Nesta primeira publicação da coluna em 2024, voltamos a convidar para escrever conosco o parceiro Vinicius Matosinhos, fundador e editor-chefe do Tabela de Ferro, principal portal em língua portuguesa na cobertura do basquete europeu.
O tema? O imbróglio jurídico envolvendo o talentoso atleta brasileiro Bruno Caboclo, caso que vem se arrastando desde setembro de 2023 e que teve um novo e importante capítulo nos últimos dias.
Nascido em Osasco e criado em Barueri e Pirapora do Bom Jesus, no interior de São Paulo, Bruno Caboclo destacou-se no tradicional Esporte Clube Pinheiros e, muito cedo, chamou a atenção do mundo do basquete.
Selecionado na vigésima escolha do Draft de 2014 pelo Toronto Raptors, o jogador recebeu, do jornalista Fran Fraschilla, da ESPN, o incômodo rótulo de “estar a dois anos de estar a dois anos” de ter condições de atuar na NBA.
Foram poucos minutos pela franquia canadense entre 2014 e 2018. A história de Caboclo na liga norte-americana ainda teve passagens pelo Sacramento Kings, pelo Memphis Grizzlies (em que viveu sua melhor temporada em 2018/2019, com médias de 8,3 pontos, 1,5 assistências e 4,6 rebotes) e pelo Houston Rockets, além de incursões na G-League, de uma participação na Summer League (Utah Jazz) e de alguns dias de treinamentos com o Boston Celtics.
De volta ao Brasil em agosto de 2021, após um curto período no basquete francês (Limoges CSP), Bruno Caboclo brilhou no São Paulo. Além de conquistar o Campeonato Paulista e a Basketball Champions League Americas, da qual foi eleito MVP, o atleta, mesmo com a eliminação da equipe nas semifinais, foi também aclamado, com justiça, como o melhor jogador do NBB 2021-2022.
Em janeiro de 2023, Caboclo assinou um contrato válido até o final de 2024 com a equipe alemã Ratiopharm Ulm. Peça decisiva na inédita conquista da Bundesliga, com médias de 14,9 pontos e 6,3 rebotes, o brasileiro, ao lado do compatriota e amigo Yago Mateus, conquistou a Alemanha com seu jogo físico e versátil.
Em junho de 2023, juntamente com seus novos agentes, Bruno Caboclo decidiu deixar o clube alemão. Acionada a cláusula contratual que o liberava do restante do vínculo, o jogador assinou por dois anos com a equipe italiana Reyer Venezia.
Porém, após excelentes atuações pela seleção brasileira na Copa do Mundo de basquete em setembro, campanha na qual teve médias de 28,1 minutos, 16,4 pontos e 9,2 rebotes, Caboclo resolveu não se apresentar ao novo clube.
Daí em diante, o nome de Bruno Caboclo passou a figurar no noticiário não só pelo desempenho em quadra, mas também por conta de questões jurídicas.
No mês de outubro, após várias semanas de incertezas, Caboclo disputou, pelo time israelense Maccabi Ra’anana, amistosos de pré-temporada nos EUA, em tentativa de conseguir uma nova oportunidade na NBA. A propósito, depois do jogo contra o Brooklyn Nets, o brasileiro quebrou o silêncio e declarou:
“Fechar com o Ra’anana foi uma decisão posterior. Eu tive problemas. Eu mudei de agentes e muitas coisas mudaram para mim. A oportunidade chegou e eu pensei que seria boa, então aproveitei. Mas eu queria ir para o Venezia. Meu ex-agente assinou por mim, mas eu sentia que poderia fazer coisas melhores para o meu jogo. Eu não tenho problema algum com o Venezia, mas é sobre minha carreira. Algumas pessoas não gostaram, mas é minha carreira”.
No início de novembro, finalmente, o brasileiro foi anunciado pelo Partizan Belgrado, o que gerou revolta na Itália.
Antes de adotar medidas legais, o clube italiano expressara, por meio de comunicados oficiais, surpresa e descontentamento com a conduta do jogador de não se apresentar aos treinamentos alegando “motivos pessoais”.
Tal atitude foi caracterizada como uma “séria violação do acordo feito entre as partes“. A postura do presidente do Venezia, Frederico Casarin, ao entrar em contato com várias ligas europeias para informar sobre a situação, tentando evitar que outros clubes assinassem com o jogador, evidenciou a dimensão internacional da disputa.
