evidentemente, o acrônimo SAFE (“segura”, em tradução literal) invoca o conceito de segurança nas apostas, de modo que os idealizadores do SAFE Bet Act pretendem que a iniciativa seja vista como uma solução legislativa para diversos dos problemas associados ao ato de apostar.

Por aqui, embora os sites possam continuar a ser acessados até 11 de outubro para que os apostadores resgatem os saldos porventura existentes, a suspensão das “bets” não autorizadas valerá até que a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda conceda a permissão exigida pela Lei nº 14.790/2023.

Essa foi a lei que veio regulamentar, com bastante atraso, juntamente com mais de duas dezenas de portarias, o que já estava delineado desde a Lei nº 13.756/2018.

Depois de 11 de outubro, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tirará do ar as páginas não autorizadas.

Para as casas de apostas que tiverem pagado a contraprestação de outorga no valor de R$ 30 milhões para operar legalmente no país por um prazo de 5 (cinco) anos, tudo certo. Já para as “bets” que eventualmente continuarem operando sem autorização, as multas podem chegar a até R$ 2 bilhões por infração.

E qual é o cenário atual no esporte norte-americano?

Para compreendê-lo, precisamos voltar a maio de 2018, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, no caso Murphy v. NCAA, que, sem a existência de uma norma federal que o previsse, seria inconstitucional que os estados, por meio de suas legislações, proibissem as apostas esportivas.

Grosso modo, o SAFE Bet Act viria, justamente, para preencher essa lacuna, não com uma proibição absoluta, mas sim endereçando os desafios de saúde pública impostos à sociedade pelo gigantesco incremento do mercado de apostas.

Apresentado pelo deputado Paul Tonko e pelo senador Richard Blumenthal, o projeto de lei contempla a exigência de os estados obterem aprovação do Departamento de Justiça (órgão federal) para poderem manter localmente a legalidade das apostas esportivas, que passariam a estar sujeitas a uma séria de condições.

O SAFE Bet Act determina, por exemplo, que a publicidade sobre apostas esportivas seja proibida entre as 8h00 e as 22h00.

Também estabelece a proibição de anúncios publicitários durante eventos esportivos ao vivo, além de tornar irregulares as chamadas “apostas bônus” e promoções semelhantes.

Por fim, há regras como a vedação às apostas em acontecimentos ou resultados específicos de um jogo. Para ilustrar, não seria mais permitido oferecer apostas envolvendo a quantidade de arremessos feitos por um jogador em determinado período de uma partida de basquete. Ou que um jogador cometeria determinado número de faltas em um duelo no futebol americano.

Naturalmente, assim como ocorreu no Brasil, a regulamentação tardia permitiu que o mercado de apostas nos Estados Unidos crescesse de forma desordenada, sendo que 38 estados, além de Washington D.C. e Porto Rico, legalizaram (e vêm lucrando com) as apostas esportivas.

Em outras palavras, o SAFE Bet Act viria para atuar sobre um ambiente que já movimenta bilhões de dólares e no qual qualquer intervenção será extremamente difícil.

As receitas advindas da publicidade das casas de apostas já fazem parte dos orçamentos das redes de TV e de inúmeros sites e produtores de conteúdo na internet.

Grandes projetos foram financiados com esse dinheiro, empregos foram gerados no impulso das “bets” e as próprias ligas profissionais desenvolveram parcerias para lucrar à medida em que o mercado se avolumava.

Interferir nessa realidade, daqui em diante, será muito mais complexo do que pode parecer à primeira vista.

Sim, não é exagero dizer que estamos caminhando em um campo minado.

De um lado, temos diversos casos recentes, como a punição da NFL a atletas do Detroit Lions e do Washington Commanders, o banimento, pela NBA, de Jontay Porter, do Toronto Raptors, e o envolvimento do intérprete de Shohei Ohtani, provavelmente o maior astro da MLB na atualidade, em um escândalo relacionado a apostas esportivas.

De outro lado, temos, no vigente Collective Bargaining Agreement (CBA) que rege a NBA, a liberação para os atletas investirem ou serem patrocinados por empresas de apostas esportivas, a parceria de LeBron James com a DraftKings e as projeções da American Gaming Association de que adultos norte-americanos deverão apostar aproximadamente US$ 35 bilhões nesta temporada, a primeira integralmente abarcada por operações da ESPN Bet.

Enfim, a mesma mão que pune (e deve punir) é a mão que coleta os dólares providos pelo mercado de apostas esportivas.

