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Liberdade de escolha na terra dos livres

Praticamente todas as atividades humanas envolvem algum tipo de tomada de decisão, com maior ou menor grau de complexidade. Nos esportes, obviamente, não é diferente.

Porém, qualquer que seja a modalidade, ela não se constrói somente a partir de decisões meramente esportivas. Muito pelo contrário.

A montagem de uma equipe, a contratação de um jogador, a demissão de um treinador e todas as demais decisões que permeiam o esporte, independentemente do nível da disputa, possuem componentes que vão bem além dos aspectos esportivos em si.

Muitas trocas de atletas na NBA, por exemplo, se justificam, em grande medida, por questões financeiras e contratuais. As recentes transações envolvendo a ida de Bradley Beal para o Phoenix Suns e a transferência de Chris Paul para o Golden State Warriors tiveram tal característica, como apontou o jornalista John Hollinger em matéria no The Athletic:

Deixe-me dizer uma coisa: a chave para cada transação na NBA é que o que importa são os contratos, e não necessariamente os jogadores. Eu já disse isso antes, mas na iminência de um CBA que vem para punir gastadores perdulários, preciso dizer de novo, e mais alto. Por mais que queiramos que seja sobre os jogadores, porque são eles que determinam quem ganha e quem perde, a capacidade de gerenciar os contratos desses jogadores é o grande desafio em uma liga de teto salarial com inúmeras regras a serem respeitadas”.

Já abordamos aqui, também, o quanto a atual era do empoderamento dos atletas vem trazendo desafios e o quanto a carga tributária pode influenciar na escolha de um jogador da NFL ou da NBA em jogar ou não por uma determinada franquia.

No contexto das ligas esportivas norte-americanas, há, em um extremo, os free agents irrestritos e atletas poderosos o bastante para definirem, a seu bel prazer, onde irão atuar. No outro extremo, contudo, há situações nas quais a liberdade de escolha é limitada ou sequer existe.

Podemos tomar o Draft para ilustrar esse cenário. A rigor, a partir do momento em que se inscrevem para participar do recrutamento, os jogadores sabem e aceitam que não terão controle sobre o seu próprio destino ao menos nos primeiros anos de contrato.

Afinal, o Draft, por definição, é um processo em que os atletas não decidem onde irão jogar. Quem decide por eles, com a colaboração dos respectivos agentes, são as franquias.

Às vezes ocorre a “tempestade perfeita”, um “casamento” ideal entre a preferência de um atleta e a preferência de um time.

É o que se viu no último dia 22 de junho, quando, no mais recente Draft da NBA, Victor Wembanyama foi selecionado pelo San Antonio Spurs, franquia que é um “porto seguro” para jogadores estrangeiros, inclusive os franceses, especialmente em razão da trajetória de sucesso de Boris Diaw e Tony Parker (a propósito, um dos proprietários da equipe na qual Wembanyama atuou entre 2021 e 2022 no basquete francês).

A NBA já viu outras “tempestades perfeitas”. Em 2003, LeBron James, nascido e criado em Akron, Ohio, foi selecionado pelo Cleveland Cavaliers, equipe daquele estado. Em 2008, Derrick Rose, oriundo de Chicago, foi draftado pelo Bulls, time de sua cidade natal.

Por outro lado, há casos emblemáticos de atletas que se rebelaram e, em nome da liberdade de escolha, acabaram subvertendo, ou tentando subverter, a lógica natural do Draft.

Na NFL, o episódio mais famoso é o de Eli Manning, cujo agente informou ao então San Diego Chargers (hoje Los Angeles Charges), dono da primeira escolha no Draft de 2004, que seu cliente não desejava jogar pela equipe. No dia seguinte ao contato feito pelo agente, a direção da franquia tornou a conversa pública, criando uma situação desconfortável para o atleta, que, embora draftado pelo Charges, acabou conseguindo o que queria ao ser posteriormente trocado para o New York Giants.

Na NBA, eis um divertido relato, extraído de Barkley: A Biography, de Timothy Bella, sobre o folclórico Charles Barkley e sua postura em relação ao Draft:

Durante um período de 48 horas em 1984, Charles se envolveu em uma ´maratona´ alimentar na esperança de dissuadir o Philadelphia 76ers de selecioná-lo no Draft. Ele começou com dois cafés da manhã Denny’s Grand Slam – seis panquecas e bacon totalizando cerca de 1.660 calorias – e um milk-shake de baunilha para acompanhar. As ofertas do almoço (…) incluíam Kentucky Fried Chicken, purê de batatas e salada de repolho; metade do cardápio do Red Lobster; dois filés de peixe do McDonald’s, uma grande batata frita e uma Coca Diet; ou dois sanduíches de churrasco do tamanho do Texas. O cardápio do jantar em uma churrascaria incluía T-bone, batata assada e, claro, três sobremesas.

Charles repetiu isso no dia seguinte, empanturrando-se, conforme descreveu, ´com tudo o que conseguia colocar na boca (…)´. Durante uma noite de bebedeira com seu agente, a cena de Charles ´entornando´ cervejas pode ter feito as pessoas pensarem que a Lei Seca estava prestes a ser restabelecida (…).

Tudo isso aconteceu [em um período no qual] os salários [na NBA] haviam aumentado muito rapidamente e várias franquias corriam o risco de fechar.

Para resolver os problemas crescentes que assolavam a liga, o acordo coletivo de trabalho anunciado para a temporada de 1984-85 ajudou a instituir um teto salarial. Equipes com folhas de pagamento iguais ou superiores ao teto salarial só poderiam oferecer às suas escolhas de primeira rodada [caso de Charles Barkley] um contrato de um ano no valor de US$ 75.000. Em outras palavras, quem quer que fosse escolhido pelo Philadelphia 76ers, uma franquia que estava limitada a gastar cerca de US$ 4,5 milhões naquela temporada, não teria a segurança de um contrato multimilionário de vários anos.