Na sequência do anúncio oficial do contrato de Caboclo com o Partizan, o Venezia assim se manifestou:
“Umana Reyer Venezia tomou conhecimento da injusta e equivocada decisão da Federação Internacional de Basquete (FIBA) de conceder a liberação ao jogador Bruno Caboclo, a pedido do Club Partizan Belgrado.
A emissão da referida autorização, face a uma violação gravíssima cometida pelo jogador, manifestando má-fé e com a colaboração culposa de agentes e do novo clube, é totalmente inaceitável e será contestada em todos os foros e com todos os meios disponíveis (…).
Da mesma forma, o Venezia reserva-se o direito de fazer com que a conduta ilícita dos agentes, do jogador e do próprio Partizan Belgrado seja apurada junto às autoridades competentes, que, apesar de terem conhecimento da obrigação contratual em vigor, deram seguimento ao pedido de transferência feito pelo atleta.
Não é tolerável que, em um sistema funcional e interdependente como o do basquetebol europeu, um clube se aproveite do desempenho de um jogador contratualmente ligado a um potencial adversário.
E reviravoltas promovidas por jogadores e agentes em desrespeito não só aos contratos, mas também à programação desportiva, aos investimentos e à competitividade das equipes não são aceitáveis.
Por estas razões, estamos absolutamente determinados a continuar a nossa batalha legal, em todas as instâncias possíveis, contra todos os envolvidos neste caso.
Infelizmente, é claro que o respeito pelos códigos de conduta sancionados pela própria FIBA e pelos valores desportivos básicos que devem ser partilhados por todos não pode ser confiado à consciência individual daqueles que trabalham, a qualquer título, no nosso esporte”.
No último dia 11 de janeiro, foi anunciado que o Colégio Permanente de Conciliação e Arbitragem da Liga Italiana de Basquete acatou o recurso apresentado pelo Venezia, que celebrou a notícia como a confirmação “de alguns princípios muito importantes, incluindo a plena validade e eficácia do contrato que foi assinado pelas partes”.
Tal decisão, naturalmente, adiciona complexidade ao caso, que segue tramitando junto ao Basketball Arbitral Tribunal (BAT) da FIBA com um pedido para que seja anulada a autorização de transferência e posterior registro do atleta pelo Partizan Belgrado.
Ora, partindo do pressuposto de que o Venezia tem razão em suas alegações (especula-se que, além de haver pagado a multa rescisória ao Ratiopharm Ulm, o clube italiano também possuía mecanismos contratuais fortes para se proteger de uma saída do jogador), como devem ser tratados os amistosos que Caboclo disputou com a camisa do Maccabi Ra’anana contra equipes da NBA?
Tais jogos, a despeito de não terem sido partidas oficiais, deveriam, também, integrar o pleito indenizatório do Venezia?
Deveria ter havido, de fato, a liberação de Caboclo para assinar com o Partizan, no qual, aliás, ele vem tendo bom desempenho?
Os comentários feitos pelo jogador, no sentido de que priorizou a própria carreira ao não se apresentar ao Venezia, têm que grau de relevância na discussão?
Já tratamos, aqui na coluna, da tensão entre liberdade de trabalho e força obrigatória dos contratos, algo tão presente na atualidade, um tempo no qual, graças à força de suas marcas pessoais, os atletas possuem crescente influência e poder político e econômico.
Do ponto de vista meramente esportivo, é evidente que, após o destaque na Copa do Mundo, atuar pelo Partizan, em uma competição como a Euroliga, é melhor para Bruno Caboclo do que disputar torneios de nível inferior pelo Venezia.
A condução e a comunicação dessa decisão de carreira, contudo, deveriam ter sido feitas de uma forma mais adequada, que transparecesse boa-fé e respeito ao que fora assinado, independentemente das circunstâncias.
Mesmo desconhecendo detalhes do caso que ainda não vieram à tona, podemos afirmar que, por mais que Caboclo e seus representantes tenham todo o direito de buscar o que é melhor para o jogador, desprezar o fato de que o Venezia merece ser indenizado é desprezar regras essenciais para o equilíbrio do sistema desportivo.
A disputa entre italianos e sérvios, com um brasileiro como pivô (perdoem o trocadilho com a posição do jogador em quadra), levanta questões instigantes no âmbito do direito desportivo.
O desfecho desse litígio ainda está distante no horizonte. Todavia, já é possível enxergar que a escolha do atleta e de seus agentes deverá custar bem mais caro do que o esperado.
Crédito imagem: Cedevita Olimpija / Filip Barbalic
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