Como mostra uma matéria recém-publicada no portal Sportico, importantes cientistas sociais e juristas dos Estados Unidos têm se pronunciado a respeito.

Há quem seja flagrantemente contrário à legalização das apostas, como Charles Fain Lehman, do Manhattan Institute, que compilou estudos acadêmicos nos quais apontam-se as mazelas que o abuso em apostas pode implicar (dinheiro gasto em apostas é menos dinheiro investido em educação ou em provisionamentos para o futuro; famílias com problemas em apostas têm um alto risco de inadimplência e insolvência civil; o aumento no volume de apostas esportivas coincide com um aumento nos casos de violência doméstica, ansiedade e depressão).

E há quem defenda de maneira ferrenha que o jogo responsável deve ser permitido, como as próprias ligas e as associações dos atletas. A NFL, a propósito, tornou-se parceira do National Council on Problem Gambling, investindo milhões de dólares em programas de educação destinados a atletas, treinadores e agentes. As equipes recebem, ainda, visitas de profissionais responsáveis pelo controle de integridade (geralmente agentes aposentados do FBI ou ex-policiais).

Os congressistas Paul Tonko e Richard Blumenthal, líderes nas propostas que culminaram com o SAFE Bet Act, foram assessorados por Richard Daynard, professor da Northeastern University e figura influente nos círculos jurídicos especialmente por conta dos litígios contra a indústria do tabaco.

Daynard dirige o Public Health Advocacy Institute (PHAI), que, no último mês de dezembro, ajuizou uma ação coletiva contra a DraftKings em Massachusetts, alegando a existência de práticas e publicidade enganosas.

A “bola” agora está com o Congresso dos Estados Unidos. Só não podemos nos esquecer de que este é um período eleitoral e de que o(a) próximo(a) Presidente talvez não queira “herdar”, logo de cara, essa inglória batalha.

Até que a questão legislativa se defina, enfim, vozes continuarão se levantando em todas as frentes.

Jeff Ifrah, advogado e membro fundador da iDevelopment and Economic Association (iDEA), entende que a lei já nasceria maculada por inconstitucionalidades.

Por sua vez, Tim Fong, professor clínico de psicologia na UCLA, afirma:

“[A versão atual do SAFE Bet Act] faria mais mal do que bem. Com tabaco e álcool, o risco número um é a morte. E há outras ocorrências médicas, como comorbidades. Nas apostas, há algumas mortes, mas existem outras questões que são muito difíceis de controlar, como dinheiro perdido ou famílias desfeitas. [O vício em apostas] mais se assemelha ao vício em consumo de entretenimento adulto e à compulsão por compras online ou por jogos de videogame. Todos esses [vícios] causam descarga de dopamina. As apostas esportivas ficam em uma área cinzenta, na qual parecem que são a mesma coisa [que outros vícios], mas, na verdade, não são”.

O fato é que mesmo os defensores mais implacáveis da indústria das apostas concordam que existem implicações de saúde pública para os Estados Unidos, o que deve atrair, nos próximos debates legislativos, a participação de entidades como a SAMHSA (Substance Abuse and Mental Health Services Administration) e o CDC (Centers for Disease Control and Prevention).

Diante das críticas segundo as quais o SAFE Bet Act, inicialmente anunciado como uma estrutura federal para lidar com o jogo problemático e para promover o jogo responsável, teria se desviado dessa missão, outras propostas estão em tramitação, como o GRIT Act, que prevê, tanto na esfera federal quanto na esfera estadual, o uso de metade do valor arrecadado com impostos incidentes sobre o consumo para financiar programas na área de tratamento e educação sobre apostas.

Não existem soluções fáceis. Proibições que certamente serão rejeitadas pelo mercado podem ter o efeito de alimentar a clandestinidade, o que seria muito pior.

Enquanto o horizonte não estiver mais claro, as principais ligas esportivas norte-americanas permanecerão desconfortáveis ​​com o tema, embora pareça improvável que o SAFE Bet Act avance da maneira como está redigido hoje.

De qualquer forma, é interessante notar que, além dos Estados Unidos, os governos federais de Austrália, Canadá e Reino Unido também estão estudando a restrição de horários nos quais seria permitido veicular anúncios publicitários sobre apostas esportivas.

Estaremos acompanhando, em inglês e em português, as cenas dos próximos capítulos.

Crédito imagem: Chip Somodevilla/Getty Images

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