Charles já havia perdido cerca de 4,5 kg naquele verão, um pedido feito pelo próprio 76ers antes de uma pesagem pré-Draft. Foi então que o agente de Charles, Lance Luchnick, veio com a difícil notícia para o seu valioso cliente:

´Você sabe que se o Sixers selecionar você, eles vão lhe dar só US$ 75.000, certo?´ Luchnick disse a Charles.

´Eu não saí da faculdade por US$ 75.000´, Charles respondeu em um tom não tão calmo.

Pelos padrões de Charles, o ´regime de engorda´ funcionou: ele ganhou cerca de 9 kg em dois dias, ficando com quase 136 kg. Em uma pesagem, Harold Katz, o dono do 76ers que fez fortuna como fundador da Nutrisystem, uma cadeia nacional de clínicas de emagrecimento, descontrolou-se, perguntando a Charles (enquanto este tentava não rir): ´Você é louco ou apenas gordo e preguiçoso?´

No trem com destino a Nova York para acompanhar o recrutamento, Charles e Luchnick se cumprimentaram por um trabalho bem-feito. Não havia como o 76ers draftar Charles Barkley daquele jeito. Sem chance. Ao menos isso era o que eles pensavam…

(…) As quatro primeiras escolhas daquele Draft seguiram como o planejado: Hakeem Olajuwon para o Houston Rockets, Sam Bowie para o Portland Trail Blazers, Michael Jordan para o Chicago Bulls e Sam Perkins para o Dallas Mavericks. (…) Aí, em seu primeiro Draft como comissário da liga, David Stern anunciou Charles Barkley como a escolha do Philadelphia 76ers. (…) O anúncio não foi uma surpresa total, mas ainda assim era decepcionante para Charles. Ele respirou fundo e mordeu o lábio inferior antes de caminhar para o palco. Visivelmente abatido, ele abaixou a cabeça e foi ao encontro de Stern.

(…) Observações sobre o peso do jogador não passaram despercebidas entre os locutores. Lou Carnesecca, que estava anunciando o Draft de 84, disse que gostaria de abrir uma barraca de pizza nas proximidades de Charles e ver se funcionaria tão bem quanto ele imaginava. O questionamento continuou momentos depois que Barkley foi selecionado. O locutor veterano Eddie Doucette perguntou a ele sobre a reputação que tinha de ser capaz de engolir algumas pizzas de uma só vez, o que produziu uma gargalhada, capturada durante a transmissão, de alguns membros da plateia.

´Falam muito do meu peso, mas acho que consigo controlá-lo e sinto que irei para os treinamentos e perderei muitos quilos´, disse ele com um sorriso sem graça.

Quando Barkley foi questionado sobre os US$ 75.000 aos quais teria direito como o mais novo membro do 76ers, Charles disse que tudo o que tinha que fazer era trabalhar duro que a questão financeira se resolveria. Ele realizara um sonho, antes impossível, de chegar à NBA, e como um dos cinco primeiros selecionados no Draft. Todavia, com seu agente sugerindo uma ação judicial diante da impossibilidade de que fosse oferecido a seu atleta um salário competitivo, o sonho de Charles de sustentar sua família ficaria temporariamente incerto”.

No fim das contas, Barkley teve uma carreira de sucesso e ganhou muito dinheiro.

Assim como Kobe Bryant, que, supostamente, informou ao Charlotte Hornets, equipe pela qual foi draftado, que ele se recusaria a jogar pela franquia e por qualquer outro time que não fosse o Los Angeles Lakers.

Existem diferentes versões da história, mas um artigo de Stephen A. Smith publicado no Philly Inquirer uma semana após o Draft de 1996 revelou:

Em minutos, falava-se da ida de Bryant para Los Angeles. Dave Cowens, o novo técnico do Hornets, estava entre os que levantaram essa possibilidade, descartando Bryant como ´um menino´ que teria dificuldade em jogar pelo Charlotte.

O agente de Kobe, Arn Tellem, desconversou sobre a alegada recusa de seu cliente em atuar pelo Hornets:

´Fiquei sabendo no dia do Draft da possibilidade, e apenas da possibilidade, de ele ir para Los Angeles´, disse Tellem. ´Assim que soubemos disso, quisemos fazer acontecer. Ele não tinha nada contra Charlotte, mas uma vez que sabíamos que Los Angeles era uma possibilidade, fizemos tudo o que podíamos para que isso acontecesse. Você tem que se lembrar de algo: o Hornets o selecionou para trocá-lo, não para mantê-lo. Não é que Kobe não quisesse estar lá. Kobe sabia que eles não o queriam´”.

Em 2007, entretanto, um artigo do New York Times reproduziu uma fala do mesmo Arn Tellem que contradizia a declaração anterior sobre a hipótese de Kobe jogar em Charlotte:

Uma impossibilidade. Não havia ´se´. Isso não aconteceria. Ele seria um Laker e esse seria o único time pelo qual ele jogaria“.

Enfim, se no hino nacional os Estados Unidos se autoproclamam “a terra dos livres”, sabemos que nas ligas esportivas norte-americanas nem todos são tão livres assim.

Para cada Eli Manning e para cada Kobe Bryant, existem incontáveis atletas que não têm vozes tão poderosas. É a regra do jogo. Que mesmo Charles Barkley, com suas pizzas e sua forte personalidade, acabou aceitando.

Crédito imagem: Focus On Sport/Getty Images

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