No dia 26 de junho o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (“STJD”) homologou uma transação disciplinar nos termos acordados entre o Cruzeiro e a Procuradoria de Justiça Desportiva[1].
O processo a que se refere a transação é sustentado na denúncia apresentada pela Procuradoria pela suposta prática de atos discriminatórios pela torcida do Cruzeiro durante a partida contra o Grêmio, válida pela 6ª rodada da Série B do Campeonato Brasileiro.
A transação desportiva é uma inovação da reforma do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”), introduzida no código em 2009, e tem como objetivo principal dar ao processo desportivo mais celeridade.
Em brilhante artigo, minha colega Dra. Ana Mizutori descreveu o instituto da transação disciplinar, portanto não desenvolverei demais a parte teórica da questão.
O meu objetivo com o artigo de hoje é analisar um caso concreto: a homologação da transação disciplinar do Cruzeiro. Há dois motivos pelos quais, com o devido respeito ao tribunal, discordo da homologação:
1) o CBJD proíbe expressamente a transação disciplinar no caso do Cruzeiro, e;
2) ao homologar a transação disciplinar, o tribunal tratou o caso como infração de menor potencial ofensivo.
Vamos por partes.
Em relação ao 1º ponto, destaco que a denúncia da Procuradoria é sustentada no artigo 243-G, que pune aquele que pratica atos discriminatórios, desdenhosos ou ultrajantes e razão da orientação sexual[2].
Especificamente, a denúncia é sustentada no artigo 243-G, § 1º, que prevê que “caso infração seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente (…).”
É dizer: a Procuradoria considerou que o torcedor do Cruzeiro é pessoa vinculada ao clube para fins de incidência do § 1º do artigo 243-G e apontou para o dever de aplicar a punição gravíssima de perda de pontos, algo que seria inédito no tribunal para este tipo de infração.
Venho escrevendo bastante sobre o artigo 243-G aqui no Lei em Campo; o considero uma grande arma que a Justiça Desportiva tem para usar no combate à discriminação no futebol, mas que precisa ser aperfeiçoado por diversas razões que já desenvolvi em outras oportunidades[3].
Sobre o artigo 243-G, porém, uma coisa é certa: não cabe transação disciplinar nas infrações a este artigo.
É o que diz, de forma cristalina, o § 1º do artigo 80-A do CBJD, que disciplina a transação disciplinar. Veja:
Art. 80-A. A Procuradoria poderá sugerir a aplicação imediata de quaisquer das penas previstas nos incisos II a IV do art. 170, conforme especificado em proposta de transação disciplinar desportiva apresenta ao autor da infração. (Incluído pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
§ 1º A transação disciplinar desportiva somente poderá ser admitida nos seguintes casos:
I — de infração prevista no art. 206, excetuada a hipótese de seu § 1º;
II — de infrações previstas nos arts. 250 a 258-C;
III — de infrações previstas nos arts. 259 a 273.
A redação do § 1º do artigo 80-A é muito clara; há uma lista exaustiva de casos de infrações às quais é permitida a transação disciplinar e o artigo 243-G não figura nesta lista.
Por razoes que não compreendi, o STJD ignorou os ditames do § 1º do artigo 80-A e admitiu uma transação disciplinar em um caso que o CBJD não permite que o seja feito.
Adicionalmente, ao admitir a proposta de transação disciplinar do Cruzeiro, o tribunal tratou o caso como infração de menor potencial ofensivo.
Como nos ensinou a Dra. Ana Mizutori em seu já mencionado artigo, a transação disciplinar equivale, guardadas as devidas peculiaridades, “à transação penal, ao termo de ajustamento de conduta ou termo de compromisso em processo administrativo”.
Continua a autora dizendo que “para que seja possível a transação disciplinar na esfera penal, o crime deve ser de menor potencial ofensivo, isto é, aqueles delitos com pena de multa ou restritiva de direitos. Estes delitos possuem pena inferior a 02 anos e tramitam em rito sumaríssimo perante o Juizado Especial Criminal.”
De fato, a transação disciplinar desportiva também foi concebida para abarcar infrações com menor potencial ofensivo, eis que a lista exaustiva do § 1º do artigo 80-A deixa claro este fato.
Fosse diferente, não haveria motivo para a mera existência da lista, já que todos os artigos seriam passíveis de admissão da transação desportiva, sem haver qualquer necessidade de diferenciação em razão do potencial ofensivo da infração.
Assim, ao homologar uma transação disciplinar em processo iniciado por denúncia de infração ao artigo 243-G, a mensagem que o tribunal passa é a de que considera atos discriminatórios como infrações de menor potencial ofensivo.
Essa interpretação vai de encontro ao que o Regulamento Geral de Competições da CBF de 2022 estabeleceu quando incluiu o parágrafo único ao seu artigo 54 que prevê que “considera-se de extrema gravidade a infração de cunho discriminatório praticada por membro de qualquer poder do Clube em partidas de competições coordenadas pela CBF”.
Se, por um lado, a CBF considera como extremamente graves as infrações de cunho discriminatório, o STJD parece caminhar em direção oposta ao homologar a transação disciplinar no caso do Cruzeiro, denunciado pela suposta prática de infrações de cunho discriminatório por sua torcida.
Não somente o tribunal parece entender que infrações de cunho discriminatório são de menor potencial ofensivo, mas também permite a interpretação de que o STJD vê o tema como sendo de pouca relevância.
Nas palavras do Dr. Milton Jordão, ao nos ensinar sobre a transação desportiva, este afirma que o instituto “objetivou aos Tribunais de Justiça Desportiva a criação de filtro para temas de maior relevância, dando máxima vazão ao princípio da celeridade”[4].
Não faz sentido admitir no processo como amigo da corte o Grupo Arco-íris; afirmar que “o é assunto de grande importância e muito debatido hoje pela sociedade civi”l; e que “precisamos tomar atitudes enérgicas e pedagógicas objetivando plantar a semente de alguma atitude real contra qualquer tipo de preconceito descrito no artigo 243-G[5]” e, na mesma oportunidade fazer uso do instrumento concebido para lidar com temas de menor relevância para dar ainda mais celeridade aos processos em trâmite nos tribunais desportivos.
Em artigo publicado no dia 23 de maio, questionei como serão julgadas as infrações de cunho discriminatório em 2022, especialmente em face da mencionada mudança no RGC e do aumento considerável de lamentáveis ocorrências de atos discriminatórios no futebol.
Permaneço com esta questão em aberto e com ainda menos respostas ante a homologação da transação disciplinar neste caso.
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[1] https://www.stjd.org.br/noticias/relator-homologa-transacao-do-cruzeiro-em-audiencia
[2] A despeito de o artigo 243-G não dizer expressamente que serão punidos atos discriminatórios em razão da orientação sexual, os tribunais desportivos brasileiros assim o fazem por orientação da FIFA (circular nº 1682 de 25 de julho de 2019) e por analogia à decisão do STF quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 26 e do Mandado de Injunção 4733 que reconheceu a mora do Congresso Nacional para legislar sobre atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGTB+ e enquadrou a homofobia e a transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo – Lei 7.716/1989.
[3] https://leiemcampo.com.br/o-combate-a-discriminacao-no-futebol-e-o-artigo-243-g/
https://leiemcampo.com.br/como-serao-julgadas-as-infracoes-de-cunho-discriminatorio-em-2022/
[4] JORDÃO, Milton. Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Comentários à Resolução CNR 29, de 10.12.2009. Coord. Paulo Cesar Gradela Filho, Paulo Bracks, Milton Jordão. Curitiba. Ed. Juruá, 2012.
[5] https://www.stjd.org.br/noticias/relator-homologa-transacao-do-cruzeiro-em-audiencia